Capítulo 26: Planos e Desavenças
Uma pequena neblina produzida pela poeira causada pelo golem ainda pairava sobre aquele pequeno quarto agora bagunçado e destroçado. Os olhos de alguns dos aventureiros estavam fixados ao teto aberto, iluminados pela luz do sol, que tombava por algumas partes do piso prateado.
— Droga! Eles conseguiram fugir!
Um dos aventureiros protestava, seus punhos batendo contra aquele chão.
— Golems não são comuns aqui em Hengracia. Como eles tem um? — questionou outro, ao lado do seu companheiro.
— Isso é o que menos interessa — disse um dos soldados. — Tendo golem ou não, é inadmissível que eles tenham fugido quando estavam tão perto! Maldição!
— Deixem de agir como criaturas irracionais — disse o grandão de braços cruzados. — Ao invés de nos lamentamos, por que não bolamos um plano para capturá-los?
— A essa altura eles devem estar fugindo para fora da capital ou quem sabe ainda, do reino. Não tem como apanhá-los. — Alguns dos aventureiros concordaram com a palavra deste homem, que sentava sobre a cama.
— Burros, acham mesmo que eles fugiriam assim sem mais nem menos?
— Wase tem razão — concordou o soldado com as palavras do grandão. — Princesa Meredith tem um grande apego pela sua família. Pelas informações que obtive, ela ainda não teve contato com sua família desde que cometeu assassinato. No mesmo dia, ela saiu para o castelo de Hengracia. E conhecendo a princesa, ela não os abandonaria sem ao menos manter um último contato.
— É aí onde eu queria chegar — disse Wase. — Vamos cercar a região da mansão da princesa Meredith.
— Me parece uma ideia perfeita!
— Pode funcionar!
— Estou dentro!
Todos os aventureiros e soldados presente naquele espaço concordaram com o plano do Wase.
— Nesse caso, comecemos os preparativos! — Os olhos de Wase brilhavam no intenso vermelho enquanto ele sorria, mostrando todos seus dentões.
Um dia havia se passado após a fuga do Jarves e seus companheiros. Agora, a princesa Alexandra, que havia recuperado suas energias depois de um tempo em repouso, caminhava pelos corredores do castelo. Ao seu lado estavam duas pessoas. Na sua direita, um homem trajado de uma batina negra e, na sua esquerda, uma linda mulher enfeitada por vestes de empregadas.
Seus passos pararam de ressoar pelo castelo quando chegaram ao seu destino. Estavam em frente a uma porta, guarnecida por dois soldados, que portavam lanças nas mãos.
Os soldados encurvaram a cabeça e, com as mãos colocadas na alça das fechaduras, abriram aquela porta que causou um leve crepitar. Alexandra e seus dois acompanhantes colocaram os pés naquele tapete todo azul que cercava aquele quarto luxuoso.
A primeira vista, seus olhos se depararam com duas mulheres. Uma delas era a princesa Istar. Ela estava sentada, enquanto uma empregada penteava suas madeixas douradas.
Istar pôde contemplar as pessoas que estavam no seu quarto pelo seu espelho redondo.
A empregada parou de pentear as madeixas da princesa, afastando-se. Istar, levantou-se da sua cadeira, enfrentando os olhos severos de sua irmã.
— Irmã, vejo que acordou… — Istar sorriu, mas sua gentileza não foi correspondida. O semblante da sua irmã continuava sério. — Zik, o que faz aqui? — Seus olhos foram direcionados ao homem de batina negra ao lado da princesa.
Antes que Zik pudesse responder, Alexandra emitiu:
— Irmã, vou direto ao assunto.
A expressão séria da sua irmã, aliado ao Zik ao seu lado, mexeram com o semblante da Istar. Ela sabia que boa coisa não era.
Istar não era tola para não perceber o que estava acontecendo ali. Ela ligou as peças e concluiu a possível causa de sua irmã estar ali.
— Daquela vez… Você tentou me envenenar?
Alexandra foi tão assertiva e direta quanto uma flecha. Istar arregalou os olhos, seus traços se contorcendo em uma expressão de espanto.
— O-O-O que você está dizendo? — gaguejou. Seus olhos escarlates foram tomados pelo brilho da luz branca, que girava na palma da mão direita de Zik.
— Apenas responda.
— Como pode duvidar da sua irmã? Ainda mais um assunto que já havia sido ultrapassado faz semanas!
— Sim ou não, é o que eu quero ouvir como resposta.
Princesa Istar mordeu os seus lábios ligeiramente, se sentindo jogada contra parede por sua irmã.
— Eu sei que a princesa Istar jamais faria tal coisa, não é princesa? — questinou Zik, observando Istar. — Então apenas responda e prove que a princesa Alexandra não tem nenhum motivo para duvidar de você.
— Zik, até você entrou na dela? Como pode duvidar de mim? Eu que sempre apoiei a minha irmã em tudo! Por que logo eu tentaria envenená-la?
— Você não acha que está demorando, Istar? — Princesa Alexandra cruzou os braços e começou a bater com um dos pés no chão, impaciente.
— Como assim demorando? Eu não tenho que responder uma pergunta tão óbvia! Nunca pensei que você fosse duvidar justamente da sua irmã!
— Istar, se você confessar tudo, eu prometo não contar para o papai. Ficará apenas entre nós.
— Por que tá falando como se eu fosse a culpada?! Quando eu não fiz nada!
A esfera acabou mudando para a cor vermelha.
— Hein? — Istar arregalou os olhos, havia cometido uma grande besteira.
— Ainda vai continuar negando?
— É claro! — Istar apontou o dedo para a esfera. — Afinal de contas, essa esfera é inútil! É, isso mesmo! Eu vi quando ela não funcionou contra aquele homem!
Alexandra olhou para Zik.
— Perdão, Srta. Istar, mas acho que deve estar equivocada. A esfera funcionou perfeitamente, no entanto, o que aconteceu naquele dia foi algo bastante peculiar. A minha esfera apenas não conseguiu identificar, se era mentira ou não, o que não é o seu caso.
— Eu não acredito nisso! Sua esfera é inútil e é isso mesmo!
— Brigitte… — Alexandra atraiu os olhos daquela empregada. — Istar quis me envenenar para tomar o meu lugar como a primeira princesa na linha da sucessão, certo?
— Isso mesmo! — disse Brigitte. A esfera ficou verde.
“Aquela empregada… Aquela maldita empregada!” Com esses pensamentos,
Princesa Istar estreitou os olhos e apontou o seu dedo indicador contra Brigitte:
— Essa empregada mente e a esfera é inútil! Sua invejosa! Como ousa mentir para uma princesa? Não teme a morte, por caso? Eu vou mandá-la para guilhotina quando isso tudo terminar!
Ao ouvir isso, Brigitte sentiu um leve arrepio e pressionou a mão contra o peito.
— Você não está em posição de fazer ameaças a ninguém, irmã.
— Vai mesmo acreditar na esfera inútil e numa empregada qualquer?
— Você tentou envenenar a nossa prima Meredith também, não tentou? Por que não tentaria o mesmo comigo?
— Quem disse isso?! Digo, eu não fiz nada disso!
— Quem disse isso, não é? Bem, isso é seu, não é? — Alexandra retirou uma faca da sacola que Brigite carregava. — Essa adaga…
— Onde você pegou isso?!
— Ao que parece, você deu uma substância mágica para os soldados que controlavam o quarto da Meredith perderem a consciência e, quando acordassem, não se lembrariam de nada do que havia acontecido segundos antes de beberem a substância. Só que, para o seu azar, Zik usou de seus talentos para forçar os soldados a se lembrarem de tudo o que havia acontecido.
Istar havia sido colocada contra a parede.
— E mesmo assim, ainda vai continuar a negar?
— Tá! Tá! Tá! Quer saber, fui eu mesma! Eu é quem queria eliminar vocês duas! Meredith e você, minha querida irmã!
— A cobra começou a se revelar… — murmurou Brigitte.
— Mas e daí? Vocês têm sido uma pedra no meu caminho! Não é o normal eu querer removê-las? Alexandra, a preferida do papai e a famosa usuária de magia de ilusão! Enquanto eu, apenas uma princesa que só usa uma magia tão inútil quanto a magia de cura!
— Era isso então…
— Eu ainda não terminei! Você queria tanto ouvir a verdade, não é mesmo?! Sim, Alexandra, eu tenho inveja de você e da Meredith! Vocês duas sempre tiveram o amor e o carinho dos seus pais, enquanto eu, uma mera princesa com magia inútil, só recebi nada mais que desprezo! Da mamãe, do papai, do irmão! De todos!
— Isso não é verdade.
— O que é verdade então, hã?! — Istar mordeu os lábios, soltando lágrimas. — Se você não existisse, quem sabe eu conseguisse ter algum mérito!
— Então quer dizer que, para você, os méritos são mais importantes do que a vida da sua irmã?! É isso, Istar?!
— Sim! Afinal de contas, você nunca se importou com os meus sentimentos!
— De onde tirou isso? Para de inventar, por favor!
— Você já teve a verdade, não teve? Agora saia do meu quarto, Srta. Primeira princesa e lixeza Zik e inutileza empregada! Todos fora! — Istar apontou o dedo para porta. — Agora!
— Agir como criança não vai diminuir o peso do seu crime, Istar.
— Estou nem aí! E só um aviso, Alexandra! — Istar apontou para sua irmã. — É melhor se cuidar, porque eu vou roubar até o que você não tem de você!
— Já ouvi o bastante. Guardas!
Os soldados entraram pela porta.
— Prendam a segunda princesa!
Os soldados ficaram um pouco confusos, mas não tiveram escolha se não avançar em direção à princesa. Na realeza, a primeira princesa na linha da sucessão tinha mais autoridade que a segunda, podendo executar diversos papéis reais, incluindo governar o reino na ausência do rei, da rainha e do príncipe herdeiro, caso tivesse atingido uma idade igual ou superior aos dezoito anos.
— Não me toquem, abutres! Não me toquem!
Os soldados, com rosto triste, pegaram a princesa; um por cada braço. Princesa Istar começou a se debater, balançando os pés e as pernas.
— Exijo que me soltem imediatamente! Tirem suas patas inundadas de mim! — Ela continuou gritando, enquanto os soldados a arrastavam para fora do seu quarto. As empregadas contemplavam toda aquela cena boquiabertas, mas, no fundo, no fundo, elas haviam ganho uma bela fofoca para contar suas amigas.
Quando chegou perto da sua irmã, Istar lhe lançou mais um aviso.
— Você vai se arrepender.
Alexandra apenas deu um tapa no rosto da sua irmã, e encurvou a cabeça em seguida, enquanto sua irmã era arrastada pelos soldados novamente.
Antes que fosse retirada do quarto, Istar olhou para Zik com lágrimas ao redor dos olhos.
— Zik, me ajuda, por favor!
Zik apenas balançou a cabeça negativamente. Istar arregalou os olhos diante da expressão que Zik fazia, uma que não demostrava emoção alguma. Ele não sabia se ele estava com a cara triste ou de decepção. Com o tempo, Zik havia aprendido a reprimir suas emoções.
Istar saiu do quarto enquanto gritava com lágrimas nos olhos.
Alexandra caiu de joelhos, cobrindo o seu rosto enquanto chorava de decepção, se perguntando onde havia falhado para sua irmã se tornar uma invejosa desse jeito. Havia lhe dado todo carinho e atenção que precisasse. As duas sempre conversavam e se ajudavam quando tinham algum problema. Em nenhum momento, Alexandra havia lhe demostrado ar de superioridade.
— Princesa Alexandra, se a minha presença não for mais necessária, eu vou embora. — Zik deu as costas, começando a caminhar. Apenas quando ninguém estava olhando, ele fez uma expressão que mesclava tristeza e decepção, afinal de contas, princesa Istar era sua amiga nas horas vagas e seus encontros lhe rendiam ótimas conversas.
Brigitte agachou, batendo de leve nas costas da princesa Alexandra, que se afogava em lágrimas. A empregada que a outrora penteava Istar, também veio consolar a princesa.
— Princesa Alexandra… — As empregadas olharam para o soldado, que estava rente a porta. — O rei chegou e solicita sua presença imediata na sala do trono!
Contudo, o aviso do soldado ainda não havia chegado aos ouvidos da princesa Alexandra.
— Princesa, o rei chegou… — Brigitte sussurrou nos ouvidos da princesa sofrida.
— Diga a ele que não me sinto bem disposta.
As empregadas arregalaram os olhos. Embora Alexandra fosse a primeira princesa, era uma afronta rejeitar o chamado do rei.
— Ela disse que não se sente bem.
— Sinto muito, princesa. Mas é urgente! Se eu não voltar consigo, minha cabeça poderá parar na guilhotina!
Para o soldado falar assim, com tanto pavor, significava que era algo realmente urgente. Alexandra enxugou suas lágrimas com as mãos. Uma das empregadas levou o estojo de maquiagem da Istar e deu um jeito de remover aquelas olheiras.
Pronta e com uma ótima performance, diferente daquele rosto entristecido, princesa Alexandra caminhava pelos corredores como se nada tivesse acontecido.
Seus passos a levaram ao portão principal, que dava acesso à sala do trono. Eles se abriram, revelando a primeira vista, um homem sentado num trono dourado.
Perto ao trono, com a mão posta na alça da sua espada, estava o capitão Xavier.
Alexandra já havia concluído o porquê do seu chamado.
Ela prestou reverência ao rei e com um sorriso gentil, emitiu:
— Pai, como foi a viagem de inauguração da nova guilda na cidade de Ahrmanica?
Contudo, seu pai continuou com um semblante frio. Xavier apenas observava quieto para onde aquele desvio de assunto levaria a princesa.
— Não tem nada para me dizer?
— Eu ajudei Meredith a fugir.
— Por que? — O rei mantinha a mesma expressão diante da resposta direta dada por sua filha.
— Pelas razões que o senhor conhece muito bem. — Com essas palavras, o rei bateu no braço do seu trono enquanto franzia as suas sobrancelhas, emitindo um grito por último:
— QUE RAZÕES SÃO ESSAS, ALEXANDRA?!
Alexandra sentiu um pequeno arrepio, seu pai nunca havia gritado consigo antes. Desde sempre fora uma menina dócil, mas dessa vez ela sabia que era digna daquele grito.
— Meredith é inocente. Papai conhece muito bem a Meredith e sabe muito bem que ela não faria nada tão baixo nível como assassinar o seu noivo sem um motivo forte, e tão pouco mentir sobre um assunto tão grave quanto a destruição de Hengracia.
— Você me decepciona, filha. Logo a minha favorita. — O olhar do rei ficou ainda mais frio.
— Por que está ignorando as minhas palavras?
— Porque não fazem sentido. Você fez uma afirmação baseada na imagem perfeita que tem da Meredith, no entanto, Meredith há muito tempo deixou de ser aquela princesa que conheceu. Depois que perdeu o pai, sua cabeça já não anda tão bem.
— Como pode dizer isso, pai?
— Você acha mesmo que eu vou levar a sério algo vindo de um mendigo?
— Mendigo?
— Ao que parece, o homem em questão era um mendigo que vivia de esmola. Quando apanhou a chance certa para deixar a vida de miséria que tinha, começou a inventar essas histórias tolas que Meredith acabou acreditando.
— Isso não é possível…
— Minha pobre sobrinha foi enganada e forçada a cometer um asssinato por esse mendigo no seu momento mais frágil! E isso é imperdoável! Ainda bem que Xavier se adiantou e já mandou as guildas atrás desse maldito manipulador!
— Eu posso garantir que Jarves não é esse tipo de homem. Se fosse para enganar minha prima, ele não teria chegado tão longe! Xavier viu como ele correu risco de vida para salvar ela! Quem mais faria isso?! Quem enfrentaria o rei do jeito que ele enfrentou? Todo mundo sabe que mentir contra o rei resulta em morte!
— Xavier, o que acha? — O rei direcionou os seus olhos ao capitão.
— Eu acho que sua filha foi envenenada pelo homem em questão. Pude ver de perto, as palavras manipuladoras que ele sussurrou no ouvido da princesa para que se opusesse a mim. Ademais, conseguiu colocar o Alecrim contra mim usando os mesmos métodos.
— Não, isso não é verdade… — Alexandra não queria acreditar. — Eu não fui manipulada por ninguém!
— Então estamos diante de um homem perigoso? Certo, aumente o nível de emergência para S! Que esse homem seja caçado morto ou vivo a preço de um milhão de moedas de ouro!
Em resposta ao rei, Xavier balançou a cabeça afirmativamente.
— O quê?! Pai! Não pode fazer isso!
— E quanto a você, minha filha, ainda que tenha sido manipulada, terá parte na culpa para poder refletir sobre suas ações.
— O quê?!
— Depois de amanhã, seu irmão e sua mãe chegaram com o seu noivo, terá apenas um dia para refletir na prisão sobre as suas ações, sem direito a água e nem comida.
— Pai! Não pode fazer isso!
— Xavier, faça o favor de levar a minha filha para a prisão.
— Sim, senhor. — Xavier assentiu, encurvando a cabeça.
— Pai! Eu não o reconheço!
— Muito menos eu, filha.
— Vamos, princesa Alexandra… — Xavier tentou encostar na princesa, mas ela afastou.
— Não precisa tocar em mim. Tenho pés. — Com uma cara emburrada, Princesa Alexandra lhe deu as costas e começou a andar, sem nada dizer. Sabia muito bem que tudo que dissesse ao rei seria em vão e só o deixaria mais irritado.
— Jarves, não é? — disse o rei, olhando para os portões da sala do trono se fechando. — Enquanto eu viver, eu vou te caçar até os confins da terra!
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