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    Sob os pés de Ana, a terra batida parecia vibrar.

    A textura áspera do chão, a secura do ar, o calor do foco — tudo compunha um cenário que, em tese, deveria ativar algum instinto primitivo. Mas tudo que ela sentia era… tédio.

    Respirou fundo. O tempo não parou, mas pareceu pensar melhor e andar mais devagar por um instante.

    — Essa luta não faz sentido — murmurou, mais para si do que para o universo. Seus olhos estavam fixos no adversário à frente.

    Do outro lado da arena, o tal “Carnífice” estava em posição de batalha, ou o que ele provavelmente achava que era isso. Alto, largo, cabelos negros despenteados demais para serem naturais — o tipo de bagunça que requer esforço pra parecer espontânea. Tinha aquela expressão entre o desdém e o orgasmo de poder que parecia estar na moda entre lutadores locais.

    E para ser justa, ele realmente parecia forte. Perigoso, até. Mas Ana o observava como quem olha para uma peça de teatro ruim: com certo desconforto estético e uma dose crescente de impaciência.

    — Não gosto de como me olha. — rosnou ele, a voz arranhada, como se tivesse fumado uma árvore inteira. — Vou aproveitar cada segundo enquanto quebro essa carinha fofa.

    Ana apenas sorriu — não de forma amigável, tampouco provocativa. Era aquele sorriso que aparece quando o constrangimento alheio é tão grande que você precisa reagir de algum jeito. Sentia uma vergonha quase física pela fala do homem, e sinceramente, não fazia ideia do que seria uma resposta adequada para aquilo.

    Segundo Madame, essa era a arena de seleção para mercenários. Um ritual noturno, quase secreto, onde se escolhiam os novos contratados da companhia. Lutas entre potenciais promissores, o tipo de tradição que misturava romantismo, um toque de violência e evitava acusações de uma seleção injusta por parte do RH.

    Os duelos seguiam regras, claro — ninguém ali era um completo selvagem. Manipuladores não lutavam contra guerreiros, por exemplo. Não porque fosse injusto, mas porque seria logisticamente um desastre. Os objetivos variavam, mas o desfecho era sempre o mesmo: apenas um saía com contrato assinado. O outro saía… bem, com sorte, saía andando.

    Desistências não eram exatamente proibidas — só que ninguém se dava ao luxo. Rendição era para os que não queriam voltar ali nunca mais. E morte? Não era o ideal, mas tampouco era uma tragédia.

    “No fim das contas, o que vale mesmo é a força — num é essa desgraça de mana, não.” A frase de Madame ressoava na cabeça de Ana como um mantra prático. Tinha gostado dessa parte da conversa. Direta. Sem firulas místicas.

    — Sua puta, não brinca comigo! — O homem voltou a gritar, claramente indignado com o fato de estar sendo ignorado enquanto Ana se alongava.

    A mulher nem olhou. Esticava o pescoço para o lado, depois os braços, girava os ombros com lentidão quase meditativa. Um aquecimento que dizia mais sobre segurança do que mil discursos motivacionais. O corpo envolto apenas em roupas leves e faixas nos punhos, um traje que sugere simplicidade — e a promessa de que não há truques escondidos. Só dor.

    — Aberturas em cada passo. Músculo demais no lugar errado. Centro de gravidade mal resolvido… — murmurou, neutra, como quem corrige uma redação. — Se vão me fazer lutar, podiam ao menos mandar alguém que sabe o que tá fazendo.

    A frase chegou ao outro lado como um dardo. O rosto do Carnífice se tingiu de um intenso escarlate. Um rubor idiota provindo do misto de fúria e vergonha. Ele era experiente, disso Ana não duvidava. Mas também sabia que ela tinha razão. A postura não mentia. 

    O homem inspirou fundo, preparando o que provavelmente seria uma ofensa nova ou uma explicação agressiva do porquê ele era, sim, superior. 

    Foi então que um som discreto cortou o ar. Quase imperceptível. Mas o bastante para que ambos parassem.

    Madame, encostada com calma na grade superior da arena, ergueu a mão e lançou uma moeda de ouro no ar. O gesto, simples em qualquer outro contexto, pareceu carregar um peso simbólico ali dentro. O som metálico do giro cortou as conversas da multidão como um feitiço de silêncio. Olhos se voltaram automaticamente para o pequeno brilho dourado, acompanhando seu arco como se fosse um presságio.

    Um giro. Dois. Três.

    E, por fim, um tintilante som de metal.

    No instante em que a moeda tocou o chão, Ana se lançou para frente. Para o público, foi como ver alguém tropeçando. Para ela, era o começo de seu primeiro movimento.

    O corpo se soltou como água num recipiente virado. Músculos se ajustaram em microssegundos, respondendo a algo que não era apenas treino, mas memória profunda. A perna girou num ângulo pouco natural, puxando-a de volta antes que chegasse a cair. A sequência que se seguiu — fluida, precisa, elegante — lembrava um tipo de coreografia, o que era bom, pois esta era sua intenção.

    — Ela tá… dançando? — o homem murmurou, confuso, os olhos tentando entender onde aquilo encaixava na lógica de um combate.

    No terceiro giro, antes que pudesse terminar de raciocinar, o arrepio chegou. Da nuca até o fim da espinha. Algo primal. Um alarme disparado por um sistema que não exige confirmação racional.

    Eu vou morrer!” pensou, sem cerimônias, ao jogar o corpo para trás por puro instinto. A ação salvou sua vida — ou, pelo menos, seu crânio —, pois o próximo movimento de sua oponente terminou com um pé descalço estalando contra o centro do rosto. O som do nariz quebrando reverberou pela arena. Se tivesse hesitado mais meio segundo, teria sido a têmpora. E não haveria segunda chance.

    — MERDA, MERDA, MERDA! — gritou, tropeçando para trás enquanto o sangue escorria, tingindo de vermelho vivo a roupa antes clara. A respiração vinha em rajadas curtas. Suor brotava, se acumulava e escorria, os olhos saltando de Ana para o portão de saída como quem reavalia todas as decisões de vida que o levaram até ali. Jamais estivera tão próximo da morte em tão pouco tempo — e com tão pouco aviso.

    — Olha só… melhor do que pensei — disse Ana de forma casual. — Não imaginei que fosse conseguir desviar.

    O tom era leve, mas o corpo já estava em movimento de novo.

    Dessa vez, nada de giros ou floreios. Apenas velocidade crua. Uma corrida direta, sem pausas ou hesitação. Um avanço que exigia uma resposta imediata — ou um impacto seria inevitável.

    O Carnífice entendeu rápido que não ia conseguir escapar. Fez o que sabia. Cruzou os braços à frente do peito, fincando os pés no chão. O objetivo era simples: aguentar. Orgulhava-se da própria resistência. Não sabia exatamente por que a garota à sua frente era tão rápida, mas lembrava a si continuamente o quão forte era, e aquilo devia significar alguma coisa.

    Conjurou a energia pelo corpo como quem chama reforços. Sentiu a pele estalar sutilmente enquanto os músculos se retesavam. Os braços endureceram como pedra. Ele esperou, firme. Não contra-atacaria — não ainda. Apenas resistiria.

    Ana o observou enquanto corria. Algo no encolhimento dele, na forma como afundava no próprio corpo, a divertia.

    Uma tartaruga” pensou, sorrindo por dentro.

    Sabia que venceria — isso se fosse apenas uma questão de habilidade. Mas havia outro fator que não havia considerado tão a fundo: a mana.

    Pelo que vi por aí, achei que só servisse pra aumentar força e aguentar porrada,” refletiu, ainda ajustando o passo com precisão. “Mas a forma como ele reagiu antes… ou eu o subestimei demais. Mana também interfere na cognição?

    A dúvida a intrigava. O tipo de dúvida que, se não fosse acompanhada de tanto risco, daria vontade de anotar e pesquisar depois com calma.

    Mas agora, ela teria que descobrir tudo isso na prática. E rápido.

    Paralelo aos pensamentos que fervilhavam em sua mente, o corpo de Ana já havia decidido o que fazer. De forma descomplicada, contornou a guarda do homem como água deslizando por fendas já abertas — sem pressa, mas com propósito. Seu punho girou no ar, trocando de direção no último segundo, e afundou nas costelas do oponente, arrancando dele um som seco que podia ter sido dor ou surpresa. Talvez os dois.

    É realmente resistente. Nada mal.

    Para Ana, aquilo já tinha deixado de ser uma luta. Cada golpe era uma variável testada, uma hipótese desmontada, uma tese sendo redigida a socos. E o corpo do outro, bem, era o campo de provas. Com cada ataque, um novo dado: fraturas, rupturas, o ritmo quebrado da respiração adversária.

    Pelo padrão de resposta… deve haver correlação entre o endurecimento físico e o volume de mana ativa. Interessante. Só não faço ideia de qual o rank dele, o que complica as estimativas…

    Pensamentos se empilhavam enquanto os golpes continuavam. Ela mantinha o ritmo com precisão quase matemática — até que o oponente decidiu mudar de tática.

    Desistiu da defesa e partiu para um ataque aberto, distribuindo socos em sequência desordenada, com mais desespero do que técnica. Ana não se incomodou em desviar. Deixou que os punhos a atingissem, sentindo o impacto vibrar por debaixo da pele. O corpo reclamava, claro. Hematomas estavam garantidos. Mas nada que exigisse atenção imediata.

    O público, antes ruidoso, começou a silenciar. Um por um, perceberam que aquilo não era um embate equilibrado. Estavam testemunhando algo mais difícil de categorizar. Não sabiam se deviam torcer, intervir, ou apenas agradecer por estarem do lado de fora das grades.

    Ana, por sua vez, continuava.

    Algo em seu olhar se desfocava pouco a pouco. Os cálculos se apagavam, as análises deixavam de fazer sentido. O que restava era o som abafado da carne cedendo, o movimento repetido das mãos, e aquela pulsação quente que vinha de dentro, cobrindo todo o resto.

    Então veio o colapso.

    Lançou-se sobre o homem num impulso quase involuntário, os socos chovendo em uma sequência pouco ritmada. Cada golpe dizia “eu posso”. E quando não havia mais onde acertar, o corpo do oponente simplesmente parou de reagir.

    Foi uma voz fraca, engasgada, que trouxe Ana de volta.

    — M-me… des-de… descul-pa… p-por fav-vor… para…

    A combatente piscou. Seu olhar desceu, enfim reparando no homem caído. Ele ainda estava consciente. Tecnicamente. O rosto inchado, distorcido. Os olhos mal abertos. A voz dele era apenas um eco do que já foi.

    Ana levou dois dedos aos lábios e encontrou o sorriso ali. Um largo, feroz, desnecessário. Não sabia há quanto tempo estava sorrindo. Isso a incomodou. Mas não o suficiente para impedir que voltasse a sorrir de novo, só que agora por outro motivo — o de perceber que havia algo dentro dela que não controlava tão bem quanto imaginava.

    A arena estava em completo silêncio. Não por respeito, nem por luto. Apenas ninguém queria ser o primeiro a dizer algo estúpido depois daquilo.

    Lá no alto, Madame observava. O olhar sério, a mandíbula tensa. 

    — Maldito monstro… — murmurou, antes de erguer a voz para todos. — A Eterna venceu a disputa. Hoje nasce uma nova rainha mercenária entre nós!

    As palavras caíram como uma segunda explosão. O primeiro choque havia sido visual, sangrento. O segundo, simbólico. “Rainha mercenária.” Não era o tipo de título que se ouvia com frequência, muito menos em voz alta e diante de uma plateia ensandecida por violência. Mas, naquele momento, pareceu fazer sentido. Ou pelo menos sentido o bastante para que a multidão explodisse num coro de empolgação abafada segundos depois do anúncio.

    A inquietação deu lugar a aplausos, gritos, punhos erguidos no ar. Era irracional — como quase tudo que envolvia sangue, suor e o brilho dourado de uma vitória inesperada —, mas havia um consenso não verbalizado entre todos os presentes: aquela mulher, coberta de feridas e sangue alheio, parecia, de alguma maneira incômoda, digna do posto. Rainha de quê, exatamente, ninguém sabia. Mas que ela merecia o título, ah, disso tinham certeza.

    Ana, por sua vez, ainda estava digerindo. A respiração desacelerava, os batimentos começavam a lembrar que ela não era feita de pedra, e o suor já se misturava ao sangue como um lembrete pouco higiênico de que sobreviver tinha um preço.

    — Rainha mercenária? — repetiu em voz baixa, não tanto por incredulidade, mas por estar tentando entender a situação.

    Não fazia ideia do que o título significava. Não sabia se envolvia responsabilidades, um trono de espadas ou só um nome pomposo em listas de missão. Torcia só por um salário.

    Ainda assim, havia algo na frase que ativou um fio interno já conhecido. Um desejo inconsciente e persistente — não por glória, mas por posição. Por estar no topo da pilha. Mesmo que a pilha fosse de ossos.
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