Índice de Capítulo

    div

    Júlia

    Devo ter merda na cabeça.

    — Correndo, idiota. Já disse que não vou pegar leve só por ser minha subordinada.

    Não consigo respirar.

    — Você devia pegar mais leve com todo mundo, isso sim! É sexta-feira! 

    — Deixa de ser mole, menina. Tá todo mundo correndo quieto e você não cala a boca. Até parece que te obriguei a ficar aqui.

    Não me obrigou, eu sei. Mas não quero continuar a ser medíocre.

    A Ana me irrita. Me irrita mais que todo mundo. Odeio como ela é forte sem parecer fazer qualquer esforço. 

    Não, odiar demais, eu… bom, até que gosto dela, mas ainda me irrita. Tenho certeza que irrita todo mundo que tá junto comigo também. 

    Chegou ontem cheia de marra, fez aquela exibiçãozinha que deixou todo mundo queimando de animação pra começar a aprender a se mover daquele jeito. E então?

    “Não tô aqui para passar a mão na cabeça de ninguém, mas sim para fazer com que cada um de vocês mereça o salário que recebe.”

    Queria deixar claro que não tô recebendo esse tal salário, uma injustiça! Gastar o próprio dinheiro suado dói tanto! 

    Ninguém ligou muito, treinar pra eles era ficar balançando pedaços de ferro embaixo do sol. Mas eu conhecia aquele sorriso no canto da boca daquela mulher maligna.

    “Bom, bora começar. Corram ao redor do campo.”

    Foi difícil não bater na minha testa com a ousadia. Quem corre hoje em dia? Mal tive tempo de olhar ao redor, e já encontrei o primeiro soldado pronto pra reclamar.

    Ana também notou, e encostou nos lábios dele antes que abrisse a boca. É preparada, a desgraçada.

    “Vejam, não peço nada que eu mesma não faça.”

    Como iam reclamar com alguém que não estava mais lá? Disparou para o campo. Todo mundo se entreolhou, o que foi bom, eu tinha certeza que minha cara tava vermelha de vergonha. Líder… não pode ser mais normal?

    Por sorte logo começaram a correr também. Menos mal! 

    “Mas que merda é essa?”

    Ou mais mal, já que quando ela se virou pra ver, tinha gente conversando, usando dispositivos que faziam sabe-se lá o que, e alguns até mesmo lendo durante o trote. A líder com raiva dá medo, não deviam fazer isso.

    “Ahn? Estamos correndo, não foi isso que você pediu?”

    “Bom, o erro foi meu por não explicar bem algo que todos já deviam saber.”

    Achei que ela ia gritar com ele pela pergunta estúpida, mas surpreendentemente ela só parou e começou a riscar o chão.

    “Quando você fortalece seu corpo com mana, soldado, a capacidade de cada célula é expandida até seu limite.”

    Desenhou um tipo de fluxo. Era interessante, mas me pergunto o porquê não teve essa mesma paciência quando nos treinou também. Humpf!

    Continuou.

    “Desta forma, para fazer com que evoluam ainda mais, vocês devem usar a força explosiva gerada… bom, digamos que artificialmente, ao máximo, algo que não é fácil de se fazer. Então para de usar a porcaria da mana pra que vocês realmente melhorem. Um corpo naturalmente mais forte vai permitir que a mana seja absorvida mais rapidamente.”

    A declaração não convenceu muito, mas teve gente que obedeceu. Pararam o fluxo nas veias e tentaram correr. É bom frisar o tentaram, porque aquilo foi horrível. Todo mundo ofegava depois de só meio quilômetro, me senti orgulhosa por um instante por estar mais bem condicionada que esses caras de rank alto.

    As reclamações continuaram, mas Ana só ignorou. Gosto dessa parte dela, é bem decidida.

    Mas talvez esteja exagerando um pouco… já é meu sexto dia correndo, eu tô só o caco.

    Só mais um pouquinho pro Sol se pôr… Só mais um pouquinho…

    — Tá de noite!

    O tapa na nuca veio antes que eu pudesse sequer ver. Dessa vez merecido, gritei alto demais.

    — Sai logo daqui, Júlia. — Ana sussurrou. — Todo mundo, liberado. Descansem bem esse fim de semana, segunda vai ficar um pouco mais complicado.

    Ela é bruta, mas eu sabia que também estava ansiosa pra descansar. Eu via ela na taverna todo santo dia, uma alcoólatra nata, por mais que não admitisse.

    — Até segunda! 

    Corri e… apaguei.

    Quando cheguei na cama, meu corpo literalmente desabou. Dormir é tudo de bom.

    Mas tive pesadelos onde estava correndo. Líder desgraçada.

    Por sorte, a luz da manhã me salvou antes que minhas pernas rachassem. Me estiquei, não renovada, mas bem o suficiente. Tenho que levantar cedo, afinal, hoje é minha primeira folga!

    Mal tive tempo de ver a cidade, vou aproveitar o dia ao máximo!

    — Um dia sem o peso da armadura e esse céu maravilhoso….

    Respirei fundo. Hoje vai ser um bom dia.

    Eu devia ter trazido mais roupas, as minhas são meio chatas. Não que fosse importar, tudo lá de baixo era chato em comparação as coisas daqui. Bom, não vou deixar esse sentimento de pobreza estragar essa bela manhã.

    Um pão meio murcho, um gole rápido de café, e finalmente aproveitar a brisa. É forte, mas toca suavemente o rosto, além do cheiro de especiarias que se espalha por todo lado, uma das coisas que mais gosto daqui.

    Tudo tem tanta vitalidade. Podia passar horas caminhando por esse mercado. Eles vendem até mesmo joias! Tão com tempo sobrando mesmo, mas é bom, já vou comprar pra não esquecer de levar algumas pra Eva antes de descer, criança adora essas bobeiras. Talvez alguns chaveiros engraçados e ímãs de geladeira também valham a pena, vai saber se nunca mais volto aqui.

    Esse, esse. Esse também.

    Aquelas frutas são estranhas. Um vermelho tão vivo… me lembra um cacto, mas também uma maçã. É engraçada, vou levar pra provar mais tarde. Agora, preciso comer algo de verdade.

    Hmm… A variedade de restaurantes não é tão grande… que tal… Ahn? 

    O que aquele trouxa tá fazendo aqui? Bom, se ele também for almoçar, pelo menos a gente já bota o papo em dia.

    — Ei, Alex!

    —————————————————

    Alex

    Tudo dói.

    Andar dói, a roupa tocando os hematomas dói, pensar dói.

    Meus punhos doem.

    — Me vê uma cerveja, por favor.

    Falar dói.

    Pagar para apanhar é a ideia mais imbecil que já tive.

    Ainda assim, é inegável que aquele maldito templo dourado era incrível. Pedras lisas com um nível de desgaste ideal, madeira envelhecida, um cheiro de tranquilidade… isso porque nem sabia que tranquilidade podia ter cheiro, mas porra, ela tem! 

    A única parte ruim era o cheiro de incenso. Sentir vez ou outra até que é bom, mas deixa meu nariz irritado quando é tão forte… tô ficando ranzinza, preciso parar de andar com a Ana.

    Bom, o que importa é que aquele lugar intrigante me pegou totalmente desprevenido. Quem diria que ruas serpenteantes no canto sul de uma baleia esconderiam tal psicopata?

    Um pátio simples e um homem velho com um robe cor de terra. Nem um tatame, nem um pergaminho de sabedoria antiga na parede, só um homem em meio ao vazio, e ainda assim sua presença parecia encher o lugar.

    No começo era tudo serenidade, e então… mano, aquele soco… aquilo foi intenso! 

    Vajramushti, ele disse. “Cada golpe, cada bloqueio, tem um propósito maior. Não é apenas combate; é um caminho para o autoconhecimento.”

    Gosto do conceito, apesar de não entender bem. Autoconhecimento é algo que com certeza preciso agora.

    — Ei, Alex! 

    Sorte que meu corpo não se mexe nem com eu querendo, se não ia cair da cadeira de susto com o grito dessa idiota.

    — Cê tá bem? Parece que um caminhão te atropelou! 

    Ela fala rápido demais, coisas demais. Acho que precisava disso agora.

    — E você acha que tá melhor? Tá parecendo um panda com essas olheiras.

    Ela revirou os olhos. Não parece que já tô há uma semana sem ver esse povo.

    — Amigo, traz uma pra mim também! 

    — Vai beber no meio da tarde? 

    — Eu não ia, só que você me deixou deprimida. Mas fala, homem! De onde veio essa cara toda fodida?

    Bruta demais, mas não tem como ficar com raiva dessa idiota.

    — Só um pouco de treino. Um pouco mais violento do que pensei, mas tô bem. Tudo tá tão corrido ultimamente, é bom ver um rosto familiar.

    — Então tem alguém mais escroto que nossa líder?

    — Não é mais escroto não, mas talvez um pouco mais… injusto.  

    Injusto.

    A palavra encaixa bem com aquele filho da mãe. Um sorriso gentil que esconde uma canalhice sem tamanha. Ainda consigo ouvir meus ossos estalando…

    “Errado! Faça mais uma vez.”

    “Errado! Sinta o movimento fluir de dentro para fora.”

    “Errado! Cada golpe deve ser como a batida de um coração: necessário, preciso, vital”

    Bom, vou ter que aguentar uns socos pra aprender a bater. — Uberto Gama, o cara é brasileiro, coincidência demais.

    — Que bizarro.

    — Muito! — não pude deixar de rir — Mas ainda vou ver se pego umas dicas com a Ana.

    — Não recomendo, ela tá um saco ultimamente, não dá um respiro.

    — Vou mesmo assim, já vou aproveitar pra pedir mais dinheiro adiantado… Mas e aí, no fim realmente ficou com os soldados?

    — Sim, acho que preciso voltar pro básico, se não, num vou acompanhar o nível dessas “missões especiais”.

    Ela deu um gole grande demais, tô até vendo o rubor subindo do pescoço. Já, já a cara vai ficar igual da cor do cabelo, como sempre. Bom, preciso beber também.

    A cerveja aqui é estranha; alaranjada, anormalmente espumante. No meio, uma faixa hora azul, hora roxa. O gosto até que é bom, mas queria uma tradicional pra acompanhar meu humor.

    — Cê tá certa, penso o mesmo, principalmente agora que tive que largar a lança. Agora que decidi que vou sair no soco, me sinto um novato de novo.

    — Você… realmente largou?

    Levantei a mão. Meus dedos trêmulos, mesmo quando eu tentava ao máximo mantê-los parados, foram resposta mais do que suficiente.

    Por sorte é a Júlia quem tá comigo, ela não vai deixar o clima baixar.

    — Novos começos, novos começos! Agora vamos deixar esse papo de treino de lado, é minha folga! 

    Mais um longo gole. Mais vermelhidão.

    — Sabe, Alex, eu acabei não te agradecendo direito pela ajuda nas cordas, eu podia ter estragado a missão por puro descuido…

    — Pura burrice, não descuido.

    — Se liga, babaca, tô tentando pedir obrigado e você me enche o saco! 

    — Então para de agradecer à toa, vamos apenas comemorar que sobrevivemos

    Ela sorriu. É um sorriso bonito.

    Devo estar meio bêbado também.

    — Tá, então às novas experiências! E a sobreviver a elas!

    Uma caneca tão alta chama mais atenção do que o necessário. Mas que seja.

    — À sobrevivência! — gritei, a acompanhando. 

    A música se tornou mais alta.  Júlia sorriu ao ver um casal tentando dançar.

    — Bora?

    — Bom, por que não? 

    Não sei dançar. Meu corpo dói.

    Hoje foi um bom dia.

    —————————————————

    Felipe

    — Fica quieto um pouco. Pelo amor, hein!

    Ela fala como se fosse fácil ficar parado enquanto alguém perfura o seu osso.

    Se eu falar, ela vai brigar mais, então vou só apertar os dentes e aguentar. Ver os soldados treinando logo a minha frente ajuda com isso. Tem gente sofrendo mais do que eu.

    — Isso não é insano demais?

    — Eles estão aguentando, não?

    — Sim, mas… tem muita gente indo embora.

    Levantamento de pesos extremos, simulações de combate que chegam a momentos mais perigosos do que deveriam, corridas intermináveis. Entendo quem desiste.

    Não acho que Ana não saiba o que está fazendo, eles estão realmente melhores, e o quanto ela os ensinou não tá escrito, mas a palavra “limites” foi jogada fora faz tempo.

    Consigo ver o Pedro olhando de vez em quando, lá no fundo. Aquelas sobrancelhas franzidas não mentem, ele tem sérias objeções pros métodos da líder… mas não é da minha conta.

    Merda, como isso pode doer tanto?

    — Para de se meter no meu treinamento e me passa o maçarico. — girou o corpo — Firmeza nos pés, soldados! Assim podem aguentar um impacto sem cair. Vamos, ataquem novamente!

    A parte do maçarico é sempre a pior. Nas outras três tentativas eu pude sentir o cheiro da minha pele queimando.

     Arde pra caramba…

    — Vai, tenta.

    Tentar, no entanto, é uma parte interessante.

    Ver ela derreter o aço vez após vez, montar as peças uma de cada vez, desenhar as runas… é sempre extraordinário.

    — Opa, opa, opa! 

    A exclamação veio antes do pensamento. Era devagar, muito, muito devagar, mas meu braço se ergueu até a altura do ombro! Funcionou! 

    O mais engraçado era o sorriso orgulhoso na cara da Ana. Uma felicidade genuína por ter finalmente conseguido.

    — Talento eu não tenho, mas ai de quem disser que não sou esforçada — riu alto, chamando atenção de todo mundo — Vou pegar alguns livros ainda hoje, ainda essa semana a gente vai ter um braço ainda mais funcional que esse, prometo.

    — Funcional é uma palavra forte…

    — Aaah, mas deu de ser piadista agora. Toma vergonha na cara e vai comprar mais peças, as desse aqui vão pro lixo.

    — Combinado…

    Era o caminho de casa, então não tinha prob…

    — Ei, Ruiva! 

    Rui… va?

    Olhei pra Ana instintivamente, ela me olhou de volta, deu de ombros.

    — Alex! No fim realmente apareceu!

    A Júlia… acenou de volta? 

    Esse mundo tá doido mesmo, eu vou ir comprar as peças.

    — No mesmo horário amanhã?

    — Sim, sim. Lembra de tirar esse braço aí antes de vir…

    A Ana ainda parece atordoada pela interação da dupla de idiotas.  Mundo doido, mundo doido…

    Me voy! 

    É estranho ver ruas tão movimentadas a essa hora da tarde todos os dias. Sinto como se todos por aqui estivessem em férias eternas, só deixando um dia passar atrás do outro. Nem mesmo os vendedores parecem querer trabalhar de verdade, me lembram minha vó, que passava horas em seu mercadinho caseiro mesmo depois de aposentada. 

    Trabalham por tédio.

    Acredito que devam subir aqui apenas depois de ricos, como se fosse um último retiro para quem se cansou de correr pelo mundo. Beber um pouco pela manhã, passear sem rumo pela tarde, brigar um pouco na arena norte, e por fim voltar a beber pela noite.

    O festival diz muita coisa sobre a sanidade do lugar. Sorriam mesmo com as ruas encharcadas de sangue — e não só dos invasores.

    — Ei, garoto, vai voltar pro galpão hoje?

    — Vou sim, preciso de mais alguns lotes de conectores — eu disse, levantando o braço naquele ritmo arrastado. — Olha só pra isso, finalmente se moveu.

    Me pergunto quando comecei a sentir menos medo dela, simplesmente aconteceu.

    Não que o olhar por trás daqueles óculos redondos tenham se tornado menos intimidantes, mas… ah, não dá pra explicar, a Colecionadora simplesmente tem algo de cativante.

    É uma mulher meio rude, mas tem uma gentileza em algum lugar ali. Se não tivesse a encontrado na primeira vez que a Ana me mandou buscar peças, tenho certeza que teria levado boas horas a mais.

    — Olha só, foi mais rápido do que pensei. — ela se aproximou, tocando de leve as runas rusticamente esculpidas. — Aquela mulher fez o implante ósseo que recomendei?

    — Pra minha tristeza, fez sim. — puxei minha manga, mostrando por baixo da casca de metal a fina haste prateada que saia de onde antes havia só um vazio. — Você podia ter dito que ia doer tanto.

    — Não achei que precisasse dizer o óbvio, garoto. Mas você parece ter aguentado bem, a maioria das pessoas sequer ousaria tentar mexer esse braço antes de umas semanas de recuperação. Uma boa compatibilidade é sempre interessante.

    Às vezes parecia que ela falava só por falar, mas, ao mesmo tempo, o interesse parecia genuíno. Talvez a familiaridade que tenho com ela acabe vindo de nossas próteses. Não que eu possa me comparar a ela; simplesmente aquele corpo está em um nível diferente dessa gambiarra pendurada no meu ombro, mas ainda é algo semelhante, certo?

    Depois disso, seguimos em silêncio até o centro de Leviathan. Lá, o prédio de nome pouco criativo esperava, como sempre: ‘Grande Salão dos Inventores e Engenheiros’. Isso me fez rir quando vi a pequena placa pela primeira vez. É como se quisessem ser discretos, mas, ao mesmo tempo, explodissem de orgulho.

    Lá dentro, a mesma cacofonia de sons e cores me esperava. Um “caleidoscópio de inovações”, segundo Natalya. Ali era o único lugar que eu via essa mulher sorrir. Não aquele sorriso debochado que ela costumava soltar em meio a conversas, mas um sorriso real, até inocente.

    Não vou mentir, eu sorria da mesma maneira.

    Numa primeira olhada, achei confuso. Protótipos reluzentes, telas exibindo projetos futuristas, paredes adornadas com esquemas e diagramas. O ar zumbia com discussões sobre física aplicada, mecânica avançada e teorias de energia que eu tinha certeza que nunca entrariam na minha mente lerda.

    Mas surpreendentemente, entraram.

    Grande parte disso foi por causa da Ana. Ela não percebia, mas adorava falar sozinha enquanto trabalhava no meu novo braço. Às vezes até mesmo gritava ao perceber que uma de suas ideias se confirmou como certa.

    A Colecionadora foi outra parte importante. Me recomendou onde e o que comprar. Falando com ela, entendi que qualquer um ali já poderia ter feito meu braço funcionar há dias atrás, mas recusei firmemente essa sugestão. Por algum motivo, senti que seria uma grande perda deixar alguém montar aquilo além da minha líder.

    Perderia certo… brilho? Bom, algo assim.

    — Fez os esboços que te disse?

    A pergunta me tirou de meus devaneios, e peguei um molho de papéis do meu casaco.

    — Fiz sim. — entreguei a ela. — Você me disse pra ficar no simples, mas pensei em alguns acessórios que poderiam ser úteis… desmontei minha arma também, acho que vai ficar boa se alinhar bem entre os músculos do antebraço.

    Por trás dos óculos, pude notar uma sobrancelha se erguendo enquanto passava por cada rascunho.

    — O pequeno peão da rainha está realmente levando a sério… as lâminas até apoio, mas ganchos?

    — Acha que não vai dar certo?

    — Até que é possível, mas tem duas limitações importantes.

    — Limitações?

    — Sim. A primeira são os materiais. Já deve ter percebido que os estoques da cidade estão bem vazios, se quer algo que seja durável o suficiente para não ser considerado só lixo, vai ter que esperar um carregamento chegar. Criaturas de rank B, pelo menos, mas recomendo usar algo acima.

    Como se eu tivesse dinheiro para isso… mas não acho que esteja mentindo. De que adianta usar materiais ruins se alguém como aquela Sombra aparecer? Não quero meu braço se despedaçando quando eu mais precisar. Suspirei.

    — Certo… e a segunda limitação?

    Natalya sorriu. Isso não parece bom.

    — Quanto mais coisa você colocar, mais fraca ela vai ser.

    — Isso é o contrário do esperado… 

    — Sim, é por isso que te digo — se aproximando com um passo, um de seus frios dedos metálicos bateu no centro do meu peito, e então, com sua outra mão, bateu no seu próprio. — Se quer um fluxo de mana suficiente pra aguentar o tranco, vai precisar estar disposto a pagar o preço.

    Vi aquele núcleo brilhar em seu peito por um segundo. Torci a boca.

    As coisas deveriam ser mais fáceis…

    —————————————————

    Brayner

    — Eu vejo o problema. Seu estilo de luta ainda está preso nas velhas formas. É Vajramushti, certo?

    — Sim, isso mesmo.

    — Até que encaixa bem com você, mas precisa se libertar mais. Ao invés de seguir tudo tão à risca, tenta alinhar a fluidez de seu próprio estilo. Tipo… bom, o fluxo deve ser algo assim…

    A Ana fala como se fosse simples, mas os golpes são totalmente diferentes dos do Alex de agora pouco. Chega a ser cômico.

    — Sinta o ritmo, a batida — ela instruiu, sua voz se tornando quase musical. — Vajramushti é a herança de Shiva, o caminho do rei. Então atinja como um! 

    É elegante, mas bruto. Me arrependo de não saber lutar melhor, gostaria de conseguir entender de verdade o claro poder que vem de cada um desses golpes. Tem algo estranho nessa mulher, me sinto lendo um livro sempre que vejo esse tipo de aleatoriedade vindo dela.

    Tenho certeza que não sou só eu que sinto isso, olha pra esse cara, dois minutos da líder e os movimentos já mudaram completamente. Se ela fosse uma professora um pouco melhor, tenho certeza que o Ironia Divina iria progredir ainda melhor. É uma pena.

    Ah, finalmente me viu.

    — Tá muito melhor, Alex. — comentou, assentindo com aprovação. — Volta aqui de vez em quando, posso te dar mais algumas dicas. — sem esperar uma resposta, veio em minha direção. — E você? Finalmente saiu da caverna?

    — É, mas não por vontade própria.

    Eu devia realmente sair mais. Não sei nem a quantos dias seguidos fiquei entre aquelas enormes prateleiras. Quem criou uma biblioteca 24h só pode ser um demônio, é uma armadilha cruel! 

    — Você precisa pelo menos tomar um Sol, vitamina D é importante. Mas e aí, conseguiu?

    — Sobre isso… não rolou, não permitiram que eu tirasse os livros de lá. Mas convenci eles a deixarem alguns separados por um tempo, consegue passar por lá pra ver no fim de semana?

    — Ah, já serve. Vou lá agora mesmo, estava finalizando aqui. — se virou para os soldados que se exercitavam ao longe, gritou. — Livres! 

    Desabaram no chão, pareciam marionetes. Ainda mais cômico que o treino do Alex, mas também mais assustador. De qualquer forma, fico feliz que ela já queria ir pra lá, estava louco para voltar.

    Por sorte, o prédio não estava muito longe. Duas ruas à esquerda, uma reta de pouco mais de um quilômetro, e, por fim, dar a volta pelo lado de fora da praça. Com passadas rápidas, chegamos antes de sequer perceber.

    — Ad astra per scientiam… Para as estrelas através do conhecimento. — Ana murmurou. — Inspirador.

    Me surpreende que ela tenha notado a inscrição tão pequena no arco da porta, um detalhe só para os mais atentos. Mas me surpreende ainda mais que ela saiba latim antigo. É um belo idioma, trás um formigamento tanto na ponta da língua de quem fala quanto no ouvido de quem escuta.

    Faz anos que não a ouvia de outra pessoa.

    — Caramba, eu não devia ter esperado tanto pra vir aqui…

    A reação dela ao entrar também não me decepcionou. Falou baixo, mas eu podia sentir um encanto verdadeiro em cada palavra.

    — Eu te disse, é uma biblioteca extraordinária.

    E era realmente um espetáculo. Fileiras intermináveis de livros em prateleiras que se movem de um lado ao outro. Sim, se movem! E melhor, silenciosamente! Quem quer que tenha feito isso, realmente amava esse lugar.

    Os monóculos disponibilizados pela biblioteca também não ficavam para trás. Mesmo eu, em meu amor pelas runas, não consegui entender como funcionam, então apenas aceitei que eram incríveis. Filtrar catálogos, localizar livros, traduzir textos, ver detalhes de todos os tipos com um mero olhar. Tem até mesmo um bloco de anotações preenchido com o simples ato de pensar. Não acho que posso viver sem isso depois de ter experimentado.

    A única parte ruim é que os usar sempre me lembram da vergonha que passei no primeiro dia. Fiquei tão animado que cometi o maior crime desse paraíso literário: falei alto demais.

    “Silêncio, por favor. Este é um lugar de estudo e reflexão.”

    Não culpo o bibliotecário, até o admiro, com aquele rosto marcado pela severidade erudita, mas ele precisava ter me repreendido ali no meio? Todo mundo olhou pra mim… Que seja, tá certo ele em preservar essa quietude.

    — Isso aqui é uma bela porcaria, hein?

    — Uma porcaria? Por quê? 

    A Ana só deu de ombros, deixando o monóculo que a emprestei em cima da mesa. Realmente ela não gostou disso? Não entendo, mas… tudo bem, eu acho.

    — Tudo aqui veio do outro mundo?

    — Sim. — respondi. — Mas dizem que alguns dos livros são reescritas do mundo pré-teletransporte. No fim é tão difícil saber que não importa mais.

    — Entendi. Parece fascinante.

    — E é. — sorri. — Aqueles ali na mesa do fundo são os que separei pra você. Só que os das runas eu até entendo, já que vamos fabricar as novas armas do pessoal, mas realmente tem interesse em histórias dispersas de Aurórea?

    Era um pedido curioso, no mínimo. Não tinha muito o que se falar.

    — Bom, é só curiosidade. Quero aproveitar que aqui tem relatos do mundo todo pra entender os diferentes pontos de vista sobre tudo o que aconteceu. Inclusive, qual sua teoria?

    — Na verdade, não penso muito nisso. — respondi. Não é um assunto que me agrada. — Tudo parece muito fantasioso, e simplesmente não houve tempo para que a humanidade entendesse tudo antes da mescla dos dois mundos, então realmente não penso muito nisso. Bom, tem gente que acredita que alienígenas nos enviaram pra lá, outros que estamos vivendo em uma simulação, outros que Deus finalmente cansou e trouxe o apocalipse.

    — Essa última parece promissora — Ana falou com um sorriso zombeteiro. Havia certo mistério ali também. — Por sinal, não tinha parado para pensar nisso, mas onde estão as igrejas? Não lembro de ter visto elas desde o retorno.

    — Você é meio alienada, né? Muita gente morreu, e isso, somado com a chegada da mana, fez com que as religiões perdessem muita força.

    — Então não tem mais nenhuma?

    — Não foi o que eu disse, tem crença pra todo lado. A maioria nova, uma mais estranha que a outra. Você só teve a sorte de não encontrar.

    — Interessante, acho que é melhor assim. Enfim, vou ir ler, vê se não some por tanto tempo novamente.

    — Pode deixar, líder.

    Ia me virar, a deixar aproveitar a leitura, mas ela colocou a mão no meu ombro. 

    — Não to brincando não, some por semanas de novo e fica sem salário.

    Eu sorri, meio envergonhado. Vou responder o que pra isso? Às vezes esqueço que sou só um mercenário.

    — Não vou esquecer disso.

    — Ótimo. Agora… esse é um bom livro pra começar?

    A capa marrom era pouca chamativa. “A breve história da humanidade em Aurórea”, dizia ali. Se fosse para uma criança, seria o ideal, mas para um adulto seria só um compilado de conhecimento comum.

    Fala um pouco da adaptação das pessoas enviadas a locais aleatórios do estranho mundo e, se eu não me engano, de como, por mais que completamente desaparecida, parecia ter existido uma civilização antiga que o habitava.

    Era uma teoria quase que comprovada, já que resquícios de construções foram encontradas ao redor do mundo, além dos artefatos que serviram de base para a engenharia mágica, mas era tão pouca coisa, que não passavam de teorias.

    Mencionava brevemente as Sombras também, mas mais lendas do que fatos. De qualquer forma, elas pareciam estar em uma situação muito parecida com os próprios humanos, já que as poucas que foram realmente vistas viviam em pequenos acampamentos.

    A ideia de uma civilização tão avançada e, ainda assim, completamente desaparecida, era algo que desafiava minha imaginação. Mas vou deixar que ela tire as próprias conclusões.

    — É bem básico, mas sim, é um ótimo começo.

    Ana sorriu, se sentou, e com um olhar de deleite, começou a ler.

    Ana piscou. E então, piscou novamente.

    E assim, em meio a uma vida de pequenos prazeres, um ano se passou.


    div


    Quer apoiar o projeto e garantir uma cópia física exclusiva de A Eternidade de Ana? Acesse nosso Apoia.se! Com uma contribuição a partir de R$ 5,00, você não só ajuda a tornar este sonho realidade, como também libera capítulos extras e faz parte da jornada de um autor apaixonado e determinado. 🌟

    Venha fazer parte dessa história! 💖

    Apoia-se: https://apoia.se/eda

    Discord oficial da obra: https://discord.com/invite/mquYDvZQ6p

    Galeria: https://www.instagram.com/eternidade_de_ana

    Curtiu a leitura? 📚 Ajude a transformar Eternidade de Ana em um livro físico no APOIA.se! Link abaixo!

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (5 votos)

    Nota