Capítulo 11
O sussurrar das rodas sobre o asfalto e o suave balanço do veículo o puxavam de volta à realidade que ele tentava fugir a cada instante. Estava perdido na penumbra dos olhos cerrados, aquela sombra tornava-se, de algum modo, seu único refúgio — um abrigo tênue, frágil como um véu de seda contra a fúria de um monstro à espreita.
“Aquele lugar…” Ele tentava sentir novamente a textura da areia molhada em seus pés, o vento dançando por sua pele e a paz que outrora sentiu. Aquela sensação de liberdade, que não estava mais lá — agora apenas a escuridão permitia esses breves devaneios fora da realidade.
“Será que um dia isso foi real…?” Seus dedos se entrelaçaram enquanto ele tentava, sem sucesso, buscar uma imagem clara em sua memória. Mas apenas sensações vagamente reconhecíveis vinham à tona, e mesmo assim, nada realmente significativo.
“Por que eu não consigo me lembrar de nada…?” Seus pensamentos foram interrompidos, novamente, pelo balanço do veículo e som de uma voz masculina por meio de um aparelho que o trouxeram de volta para a realidade.
‘Estamos em posição, aguardando a chegada da escolta, câmbio.’
O interior penumbroso do veículo tinha paredes reforçadas e contava apenas com uma luz central que iluminava parcialmente dois indivíduos sentados, cada um de um lado do veículo — ambos estavam com as cabeças viradas em sua direção em todos os momentos.
Eles vestiam roupas de couro balístico que cobriam todo o corpo, balaclavas que escondiam seus rostos e estavam armados com fuzis de assalto. Em seus ombros, estavam emblemas com um zero e caracteres em mandarim. A única diferença entre eles era a camuflagem: uma com tons em branco e a outra em dourado.
“Acho que no fim eu não consigo fugir.” Seus punhos se fecharam quando ele encarou o seu braço envolto pelo moletom preto e com uma a algema enorme que cobria completamente seu pulso — ela piscava um LED constantemente em vermelho e era de algum metal maciço e opaco que contratava com sua pele, negra e reluzente.
— Para onde estão me levando? — a voz do jovem era grave e ele se mantinha cabisbaixo, porém com o olhar direção dos indivíduos.
Nenhum deles respondeu.
— E então!? — ele elevou o tom de voz firmando seus punhos. — Por que não falam nada!?
Seus músculos se tensionam, sobressaindo suas formas através de seu moletom. Ele cerrou os dentes e fez menção de avançar, mas ao olhar para as paredes resistentes, logo se aquietou, suspirando com um semblante abatido.
“Lutar aqui seria inútil…” Ele sentiu o leve frio da algema metálica, que acompanhava uma pontada de uma agulha onde suas veias pulsavam. Não era o suficiente para atravessar sua pele, mas ainda havia o incômodo.
Ele agarrou seu cabelo crespo, apoiando os cotovelos nas coxas, enquanto cobria a visão com as palmas das mãos.
“Eu não posso desperdiçar nenhuma oportunidade…” Batucando a traseira de sua bota no chão, ele tentava mais uma vez retornar à escuridão. Mas a única coisa que conseguia sentir era um leve zunido em seus ouvidos. “Eu vou escapar!”
Um tempo depois, o veículo finalmente parou, e os dois homens à sua frente levantaram-se simultaneamente. O jovem abaixou as mãos e os encarou; um deles se posicionou ao lado da porta enquanto o outro apenas se ergueu, apoiando-se na parede de costas para a cabine do motorista.
Uma voz masculina emanou de um rádio preso ao peito do homem vestido com camuflagem branca novamente.
‘Bai Hu, estamos em formação. Prosseguir com a escolta do HBA-E-0001.’
Este virou-se para o que vestia camuflagem dourada, e este passou um cartão por um leitor próximo à porta, que se abriu, revelando a luz e os barulhos de passos pesados do lado de fora.
“Bai Hu…? Então eles não são quaisquer soldados.” O jovem algemado observou o homem de camuflagem branca, este se posicionou ao lado do que usava camuflagem dourada, abrindo caminho para a saída.
— E agora? — o jovem questionou, tentando adaptar sua visão à luz intensa do exterior. — Eu devo sair?
Os homens não responderam; apenas permaneceram parados. O jovem então estalou a língua e decidiu seguir até a porta, com passos lentos, seguindo em direção à luz ofuscante.
Ao pisar no chão bem alinhado, fora do enorme veículo preto que exibia o mesmo símbolo dos uniformes dos homens, ele sentiu o ar fresco preencher seus pulmões e os mais diversos sons alcançarem seus ouvidos: pássaros, vozes, buzinas, isso entre os mais diversos sons de uma cidade vivida.
“Onde eu… estou?” Quando sua visão se ajustou, ele percebeu os enormes edifícios reflexivos, como uma enorme cidade de vidro, principalmente um a sua frente um arranha-céu parecia tocar as nuvens; havia propagandas 3D em prédios, drones voando pelos ares, e muitas pessoas com as mais diversas vestimentas em direções dos mais diversos destinos.
Ele inicialmente girou sua cabeça para tentar ver todos os detalhes, mas sempre parecia que havia algo novo. Mas sem demora ele se atentou à sua frente — havia oito soldados que formavam um caminho — vestidos de preto, com coletes militares e também armados com fuzis.
O jovem olhou para a cena que se desenrolava — havia homens e mulheres e todos o encaravam apenas com os olhos, muitos demonstrando raiva aparente em seus semblantes, e isso persistiu até o momento que Bai Hu desceu.
“O que houve?” O olhar curioso do jovem percebeu a mudança de comportamento dos soldados, até mesmo as poucas posturas desleixadas desapareceram — todos passaram a olhar para frente e com o queixo levantado.
“Então esse tal de Bai Hu não é apenas um soldado qualquer.” O jovem encarou Bai Hu por cima dos ombros com olhos afiados, logo encarando os guardas novamente, foi então que ele notou mais uma mudança quando o de camuflagem dourada desceu — esta foi mais perceptível a mudança: agora havia apenas respeito, mas também temor.
— Fei Hu…?
O jovem conseguiu ouvir o sussurro de um soldado, que logo recebeu uma leve cotovelada de advertência de seu colega.
Quando desceram, ambos se posicionaram ao lado do jovem, que apesar de mais magro, era um pouco mais alto que ambos. Os soldados seguiram à frente, criando um caminho e afastando as pessoas próximas à entrada.
“Bai Hu e Fei Hu… quem são esses caras?” Os olhos do jovem se estreitaram, observando curiosamente os dois, que andavam em perfeita sincronia.
“Não importa… eu tenho que sair daqui! É a primeira vez que consigo ver o exterior… não pode acontecer como da última vez.”
Flashes de memórias surgiram em sua mente em um piscar de olhos: ele apenas conseguia ver os flashes das balas disparadas contra ele em uma floresta escura, quando foi cercado por soldados.
Ele parou, mas ainda assim dispararam em sua direção; as balas de alto calibre feriam sua pele, mas não atravessam seus músculos, foi neste momento que ele reagiu.
Ele correu em direção de um soldado e quando o impacto de seu golpe atingiu um soldado, este gritou agonizando de dor ao colidir com uma árvore.
Percebendo a agonia daquele homem e a raiva dos outros que o encarava; ele paralisou, até o momento que soldados vieram com armas prateadas que dispararam projéteis que desferiram uma carga elétrica que o fez desmaiar.
Seus punhos se fecharam fortemente e ele engoliu em seco, a respiração falhou por um instante antes de se focar novamente.
“Não vou hesitar… os soldados parecem temer mais Fei Hu… vou atingir Bai Hu com tudo que tenho e fugir.” Ele parou por um segundo, fechando os olhos; seus músculos se flexionaram enquanto ele forçava a algema que demonstrou uma leve rachadura. Ambos, Bai Hu e Fei Hu, pararam e observaram o jovem com os dedos próximos ao gatilho.
“Eu vou conseguir, não importa o que aconteça!” O jovem se preparou, flexionando as pernas e cerrando os punhos, pronto para girar o corpo e desferir um golpe.
— Papai!
Seus olhos se abriram abruptamente quando ele conseguiu ouvir a voz que partia de um garoto que acabará de ser erguido por um homem.
— Olha pai! Os soldados!
O garoto estava sorridente e com os olhos brilhantes e curiosos. Não havia apenas eles, mas também dezenas outras pessoas caminhando pela redondeza observando a situação.
“Não…” O jovem então parou, olhando em direção ao garoto, sua fúria rapidamente se transformou em frustração.
“Eu não posso…” Ele olhou para o LED vermelho. Aquela cor tão familiar, quase de maneira assustadora.
“Não posso arriscar a vida deles…” Ele se pôs cabisbaixo, abrindo levemente as mãos e relaxando os músculos, então retomando o caminho, seguindo em frente até finalmente adentrar as enormes portas do arranha-céu.
Já dentro do edifício, o jovem passou por uma recepção imensa com diversos atendentes e um pequeno público que o observava. Uma barreira humana foi criada pelos soldados para manter o público afastado, direcionando-o para o caminho dos elevadores.
Seu olhar capturava cada elemento ao seu redor: as paredes brancas, um grande letreiro escrito ‘Iovem’, lajotas com tom amadeirado, os balcões de MDF, os televisores nas paredes e os olhares assustados, curiosos e até mesmo odiosos em sua direção.
Ele se distanciou da recepção conforme Fei Hu e Bai Hu o guiavam, encarando os televisores que estavam nas paredes do caminho, todos estavam sintonizados no mesmo canal mostrando o jornal da manhã.
— Algumas semanas se passaram após o ocorrido em Vale da Liberdade. Estamos falando de Tlamanalli, centro de Nova Atlântida. — Uma mulher loira e de boa aparência apresentava o que parecia ser o jornal local.
“Nova Atlântida? Isso não é na América? Por que estou aqui?” Ele se aproximou de um dos diversos elevadores, com portas prateadas tão limpas que conseguia ver a si mesmo como em um espelho. Entretanto, seus olhos permaneceram focados na televisão.
Bai Hu se aproximou do elevador e apertou um dos botões quadrados que acendeu com a luz azul; o indicador ao lado demonstrou que o elevador estava descendo.
— Houve protestos a favor e contra a integração de humanos biologicamente aprimorados no governo por todo o estado após o ocorrido em Vale da Liberdade.
A jornalista apresentava diversas imagens de protestos, com placas contendo textos como: ‘Aprimorados não são humanos!’ e ‘Todas as vidas importam!’.
— A comoção foi grande o suficiente para punir a jovem heroína Chama Escarlate, filha do Defensor Dragão Vermelho. E isso também revisitou as pautas do Tratado de Evelyn, principalmente relacionadas a menores atuando como Convergentes…
“Tratado de Evelyn? Não importa agora; eu preciso saber o que vai acontecer comigo.” Ele observou a si mesmo, seu rosto de formato oval, o cabelo crespo que já caía sobre sua testa e seus olhos apresentavam uma coloração amarela fosca, com um leve brilho não natural, como a visão de um âmbar antigo mediante uma luz fraca.
A porta metálica finalmente se abriu e Fei Hu adentrou o elevador primeiro, posicionando-se ao lado direito, com as costas voltadas para a lateral. Bai Hu, então, fez um gesto sutil com a cabeça, indicando que o jovem o seguisse, e este o fez sem hesitar, avançando para o centro.
O elevador era espaçoso, com paredes de vidro reforçado que refletiam a claridade suave do ambiente. No momento, tudo o que o jovem conseguia ver eram as paredes do térreo, apenas com uma iluminação que partia de cima da porta.
O jovem fechou os olhos e entrelaçou os dedos, arqueando visivelmente os lábios. Então, Bai Hu deslizou um cartão sobre o autenticador e digitou na tela ao lado da entrada, selecionando apenas um andar disponível: o octogésimo.
No centro, Fei Hu e Bai Hu o observavam friamente, como estátuas que não se moviam nem por um segundo.
“Eu não quero ser enjaulado de novo…” Ele encarou seu reflexo; o leve brilho amarelado de seu olhar.
“Eu não quero passar por aquela merda DE NOVO…” seus punhos se fecharam novamente e ele respirou fundo.
Quando o elevador passou do décimo andar, a escuridão foi ofuscada pela claridade que atravessou as paredes de vidro. Ele fechou os olhos, mas, cuidadosamente, os abriu e, lentamente, eles se ajustaram à luz, arregalando-se quando finalmente se adaptaram àquela grandiosa visão.
O horizonte estava amarelado pelo sol que brilhava e se erguia. À distância, alguns pássaros voavam pelo céu azul enquanto um enorme veículo metálico, com rotores inclináveis que brilhavam ao sol, passeavam pelo céu azul. Sua parte superior, que lembrava uma cesta, refletia a luz, e o som suave das turbinas ecoava pela cidade.
Havia prédios que emergiam do chão e outros descendiam nele, alguns eram tão grandes que pareciam tocar os céus. Muitos deles como espelhos gigantes, refletindo toda a cidade e o sol, criando a ilusão de uma cidade infinita. As ruas estavam lotadas de pessoas, como pequenas formigas vagando à distância. Diversas linhas de trens passavam entre os prédios, por trilhos que corriam como veias pela cidade.
Por um momento, o jovem se encontrou boquiaberto; um brilho de contemplação surgiu em seus olhos, refletindo a cidade, e um leve e quase imperceptível sorriso se formou no canto de sua boca.
— Incrível… — sussurrou consigo mesmo, mas rapidamente retornou à realidade.
“Não… eu não posso perder o foco.” Ele tornou seu olhar para seu reflexo, encarando o lado direito de seu moletom, em que havia uma identificação. “Afinal, não sou nada além de um prisioneiro.”
‘HBA-E-0001 – Black’
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