Capítulo 54 - Anatomia
*Essa é uma prévia da reescrita! Ainda está crua, sem o polimento final, mas logo ganha forma. Se notar algo fora do lugar, toda ajuda é bem-vinda!
— Lembra das nossas aventuras, Gabriel? Você fingia desprezo, mas eu vi seu olhar interessado naquele livro anatômico. Tão detalhado, quase artístico. Animais são mais interessantes por dentro do que por fora…
Sentada confortavelmente atrás do balcão, Ana folheava um dos livros de ervas de sua mãe. Era um bom livro: detalhado o suficiente para entretê-la, mas incompleto o suficiente para atiçar cada vez mais sua curiosidade.
As palavras que murmurava em sua solidão não pediam ouvidos. Ressoavam soltas pelas paredes do Coroa de Ouro como se pudessem encontrar um Gabriel entre os tijolos.
Atrás dela, uma chaleira fervia devagar, como se estivesse imersa numa filosofia própria sobre o tempo. O aroma forte — um misto de terra, menta e uma porção de outras coisas que subia das duas xícaras na mesa — pairava no ar, convidativo o bastante para um chá, mas forte o bastante para um aviso.
Foi o som de um toque hesitante na porta que a arrancou daquele instante de contemplação forçada. Seus olhos, até então nublados de passado e vapores, retornaram à nitidez.
— Entre, comerciante.
O sino da porta tilintou de leve quando a visitante entrou. Os passos foram comedidos, como se cada um pedisse desculpas ao piso. A garota parou diante de Ana com o chapéu abaixado, como se aquilo fosse suficiente para esconder a vergonha, a hesitação ou o que mais estivesse tentando não mostrar.
— P-parabéns por se tornar uma rainha de prata… foi realmente rápido.
— Oh, sim, obrigada. As notícias voam mesmo. Fico imaginando em quantos ouvidos elas pousaram antes de chegar aqui.
Se levantando e esticando o corpo, a jovem milenar caminhou até a janela. Em um gesto elegante e frio, abriu-a, deixando o ar gélido entrar como se fosse parte do discurso. Nenhum grito, nenhum sermão, apenas atmosfera — que agora era densa o suficiente para cortar com uma colher.
— Cê sabe, Ana… o mundo gira em torno do dinheiro, e eu ganho o meu com informação. É como eu sobrevivo! — Maria tentou parecer firme, mas havia algo instável em sua voz. — Eu não queria ferrar com você, juro. A gente ainda pode ser parceira…
Ana não respondeu de imediato. O silêncio foi, de longe, mais eficaz do que qualquer acusação. Sem tirar os olhos da jovem à sua frente, virou-se e recolheu o bule da chaleira.
— Sente-se, não vamos conversar com você em pé. — Com calma, despejou o líquido quente nas xícaras. As ervas, antes repousadas no fundo, subiram como se finalmente tivessem sido convocadas à vida. O aroma se intensificou. — O que acha disso?
Maria, hesitante, pegou o pequeno livro oferecido. As mãos tremiam, mas seus olhos mostravam algo mais firme — o traço de quem, apesar dos erros, sabia o valor do que estava lendo. Percorreu as páginas como alguém acostumada a extrair o essencial de qualquer texto em segundos, olhos voando sobre os registros com precisão.
Seus dedos pararam sobre a ilustração de um lobo — talvez o mesmo do qual comprara ossos. Depois sobre pequenos animais, depois em monstros que, à memória imediata, não pareciam familiares.
— É pequeno, mas… incrível. Nunca vi um registro tão detalhado da fauna local — disse, a voz ainda tensa, mas agora com uma sinceridade que não parecia forçada.
— Sim, incrível, mas incompleto. Inútil, na prática. Antigamente eu tinha algo melhor. Bem melhor, era primoroso — disse Ana, afundando um pouco mais na cadeira, como quem se acomoda não só fisicamente, mas existencialmente.
Pegou o celular rústico que mais parecia um tijolo com pretensões tecnológicas e colocou uma música instrumental suave. O contraste deu à cena um tom levemente surreal, como se alguém tivesse esquecido de avisar que aquilo ainda era um momento tenso.
— Esses registros… — ela continuou, balançando a cabeça devagar, como quem revisita um velho trauma de estimação — trazem boas lembranças. Planejo reescrever este antigo livro. Só que direito, claro. Quero catalogar cada criatura que cruzar meu caminho em futuras viagens. Nada muito ambicioso, só algo próximo de uma enciclopédia definitiva.
— Mas… já tem bastante gente fazendo isso. Não seria mais fácil só comprar os estudos prontos?
— Pode soar presunçoso, e provavelmente é — disse Ana, entregando uma xícara à garota — mas confio mais na minha análise do que em qualquer compilado de estudantes entediados. Posso afirmar com segurança que sou uma mestra nisso. — Sorriu. — Estudei profundamente todas as formas de vida da Terra!
Maria piscou, tentando decidir se era exagero ou só mais um daqueles comentários que Ana dizia para ver a reação dos outros.
— Acho que isso não é… humanamente possível.
— Claro que não. Eu exagerei. — Ana deu de ombros, como quem concede um ponto com gosto. — Deixe-me reformular: estudei a fundo quase todas as formas de vida daquela porcaria de Terra. A antiga, pelo menos. A atual é um zoológico sem manual.
Levantou-se, como se precisasse movimentar o corpo para reorganizar o raciocínio. Caminhou até o balcão, revirou algumas coisas e voltou com um pacote amassado de biscoitos.
— Gosto de algo pra comer com o chá. Aceita?
Maria acenou lentamente, e, sem perder a visão da mulher a sua frente, bebericou um pouco da quente bebida. Ergueu as sobrancelhas em surpresa, inesperadamente estava mais gostoso do que pensara, então deu um novo gole, desta vez maior. Ana, por sua vez, olhou para o nada, e logo, continuou.
— Sabe, sempre tive um arrependimento nas minhas viagens. A cada novo animal dissecado, a cada esboço, cada anotação… havia sempre esse incômodo: meus registros nunca estariam completos.
Voltou ao centro da sala, abriu uma pequena maleta médica com a calma de quem se prepara para costurar uma almofada.
— Claro, existiam livros com estudos anatômicos nas bibliotecas, mas tente me entender! Eu tinha minha própria coleção, você entende a minha angústia por não poder escrever justo sobre a espécie que dominou o mundo? Era uma pena, né?
Seu rosto se aproximou do da comerciante, eufórico, fazendo suas respirações quase se entrelaçarem.
— Eu… não sei se entendi. Mas acho que… é melhor a gente terminar por aqui. Me desculpa, Ana…
— Desculpar? Você entendeu errado, pequena garota. — Ana inclinou a cabeça. — Você entendeu errado. Eu não estou brava com você. Afinal de contas, se não fosse por sua vendinha de informações, eu não teria conhecido aquela mulher assustadora. Minha salvadora! Só… não quero que isso se repita.
— Não vai. Eu prometo.
— Promessas são algo tão volátil.
“A cabeça dela está totalmente fodida”, pensou a jovem comerciante, se segurando para não correr dali de imediato. Engoliu em seco. Ou tentou. Difícil dizer se ainda sentia algo na garganta. Foi nesse momento que sua xícara escorregou das mãos e estilhaçou no chão, levando com ela o restante do chá.
— Ah, funcionou mais rápido do que imaginei! — Ana exclamou com a naturalidade de quem comenta sobre o ponto de cozimento de um bolo. Pegou um bisturi da maleta, manuseando-o como uma extensão da mão. — Essas ervas nutridas com mana são de cair o queixo.
Maria sentiu as lágrimas escorrerem antes de se dar conta de que não estava mais no controle. Um formigamento tomou conta dos membros, não exatamente dor, mas uma ausência perturbadora de sensação.
Já não podia falar.
Já não podia gritar.
A jovem comerciante não era estúpida, conseguia ligar A com B do que foi dito nos curtos minutos em que bebeu seu chá, entendeu que o destino lhe reservava algo que não era agradável, então só pôde torcer para que o anestésico a fizesse apagar de uma vez só. No entanto, para sua surpresa, não desmaiou, e isso tornou tudo muito mais desesperador.
Diante dela, Ana apenas sorriu. Um sorriso pequeno, calmo, satisfeito. Não havia raiva, nem pressa.
Abriu novamente seu pequeno caderno.
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