Capítulo 26 - Néctar da Morte
Prairie Berry Winery, 23h23.
Situada nas colinas circundantes e afastada o suficiente do centro da cidade para oferecer um refúgio sereno, as uvas perfeitas que pontilhavam os prados davam ao local uma sensação acolhedora e convidativa. A arquitetura do prédio principal, que mesclava elementos de design clássico e moderno, exalava beleza.
Pensou Mikael que, por trás desse ar de sofisticação e tranquilidade, ainda existia um lado obscuro da presença dos Mephistos na região. A prática de cultivar uvas para a produção de vinho era capaz de atrair criaturas sensíveis a desequilíbrios e distúrbios nesse campo devido a uma conexão inquebrável com o solo. Essas criaturas buscavam ativamente ambientes com alto teor de energia negativa necessária para sua sobrevivência.
Mas ele descobriu, ao chegar à Prairie Berry Winery, apenas uma cena horrível de corpos espalhados pelo chão. Era óbvio, com base naquela visão medonha, que alguém havia chegado antes dele, deixando um rastro terrível de devastação.
As narinas dele foram alertadas pela combinação repugnante do cheiro pungente de sangue com o agradável aroma de uvas fermentadas.
— Isso deveria me encher de ódio, mas nem mesmo isso eu consigo sentir
Mikael sentiu uma sensação de melancolia ao caminhar entre os corpos desprovidos de vida. Mesmo diante da devastação, sua inércia era como um fio fino que o ligava ao mundo exterior.
— Pode ser que eu tenha visto coisas demais.
Observou o caos à sua volta. Uma sombra de frustração cruzou seus olhos, mas era uma frustração contida, como se as emoções estivessem distantes, inalcançáveis.
— Mesmo assim, isso não é normal. — Murmurou, desafiando sua própria apatia. — Este é um desafio difícil que preciso dar conta. O Mephisto realmente não está sozinho, e parece que sua eficácia está sendo reservada para indivíduos como nós.
No entanto, as deduções não eram aplicáveis neste momento.
— Não acredito que esse ser seja uma ameaça colossal.
Adentrando ao edifício, sentiu a vibração insistente de seu celular no bolso. Retirou o aparelho e percebeu que se tratava de uma ligação de Raven. Levou o celular ao ouvido após atender.
— Fala! Descobriu algo?
— Algo sim. O ambiente aqui… as pessoas.
— Então não foi impressão minha. Eu observava as ruas e pensava: o mundo está ficando mais lento, ou sou eu que estou acelerado?
— É real. São cascas seguindo uma programação básica. A vida já foi drenada desses corpos.
Mikael seguiu pelo corredor escuro, admirado com sua perspicácia, mas ainda frustrado por sempre tê-la que alcançar.
— Encontrou os corpos de sacrifício, então. Os rituais.
— Encontrei, e o padrão é claro agora. Essa cidade não é um palco, é uma bateria. O Mephisto está canalizando toda essa desesperança e… convertendo em força.
— A vinícola também. Tem pilhas de corpos, drenados alimentando algo maior.
— Isso confirma. Eles não se alimentam só de morte. Alimentam-se da podridão da alma. E lugares como este… — O ruído de fundo, uma batida eletrônica doentia, enfatizou suas palavras. — São banquetes.
Mikael parou diante de uma janela suja, observando a cidade adormecida.
— Então o plano é simples. Cortamos a energia e desligamos a fonte.
— Teoricamente, sim. Interromper o fluxo enfraquece a manifestação principal.
— Parece fácil. Posso iniciar uma varredura nos pontos que marquei, neutralizar os…
— Não. Não é uma operação de força bruta, Mikael. Deixa isso comigo.
— Espera — Inclinou a cabeça, perplexo. — Por quê?
— A ligação com essa energia… é, como posso dizer… sutil. Minha própria constituição espiritual me dá um… ponto de acesso. Uma sensibilidade para a escuridão que eles manipulam.
— Tá… Está dizendo que eu não tenho o toque necessário para a tarefa? E o que significa constituição espiritual? Isso me lembra a Emilly.
O silêncio do outro lado da linha se fez denso. Quase se podia ouvi-la escolhendo as palavras à medida que as descartava, numa busca por uma explicação que não a traísse.
— É difícil de dizer. — A voz dela baixou, tornando-se quase confidencial, apesar do barulho que fazia. — É como tentar explicar uma cor para alguém que nunca enxergou. A minha alma… interage com essas sombras de uma forma que a sua não pode. Sei que você é capaz, mas isto exige um toque específico. A sua abordagem… um trator não consegue podar um bonsai.
Mikael soltou um som entre o riso e o desdém.
— Soa como um pedido para me deixar de fora, e eu não gosto disso, mas tudo bem. Confio no seu julgamento… dentro do que uma Analista de Inteligência pode compartilhar.
Um sorriso despretensioso curvou seus lábios. Ele sabia que estava sendo negligente, mas preferia ignorar essa faceta de si mesmo.
Em seguida, alguns sons altos invadiram a ligação, como se a atmosfera festiva também tivesse se infundido em sua conversa.
— Pelo barulho, você não está exatamente numa reunião.
A voz dela chegou filtrada pelo burburinho, um tom mais solto que o normal.
— Encontrei um ponto de interesse. O tal do Rushmore Nights.
— O Rushmore Nights? — A surpresa de Mikael se misturou com um leve escárnio. — O mundo realmente está de cabeça para baixo. E o cheiro de álcool não te derruba ainda?
— O ar aqui carrega outras coisas. Menos uísque, mais… potencial para o terreno fértil de assuntos que interessam aos Mephistos.
— Claro. Atividades sobrenaturais entre cocktails e batidas eletrônicas. Faz todo o sentido. Mas já que você está no paraíso deles, acho que o Arthur adoraria saber como você está se dedicando à missão.
O breve silêncio do outro lado logo foi preenchido pelo som abafado de uma bassline.
— Isso é uma chantagem barata, Mikael.
— Ah, é? Chamo de reciprocidade. Mas, falando sério… o que esse lugar tem de especial para valer seu desgosto por multidões?
— Algumas causas exigem que você suje as botas. Esse é o tipo de lugar onde as sombras gostam de dançar. E eu estou só… observando os passos. Afastada da pista, para sua tranquilidade. A água mineral reina suprema.
— Vou acreditar na sua versão. Por hoje.
O ruído de fundo aumentou, engolindo-a por um instante.
— É tudo que eu tinha. Preciso voltar. A noite não vai se investigar sozinha.
— Ah, espe…
O som do desligamento abrupto da ligação impediu que Mikael sequer fizesse seu pedido a Raven. Ela já tinha uma ideia do que seria e não estava disposta a perder tempo com algo trivial.
— Por que essas mulheres me tratam desse jeito?

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