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    Fui levado por um caminho estreito, úmido e malcheiroso. O ar ali parecia vivo, pesado e pegajoso, impregnado de mofo e podridão. A cada passo, meus pés se molhavam nas poças que se acumulavam no chão de pedra irregular. O som dos pingos que caíam do teto ecoava pelas paredes, misturando-se com o arranhar das garras dos esqueletos que me empurravam adiante. Suas mãos ossudas e frias seguravam meus braços com firmeza, deixando marcas vermelhas na pele.

    A criatura ia na frente, movendo-se com uma agilidade que desafiava seu tamanho grotesco. O corredor parecia se estreitar e se contorcer ao seu redor, como se o próprio lugar se moldasse ao seu comando.

    Minhas pernas tremiam, não só pelo frio cortante que percorria minha espinha, mas pelo medo que fazia meu estômago se revirar. Não havia volta. A luz forte que brilhava adiante anunciava a chegada ao destino final, fosse ele qual fosse.

    Saímos, por fim, em uma sala circular imensa, de teto alto e côncavo, onde filetes de luz pálida desciam por buracos irregulares, iluminando poeira e teias que balançavam suavemente. O ar estava denso, quase sufocante, e o cheiro era uma mistura repulsiva de produtos químicos, sangue novo e velho, carne em decomposição e algo metálico, como ferrugem impregnada na pedra.

    Era um laboratório. Um antro de horrores e insanidade. O chão era manchado e escorregadio, com manchas escuras que contavam histórias de dor e desespero.

    Junto às paredes, estantes se enfileiravam, abarrotadas de livros. Alguns volumes estavam praticamente apodrecidos, com capas carcomidas e lombadas desfeitas, enquanto outros permaneciam incrivelmente preservados, cobertos de pó mas ainda legíveis. Alguns títulos eram escritos em línguas que eu jamais havia visto, suas letras se entrelaçando em símbolos que me causavam vertigem.

    A criatura percebeu meu olhar e riu, uma risada seca e arranhada que reverberou pelas paredes.

    — Minha coleção… — disse, com uma voz arrastada e sombria. — Aprendi as artes místicas e alquímicas com meu querido mestre. Infelizmente, este lugar remoto não me permite adquirir bons exemplares. Quase tudo aqui foi achado no pântano por meus fiéis esqueletos… trazidos por visitantes perdidos, como você.

    Ele me lançou um olhar faminto, avaliando cada parte do meu corpo como se decidisse o que fazer primeiro.

    Meu sangue gelou, e um arrepio atravessou minha espinha. Eu não conseguia manter os olhos nele por muito tempo, o medo martelando meu peito com uma força sufocante.

    — Quantos antes de mim? — arrisquei perguntar, tentando não deixar a voz tremer.

    Ele parou, a cabeça grotesca inclinada de lado, como se a pergunta o intrigasse.

    — Muitos… alguns curiosos, outros desesperados. Todos inúteis, no fim. Mas você… — sua voz se arrastou como uma cobra, envolvente e venenosa. — Você talvez seja diferente.

    Continuamos dando a volta na sala, passando por duas grandes bancadas de pedra que se estendiam ao centro. Nelas repousavam béqueres de vidro borbulhando com líquidos de cores variadas: verde-neon, vermelho escuro e um azul pulsante que brilhava intermitentemente. Aparelhos de metal, com engrenagens e tubos retorcidos, vibravam e chiavam, enquanto uma substância oleosa pingava de um dos frascos e caía no chão com um chiado corrosivo.

    Havia também uma coleção de facas cirúrgicas e outros instrumentos cuja utilidade eu nem conseguia imaginar, mas que pareciam mais adequados para tortura do que para qualquer prática médica. Algumas lâminas ainda estavam sujas de sangue seco, e outras brilhavam com um fio impecável, prontas para cortar carne fresca.

    — Eu tinha um fornecedor de matéria-prima — a criatura suspirou, com algo que soava quase como nostalgia. — Trouxe a última leva de escravos… mas tentou me trair.

    Seus olhos, injetados e vermelhos, correram para a outra bancada, onde algo, ou alguém, estava dissecado, deitado sobre uma superfície de pedra fria. Metade do corpo permanecia intacta, enquanto a outra parte estava esfolada, com músculos e tendões expostos e órgãos dissecados cuidadosamente. A visão me embrulhou o estômago, e virei o rosto, tentando ignorar os vidros empoeirados nas estantes ao fundo, onde criaturas deformadas e partes de corpos boiavam em líquidos turvos e viscosos.

    — Certas coisas a gente tem que manter em prática, para não enferrujar. Você entende, não? — A voz da criatura ressoava carregada de ironia e um toque de diversão macabra.

    Engoli em seco, sem coragem de responder, tentando controlar a ânsia que subia pela garganta. A ideia de acabar como aquele pobre infeliz dissecado me fez lutar contra a vertigem.

    Demos meia volta na sala e, finalmente, alcancei o centro dela. Era construída como um anfiteatro, com cada nível mais baixo que o anterior. No centro, uma maca de pedra antiga repousava, sua superfície coberta por manchas de sangue enegrecido e ressecado. O chão ao redor tinha canaletas que drenavam o excesso de sangue, convergindo para ralos imundos.

    Na cabeceira da maca, erguia-se um altar de pedra, ligeiramente mais alto, onde uma grande pedra escarlate brilhava com uma intensidade antinatural. Um círculo mágico profano a cercava, emanando uma energia negra, opressiva e oleosa que parecia se agarrar ao ar, sufocando qualquer esperança que ainda restasse.

    O que me chamou a atenção foi a pequena rachadura na superfície da pedra, por onde um líquido negro escorria, denso como piche, gotejando devagar e se espalhando pelo chão em fios pegajosos. O círculo redirecionava a mana negra para o teto, onde um símbolo similar a enviava para fora, dispersando-a no ambiente além do laboratório.

    Era como se a pedra fosse uma ferida aberta no mundo, exalando corrupção e morte. A conclusão me atingiu como uma lâmina fria: o pântano lá fora estava morrendo por causa daquela energia profana. Nada podia florescer ou viver em um ambiente envenenado daquela maneira.

    — Fascinante, não é? — a criatura comentou, os olhos brilhando com uma mistura de orgulho e adoração. — A corrupção molda o mundo. Purifica a fraqueza e elimina o inútil.

    Ele virou para mim, e o sorriso que exibiu era mais sombrio e perverso do que eu podia suportar.

    — Agora… — ele sussurrou, aproximando-se. — Vamos ver o que você tem de útil para mim.

    Atrás do altar, havia uma velha escrivaninha de madeira escura, marcada por décadas de uso e negligência. As bordas estavam lascadas, e uma fina camada de poeira cobria a superfície, exceto nos pontos onde os papéis e livros repousavam. Mapas anatômicos de homens e criaturas estavam espalhados desordenadamente, com desenhos detalhados de órgãos e sistemas musculares, como se alguém houvesse desmontado corpos inteiros em diagramas meticulosos. Runas e círculos místicos adornavam os cantos dos pergaminhos, cada um acompanhado de anotações em caligrafia apertada e tortuosa. Alguns dos tomos tinham lombadas quebradas e páginas encardidas, enquanto outros, mais novos, eram cuidadosamente marcados com fitas vermelhas e pedaços de couro.

    A criatura se aproximou da escrivaninha, ajeitando-se em uma cadeira alta e robusta, embora claramente decadente. O estofado, outrora de um vermelho vibrante, estava agora puído e roto, expondo a palha desgastada que o preenchia. Ele se acomodou com uma familiaridade quase tranquila, como se aquele canto do inferno fosse seu santuário pessoal.

    Ele sinalizou para uma cadeira à sua frente, baixa e desconfortável, feita de madeira velha que rangia mesmo antes de eu me sentar. Não tive escolha. Os esqueletos que me seguravam empurraram-me para a cadeira, obrigando-me a sentar com brutalidade. Suas mãos ossudas continuavam firmes nos meus ombros e pulsos, mantendo-me imóvel. O cheiro de terra e morte impregnava os ossos, tornando impossível ignorar a proximidade grotesca daqueles guardiões.

    A criatura então ergueu a mão, levando as costas dela até a testa em um gesto que lembrava uma saudação cerimonial, embora desprovida de qualquer dignidade. Sua voz aguda ecoou pela sala, carregada de um tom de pretensa solenidade.

    — Sou Drael, um humilde servo e discípulo do grande mestre Mahteal, o Corruptor.

    Seus olhos percorriam cada centímetro do meu corpo, famintos e curiosos, como se estivessem decidindo por onde começar a esfolar. Por um instante, lambeu os lábios rachados e feridos com uma língua cinzenta e áspera, um gesto involuntário que me fez querer vomitar.

    — Já faz muito tempo que realizo minhas pesquisas — continuou ele, arrastando as palavras. — Meu propósito é construir um novo corpo para meu mestre, um receptáculo digno de sua magnificência… Você não imagina o quão difícil é essa missão. Tantas falhas, tantas tentativas frustradas. Mas um corpo humano… Ah, um corpo humano adequado, compatível… Isso é o que sempre me escapou.

    Sua expressão se contorceu em algo que poderia ser um sorriso, embora não passasse de um esticar sinistro da pele murcha e do tecido cicatrizado que formava sua boca.

    — Muito tempo se passou desde que um humano veio parar em minhas mãos. — Ele fez uma pausa dramática, quase poética. — Dizem que a terceira vez é a da sorte, não?

    Aquela afirmação fez um calafrio percorrer minha espinha. Meu coração batia forte contra as costelas, e o suor frio escorria pela nuca. Meus olhos vasculhavam a sala, buscando desesperadamente algo que pudesse usar para escapar.

    Drael puxou debaixo da mesa um caderno de anotações velho e encardido, suas páginas amareladas cobertas por manchas escuras e símbolos rabiscados às pressas. Com mãos surpreendentemente hábeis, abriu o livro na minha frente, virando algumas páginas até encontrar uma em branco. Então, pegou uma pena torta mergulhada em tinta escura e começou a traçar linhas firmes e precisas.

    Desenhou o contorno de um torso humano, detalhando músculos e ossos com uma precisão quase artística. No centro, fez um grande corte que se estendia do pescoço à virilha, com as costelas partidas e abertas, expondo órgãos desenhados com um esmero perturbador. A tinta ainda fresca brilhava sob a luz trêmula das velas, enquanto ele murmurava para si mesmo, os olhos fixos no papel como se nada mais existisse no mundo.

    — Um receptáculo perfeito… — sussurrou, com um misto de adoração e obsessão na voz.

    A pena continuava se movendo, agora traçando runas ao redor da figura, formando um padrão que eu não conseguia compreender. A ideia de que aquele desenho pudesse ser um modelo para o que ele planejava fazer comigo me revirou o estômago.

    Um dos esqueletos se aproximou, oferecendo uma cuia de cobre a Drael, enquanto outro entregava-lhe uma adaga cerimonial. A lâmina era longa e delgada, brilhando com um tom prateado sombrio, adornada com inscrições que pulsavam em um brilho esverdeado.

    Drael segurou a adaga com reverência, como se fosse um objeto sagrado. Ele me olhou mais uma vez, e então fez um leve gesto com a cabeça. De imediato, o esqueleto à minha direita agarrou meu braço e puxou a manga, expondo meu antebraço nu e trêmulo, tentei recuar o braço mas as garras dele fincaram na minha pele, segurando-o no lugar.

    — Vamos começar com uma pequena amostra… — murmurou Drael, como se falasse consigo mesmo.

    Antes que eu pudesse reagir, a lâmina cortou fundo, atravessando veias e artérias em um único movimento preciso. A dor me atingiu como um raio, aguda e lancinante, e meu sangue rubro jorrou para dentro da cuia. Senti a vertigem tomar conta, e o calor escorrer pelo braço como um rio fervente. Drael observava com um fascínio perturbador, os olhos arregalados e brilhantes, e seus lábios secos estalavam enquanto ele acompanhava cada gota que preenchia o recipiente.

    — Está bom… é o suficiente — decretou, com um gesto de mão.

    O corte sangrava abundantemente, quando senti a sala girar e minha vista começou a escurecer, um dos esqueletos abriu um frasco esverdeado e o pressionou contra meus lábios, forçando-me a beber. O líquido tinha gosto de terra e podridão, queimando enquanto descia pela garganta. Senti o corte se fechar quase instantaneamente, a carne se unindo de volta, embora uma sensação de dormência permanecesse, era uma poção de cura, eu já tinha tomado delas na infância.

    Drael ergueu a cuia diante da luz fraca e despejou um líquido claro no sangue, mexendo com uma vareta fina. Uma fumaça azulada se ergueu, e o líquido brilhou com um tom azulado etéreo, pulsando levemente.

    — Ótimo, vai servir… — murmurou, satisfeito.

    Ele virou-se para os esqueletos e acenou com a mão ossuda.

    — Levem-no de volta à cela. Quero que ele seja bem tratado. Comida, água, roupas secas e uma coberta decente. Não quero que fique imprestável antes de concluir minha obra.

    As criaturas acataram sem hesitar, puxando-me de volta pelo corredor úmido. Meu corpo ainda tremia, e minha mente girava com perguntas e desesperança. A voz de Drael ecoava em minha mente, aquela promessa sádica e insana de um destino pior que a morte.
    Antes de sair da sala ele acrescentou, em uma voz exitada:

    — tragam o orc, vou precisar dele…

    Os esqueletos continuaram me escoltando, indiferentes à ordem, a minha resistência e meu terror. Meu coração estava pesado, pulsando em minha garganta, e só conseguia pensar que, por um momento, eu tivera sorte… Lá do laboratório uma risada sinistra ecoou seguida de barulho de vidro quebrado e uma fala sinistra:

    — Finalmente…

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