Capítulo 106: Juntando Cacos
O escritório de Rosa parecia menor agora, sufocante. As cortinas pesadas bloqueavam a entrada de luz, e o ambiente estava impregnado pelo cheiro acre de sangue, suor e cinzas. Cada respiração parecia carregar o peso das mortes e das batalhas que havíamos enfrentado.
Meus amigos estavam espalhados pelo cômodo, cada um lidando com a dor à sua maneira. Claire permanecia encolhida em um canto, os joelhos contra o peito, o rosto sujo de lágrimas e fuligem. Seus soluços eram baixos, quase sufocados, como se até o ar do lugar estivesse impregnado de luto. Dante, perto dela, como um cão fiel.
Joaquim sentara-se no chão, ao lado do corpo de Joana, seus olhos fixos no vazio. Ele parecia mais um espectro do que um homem, a vida drenada de seus olhos, como se sua alma tivesse seguido Joana para além do véu.
Aiden, exausto, adormecera ao lado de Victor. Seus lábios se moviam, soltando murmúrios inaudíveis, talvez orações ou apenas fragmentos de um pesadelo do qual ele não podia escapar.
Pandora permanecia desacordada. Sua respiração irregular me causava um nó no estômago. O miasma ainda rodopiava ao seu redor, uma névoa escura e opressiva, aprisionando-a em algum tipo de transe. Se eu não fizesse algo logo, temia que seu estado se tornasse permanente, uma prisão de pesadelos sem fim.
Caminhei até uma pequena mesa no canto do escritório. Uma jarra de água pela metade e alguns copos de estanho estavam ali. Minhas mãos trêmulas derramaram um pouco no copo, e bebi em grandes goles. A água fria desceu pela garganta, mas não levou embora o gosto amargo de minha garganta.
A vitória, se é que podíamos chamar aquilo assim, era provisória e amarga. Muito amarga.
Eu precisava falar algo, qualquer coisa. Mas que palavras poderiam remendar os pedaços quebrados de cada um ali?
— Rosa está tentando organizar as coisas lá embaixo — minha voz saiu baixa, mas o silêncio do escritório fez com que todos ouvissem. — Muita gente morreu, mas muitos estão vivos. Precisamos decidir nossos próximos passos.
Ninguém respondeu. O silêncio se arrastou, pesado e incômodo.
— Joaquim… — chamei, tentando puxá-lo de volta. — Precisamos de você.
Ele não reagiu. Apenas continuou ali, ao lado de Joana, a mão ensanguentada segurando a dela.
Me ajoelhei ao seu lado, sentindo o frio do chão de pedra atravessar minhas roupas.
— Eu sei que dói. — Minha voz tremeu, e precisei engolir em seco. — Mas ela não ia querer te ver assim. Precisamos manter todos seguros.
Finalmente, seus olhos encontraram os meus. Havia um vazio ali, uma ausência de vida que me partiu por dentro.
— Ela era minha família… — sussurrou. — Eu prometi cuidar dela.
— E ainda pode. — Apertei seu ombro, tentando transmitir alguma força. — Honre a memória dela. Vamos garantir que o sacrifício dela não tenha sido em vão. Vamos fazer eles pagarem por isso…
Aiden ergueu o rosto, suas feições marcadas pelo luto e pela exaustão.
— E o que vamos fazer agora? — Sua voz era apenas um fiapo, desgastada pela adrenalina e pelo medo.
Encarei cada um deles. Não tinha todas as respostas, mas precisava ser forte.
— Primeiro, vamos garantir que estamos seguros. Depois… — Respirei fundo. — Vamos descobrir os responsáveis por isso e entender o que diabos aconteceu aqui.
Claire finalmente ergueu o olhar, suas lágrimas brilhando na penumbra.
— Vamos sair vivos disso?
Eu queria prometer que sim. Queria dizer que tudo ficaria bem. Mas não havia mais espaço para mentiras.
— Vamos lutar para isso. Juntos.
Dante, sempre silencioso, estendeu a mão e deu tapinhas suaves na cabeça da garota. Seu gesto era quase paterno, e o brilho em seus olhos mostrava que, apesar de tudo, ele ainda acreditava.
E naquele momento, mesmo cercado pela dor e pela perda, senti uma centelha de algo mais. Não era exatamente esperança. Talvez fosse apenas teimosia, uma recusa em ceder ao desespero. Mas, por ora, aquilo bastava.
Olhei ao redor, tentando medir a força que restava em cada um. Mesmo em seus estados quebrados, eles mereciam uma escolha. Era o mínimo que eu podia oferecer depois de tudo o que tinham perdido.
— Precisamos decidir o que fazer daqui em diante — falei, escolhendo cada palavra com cuidado, como se qualquer deslize pudesse despedaçá-los ainda mais. — Se quiserem ir para casa, procurar suas famílias… Eu entendo.
O silêncio se espalhou pelo escritório como uma neblina pesada. Cada um deles parecia perdido em seus próprios pensamentos, encarando os cantos escuros da sala ou os próprios joelhos, como se ali pudessem encontrar respostas para o caos que nos cercava.
Claire foi a primeira a reagir. Com movimentos lentos e trêmulos, ela enxugou o rosto com as costas da mão, deixando uma mancha escura de fuligem e lágrimas. Seus olhos inchados encontraram os meus, e havia algo ali — uma centelha de determinação, mesmo que frágil.
— Minha única família é Zia e meus tios… — Ela respirou fundo, cada palavra um esforço visível. — Mesmo com tudo que fizeram, eu preciso saber se eles estão bem.
A voz dela carregava mais do que apenas medo. Havia um anseio ali, uma necessidade quase desesperada de se agarrar a qualquer vestígio de normalidade.
Joaquim, que até então parecia uma estátua ao lado de Joana, finalmente se mexeu. Quando soltou a mão fria da amiga, seus dedos estavam rígidos, o sangue seco criando uma película escura sobre sua pele. O movimento foi pequeno, mas parecia um passo monumental para alguém que havia perdido tanto.
— Também preciso ver minha família — murmurou, as palavras arranhando sua garganta. — Mas se as ruas estiverem como a arena…
Ele não precisou completar a frase. As imagens da arena — o sangue, os corpos, o cheiro pútrido — ainda dançavam em nossas mentes. Todos entendíamos o perigo.
Aiden, no entanto, permaneceu imóvel. Seus olhos estavam perdidos em algum ponto indefinido do chão. Quando finalmente falou, sua voz era apenas um sussurro, como se qualquer volume maior pudesse quebrá-lo.
— Eu não tenho ninguém — disse. — Minha família era Victor. E agora…
O nome de Victor pairou no ar, pesado e indigesto. Era como um espinho cravado na pele, impossível de ignorar.
— Aiden… — comecei, tentando encontrar uma ponte até ele, mas fui cortado antes que pudesse dar o primeiro passo.
— Se é para nos separar, eu fico aqui. Não vou a lugar nenhum. — Ele se encolheu ainda mais, o corpo curvado como se quisesse desaparecer.
Claire lançou um olhar rápido e preocupado na direção dele, depois voltou-se para mim.
— E se sairmos… Como vamos voltar? As ruas podem estar cheias dessas coisas.
A preocupação dela era justa. A arena, mesmo devastada, ainda oferecia alguma segurança. Ir para as ruas era uma aposta cega, e qualquer erro poderia ser fatal.
— Provavelmente estão — murmurei, tentando não parecer alarmista. Estendi a mão, mostrando o pequeno camundongo na minha palma. — Eu posso mandar Philip. Consigo ver através dos olhos dele e verificar as ruas ao redor, ver se o caminho até suas casas é seguro.
O camundongo parecia minúsculo diante do caos, mas ele era uma das poucas ferramentas que tínhamos.
Joaquim assentiu, mas o medo ainda o prendia.
— E se não for seguro? Se encontrarmos mais dessas criaturas?
Encarei-o diretamente, deixando que ele visse a firmeza que eu tentava cultivar dentro de mim.
— Então teremos que lutar. Mas, de qualquer forma, precisamos saber o que está acontecendo lá fora. Não podemos ficar cegos.
— Estamos cansados, nossa mana esgotada e estamos feridos. Joaquim tem um buraco no ombro. Um buraco! — exclamou Claire, a voz dela oscilando entre o medo e a raiva. — Como vamos explorar as ruas assim?
A intensidade dela fez com que todos recuassem um pouco. Dante, até então em silêncio, pousou uma mão firme no ombro dela, como se quisesse ancorá-la à realidade.
— Proponho que a gente tome as poções que Rosa prometeu — falei, tentando trazer a conversa de volta para a lógica. — Vamos descer e ver o tal Malkus. Ver se ele pode nos curar e nos ajudar. Vamos descansar até podermos sair. O que acham?
Um silêncio pesado se instalou. Cada um deles parecia pesar suas opções, medindo o medo contra a esperança, o desespero contra a necessidade.
Joaquim foi o primeiro a quebrar o silêncio.
— Eu vou com você, Lior. — Sua expressão endureceu, a dor dando lugar a uma determinação silenciosa. — Vamos procurar Malkus e, depois, minha família.
Claire mordeu o lábio inferior, o medo claro em seus olhos.
— Eu… Eu quero tentar ver meus parentes. Mas não quero ir sozinha.
Aiden permaneceu imóvel, apenas encolhendo os ombros, como se qualquer decisão não fizesse diferença para ele.
Aproximei-me dele, agachando-me para ficar na mesma altura.
— Aiden, precisamos de você. — Minha voz era suave, mas carregava o peso da urgência. — Se ficarmos juntos, temos mais chances. Victor não iria querer te ver assim.
Um músculo se contraiu em seu rosto, e por um momento, achei que ele fosse reagir. Mas ele apenas fechou os olhos, como se quisesse escapar para um lugar onde a dor não pudesse alcançá-lo.
Soltei um suspiro contido e me levantei, voltando a encarar o grupo.
— Está bem — conclui. — Vamos descer para a arena então. Vou enviar Philip para averiguar os arredores. Quanto mais informações tivermos, melhor.
Os outros assentiram lentamente. Não era uma resposta unânime, nem uma decisão firme, mas era o suficiente para mantermos os pés em movimento.
E enquanto reuníamos nossas poucas forças, senti que, mesmo em meio ao luto e ao caos, ainda restava algo de humano em nós. Algo que se recusava a se render.
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