Índice de Capítulo

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    O vento frio cortava o rosto de Ana como navalhas gentis — o tipo de dor que não ameaça, mas sim te lembra que ainda está vivo. O som do ar rasgando ao redor era ensurdecedor, vibrando direto na garganta do estômago, onde mora o medo e, com sorte, um pouco de bom senso. Também havia algo estranhamente libertador naquilo. 

    Era assustador. Era delicioso.

    Rapidamente as nuvens se dissiparam como cortinas abertas, revelando o mundo abaixo em manchas de cor que gradualmente ganhavam forma. Primeiro, vieram as flores. Um campo vasto, interminável, que se estendia como se o horizonte tivesse desistido de existir em algum ponto e decidido que seria só mais girassóis dali em diante. Amarelo-ouro, dourado intenso, cabeçotes redondos que pareciam acenar preguiçosamente ao vento. Milhares, talvez milhões, todos virados para o mesmo lado, como fiéis esperando a próxima benção do sol.

    Por um instante, Ana pensou que poderia se perder ali e morrer de velhice antes de encontrar uma saída. Não seria a pior morte. Mas não era o plano para aquele dia.

    No centro daquele oceano amarelo, destoando como um pedaço de carvão atirado numa taça de mel, erguia-se a igreja. Torres altas, escuras, afiadas como dentes. Tinha certa modernidade ali, como algo remendado às pressas, mascarado por uma arquitetura gótica e um pingo intrusivo de barroco, com todo o seu charme antiquado. Não combinava com os girassóis. Ou talvez combinasse, havia uma harmonia perversa naquela visão. Na verdade, qualquer coisa combina quando você decide que o surreal é seu tema de decoração.

    Ana puxou o cordão do paraquedas no momento exato, sentindo o puxão violento que transformou sua queda em um descenso controlado. A igreja não saía de seu campo de visão, mesmo quando seus pés finalmente encontraram o solo com um impacto suave. 

    Só então a reconheceu.

    Não de forma direta, não como quem vê uma casa da infância intacta. Mas por ecos. Por rachaduras da memória. Pelos detalhes que sobreviveram ao tempo e ao absurdo das transformações do mundo. Aquela era a matriz. A velha igreja matriz Santa Ana, ou o que restara dela após uma série de distorções. Reformada. Deformada. Mas ainda ali.

    Quantas vezes havia visto aquilo durante seu tempo de colégio? Quantas horas havia gastado na praça — agora inexistente — que a circundava? 

    Infelizmente, a memória sumiu como uma névoa. Já era surpreendente que estivessem ali, para início de conversa. Ana balançou a cabeça e sentiu a grama sob as botas, o cheiro doce de flores e o aroma terroso de um campo que sabia seu valor. Respirou fundo, preenchendo os pulmões com aquela mistura natural e temporária de paz e expectativa. Não demorou para que o restante do Ironia Divina pousasse ao seu redor, como combinado. 

    Alex aterrissou com a graça de um gato, verificando imediatamente as manoplas com um movimento rotineiro. Júlia chegou um pouco mais desengonçada, mas recuperou o equilíbrio rápido o suficiente para não ficar vermelha. Felipe caiu de joelhos — não de propósito, mas não havia o que fazer com a absurda quantidade de peso que carregava.

    A cena foi um pequeno milagre: ninguém se afastara, ninguém errara o alvo. 

    — Pura sorte… — resmungou Ana, desacoplando o próprio equipamento das costas.

    Natalya foi a última, descendo como uma folha seca no outono. Ela removeu o capacete com um gesto fluido, deixando as tranças soltas balançarem no vento.

    — Aqui nos separamos — anunciou, como se estivesse comentando o clima. Seus olhos escuros pousaram na igreja por um segundo antes de se voltarem ao grupo. — Que tenham sorte, jovens.

    Ana retribuiu o olhar com a mesma medida de respeito e desconfiança.

    — Espero que consiga completar o que quer que tenha vindo fazer aqui — respondeu sem ironia, apenas não queria se meter. Sem tirar os olhos da estrutura à frente, puxou sua faca negra. — Fiquem atentos, não sabemos o que está esperando lá dentro, mas aposto que não são flores.

    Os girassóis balançaram, suas cabeças douradas inclinando-se em uníssono, como uma plateia sussurrante diante de uma piada mórbida. O grupo avançou, as botas esmagando flores sob o peso cauteloso de cada passo.

    Foi então que a melodia chegou – doce, suave, insidiosa. Flutuou pelo ar como fumaça, entrando pelos ouvidos antes que pudessem perceber.

    “Para quem partiu buscando o fim do mundo,
    qualquer lugar no mapa é direção.
    Se a vida é curta e o caminho longo,
    que nossas vozes virem canção.”

    — Vocês ouviram isso? — Alex perguntou, os dedos contraindo-se involuntariamente. Sua testa franziu-se num esforço consciente para identificar a origem do som.

    — Sim, sou eu, bobo. Como não reconhece minha voz? — A resposta tímida veio acompanhada de um riso cristalino. Uma jovem estava ali, caminhando entre eles como se sempre tivesse estado lá. Seus cabelos loiros balançavam ao vento, tão dourados quanto os girassóis ao redor.

    — Marina! — Júlia quase engasgou com o próprio choque. Seus dedos tremiam ao se estenderem em direção à amiga, parando a poucos centímetros, como se temessem que o contato a fizesse ir embora. — Não acredito que você tá aqui!

    — Acabei de chegar! — Marina sorriu. Um sorriso muito branco, muito perfeito. — É tão bom ver vocês de novo! Ficaram com saudades? 

    — E tem como não ficar? — Felipe riu, um som que começou genuíno, mas terminou em algo tenso, quase histérico. Seus ombros relaxaram visivelmente, mas os olhos permaneceram dilatados, as pupilas negras engolindo a íris.

    Ana observou a cena com os lábios apertados. Alguém deveria ter questionado. Alguém deveria ter perguntado como Marina aparecera no meio de um campo deserto, sem aviso, sem explicação. Mas a lógica parecia ter se dissolvido no ar doce e pesado, substituída por uma aceitação tranquila.

    — Mas e aí, o que fez no último ano? — Alex continuou, como se estivessem numa taverna qualquer. — Viu, Ana? No fim a gente ainda tem um manipulador! 

    — Como assim o que fiz? Fiquei só em casa. Eu avisei vocês, não avisei? — Marina encheu as bochechas.

    — Que seja, é bom ter você de volta. — Ana franziu o cenho, mas não encontrou motivos para duvidar daquilo. Balançou a cabeça para clarear os pensamentos e abraçou a pequena garota com um braço só — o outro permaneceu rígido ao lado do corpo, a faca ainda firme em punho. O cheiro de Marina estava errado. Não era o familiar aroma de lavanda e sabão simples que todos conheciam, mas algo mais doce, mais pesado, com uma nuance de carne deixada ao sol por muito tempo.

    O aroma invadiu cada vez mais suas narinas, trazendo consigo um flash de memória: cadáveres floridos em um campo de batalha esquecido. Não, isso não eram cadáveres… flores despedaçadas? Por que pensou em cadáveres? Ana piscou, confusa, e no breve instante em que suas pálpebras se fecharam, o que estava diante dela já não era Marina. 

    Agiu antes que o terror pudesse paralisá-la. Sua faca negra cortou o ar em um movimento ascendente, mas a lâmina passou através da criatura como se cortasse o nada, sem encontrar resistência, sem deixar marcas.

    — Acordem, porra! É uma ilusão! 

    Os outros despertaram com um sobressalto que fez os corpos lembrarem de  onde estavam. 

    A cena diante deles agora era outra. A tal “Marina” desaparecera, substituída por uma coisa que parecia feita de sombras e flores entrelaçadas num abraço doentio. Um verme esguio, enrolado sobre si, com pétalas que se abriam em uma imensa mandíbula rosada. Seus dentes — grandes fileiras de pétalas serrilhadas — pareciam não ter fim. A princípio pareciam bonitos, mas ninguém duvidava que eram tão mortais quanto navalhas.

    — É um Sussurrador de Pétalas! — gritou Júlia, a boca seca e a mão já em movimento para puxar a arma, mas ainda encontrando tempo, no meio do caos, para arrastar Alex pelo braço. — A gente tem que fugir! Armas comuns não vão servir pra merda nenhuma!

    Mesmo sabendo que seria inútil, girou a lâmina em um arco amplo. O aço negro refletiu a luz de forma estranha, seus padrões de dobra destacando-se como veias sob a pele.

    Para surpresa geral, a lâmina atingiu o monstro com um impacto satisfatório, reduzindo-o a uma explosão de pétalas que voaram em todas as direções, como uma maldita primavera fora de época, criando por um breve segundo uma cena bonita o suficiente para ilustrar a capa de um disco alternativo. Pena que, como tudo nesse mundo, a beleza não durava. O alívio durou exatamente três segundos – tempo suficiente para os fragmentos florais se reagruparem no ar, formando novamente a silhueta sinistra do verme.

    — Saiam da frente. Vou tentar algo.

    Felipe já estava em movimento antes que a criatura se recompusesse por completo. Seus dedos mecânicos giraram um cartucho escarlate, quase do tamanho de uma garrafa de cerveja, diretamente na palma da prótese. 

    Não parecia lá muito seguro, e o grupo recuou como se já tivesse aprendido, pela experiência ou pelo instinto, que confiar em invenções de Felipe sempre exigia uma certa distância prudente. O garoto estendeu o braço com determinação exagerada e uma luz azulada correu pelo metal, se concentrando nos dedos.

    — Espero que dê certo — sussurrou, e a explosão veio, como prometido.

    Era uma labareda densa e ruidosa que atirou o próprio Felipe para longe com uma falta de consideração impressionante. Mas as pétalas, por sua vez, também queimaram com violência, um vermelho doentio iluminando o campo de flores, acompanhada de um grito gutural, quase humano.

    — Você foi incrível! — bradou Alex, já puxando o irmão pelos ombros para tirá-lo da posição embaraçosa em que aterrissou. Apesar do olho vermelho e queimaduras superficiais por todo o corpo, Felipe parecia inteiro.

    — Parece que a Colecionadora realmente te ensinou algumas coisas — disse Ana, com um tom de quem mistura surpresa e um leve deboche. Seus olhos então escrutinaram a prótese fumegante. — Mas… quantas dessas você tem?

    — Balas com runas explosivas? Só essa. Por quê?

    Ana já não estava mais ali para dar a resposta. Na verdade, seus pés se moveram antes mesmo que a frase do jovem fosse concluída. O cheiro doce e pútrido havia voltado, espalhando-se com aquele ar de tragédia inevitável. O som de rastejar cortava a paisagem, como vento assoviando por dentes enferrujados.

    Entendendo o ponto de sua líder, o resto do grupo, com um atraso compreensível, correu logo atrás. À medida que avançavam, as pétalas se multiplicavam como uma praga festiva, tomando o campo em ondas que se arrastavam com fome.

    A igreja, que antes parecia uma ameaça, agora se apresentava como único refúgio possível. As portas de carvalho rangiram como almas penadas quando o grupo se espremeu para dentro, com pulmões já reclamando e pernas não muito felizes. A opressão da estrutura caiu sobre eles como uma cortina pesada.

    — Empurra logo essa merda! — rosnou Júlia.

    Com um esforço conjunto, as portas cederam com um rangido que não soava saudável, e foram fechadas no momento perfeito para ouvir o impacto de incontáveis sussurradores contra a madeira.

    — Bem… — Ana respirou fundo, esfregando o polegar e o dedo indicador como se tentasse apagar uma mancha imaginária. — Um ótimo começo para nossa missão, não?

    Os outros reviraram os olhos quase no mesmo ritmo, afundando nas paredes frias enquanto tentavam arrumar seus pulmões de volta na caixa torácica.

    — Que diabos é isso? Que lugar sinistro — murmurou Júlia assim que sua boca se sentiu à vontade para funcionar de novo. O olhar estava grudado na estranha estátua bem no centro do salão.

    A figura feminina, esculpida com esmero quase desnecessário, trajava uma veste leve, solta, que se agarrava ao corpo de modo fluido, quase natural demais para pedra. A expressão era serena. Um tipo de serenidade desconfortável, do tipo que não pertencia a nenhum rosto humano. Não de verdade. O olhar, ainda que inerte, passava uma gentileza tão calculada que soava pior do que ameaça, o tipo de feição que parecia dizer: “Vai doer, mas eu prometo que é para o seu bem.”

    Ana foi a única que se aproximou sem hesitar. Inclinou a cabeça, curiosa. Seu peito estava apertado, não exatamente pela figura, mas da estranha sensação que se acomodava sob sua pele, como uma lembrança velha demais para ter nome.

    — Na verdade… parece reconfortante. — murmurou baixinho.

    Os olhares caíram sob a líder com expressões repletas de ceticismo. Mas logo voltaram para a estátua, só para confirmar que o desconforto era real. Cada vislumbre puxava um calafrio pelas costas. O tipo de frio que a gente reconhece como instinto tentando dizer alguma coisa. O tipo de coisa que é melhor fingir que não viu.


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