Capítulo 4: Experimentos.
A escuridão da cela era sufocante, quebrada apenas pelo brilho vacilante de uma tocha do lado de fora, no corredor. O fogo tremeluzia, projetando sombras que dançavam nas paredes de pedra úmida e gasta. Sem janelas ou qualquer outra referência, eu não fazia ideia de quanto tempo havia se passado desde que fui trancado ali. O tédio e a exaustão se misturavam à incerteza, tornando tudo ainda mais insuportável.
Eu havia dormido, acordado dolorido pela dureza do chão. Ao me mover, notei uma cuia de mingau ao lado da porta da cela. Estava ali há tempo suficiente para esfriar e começar a endurecer, mas era melhor do que nada.
Peguei a cuia e levei uma colherada à boca, o sabor sem graça apenas reforçando minha situação miserável. Mastiguei devagar, meus olhos vagando até o montinho encolhido ao canto. Nix ainda dormia, sua respiração lenta e constante. Pelo menos seu rosto parecia um pouco menos pálido do que antes.
Hesitei antes de comer mais. Talvez fosse melhor deixar uma parte para quando ela acordasse. Além de animá-la, seria bom para mim também. A última coisa que eu queria era dividir a cela com alguém ressentido ou hostil. Se eu ia passar um tempo aqui, era melhor manter boas relações, e já começava a suspeitar que as habilidades dela poderiam ser valiosas quando, e se, eu encontrasse uma maneira de sair desse inferno.
Enquanto a observava, me peguei refletindo sobre o que tinha acontecido com ela. Eu vira o que os esqueletos estavam fazendo e, por mais que não entendesse exatamente, sabia que não era nada bom. Um frio percorreu minha espinha. Eu conhecia aquela sensação de impotência, de ser tratado como algo descartável.
Sua cauda felpuda se moveu preguiçosamente de um lado para o outro, e seus dedos se apertaram sobre o tecido do cobertor. Havia algo reconfortante em vê-la ali, tão vulnerável e ao mesmo tempo… viva. Por um momento, senti uma vontade estranha de passar a mão em suas orelhas, um gesto quase instintivo, mas me contive. Eu mal a conhecia. Não queria parecer algum tipo de lunático.
Nix se remexeu sob os cobertores, murmurando algo inaudível antes de erguer a cabeça e me encarar com olhos ainda sonolentos. Aproximei-me devagar, me abaixei ao lado dela e lhe estendi a cuia.
— Está frio, mas é melhor que nada. Quer um pouco de água?
Ela piscou algumas vezes antes de assentir.
— Obrigada. Você é diferente…
Arqueei uma sobrancelha, sem saber ao certo se aquilo era um elogio ou apenas uma constatação.
— Estamos juntos nessa. Só vamos sair daqui se nos unirmos.
Ela pegou a cuia, comeu um pouco do mingau sem reclamar. Peguei a jarra de água e me sentei ao seu lado, observando-a de relance enquanto ela comia.
— O que foi que os esqueletos fizeram com você?
Nix pousou a colher sobre a cuia e soltou um suspiro.
— Não sei exatamente. Já fizeram isso outras três vezes.
Ela ergueu a mão e tentou canalizar mana. Um fiapo fraco de energia tremeluziu entre seus dedos antes de se dissipar.
— A cada vez, eu fico mais fraca. A sensação é como se uma mão gelada apertasse meu coração e arrancasse um pedaço da minha alma. Da última vez, levei dois dias para conseguir me levantar de novo. Sua comida… acho que está ajudando um pouco.
Ela sorriu de leve, um sorriso cansado, mas sincero.
— E você? Como veio parar aqui?
Soltei um riso seco, sem humor.
— Resumindo? Tentei salvar minha irmã e acabei perdido na névoa. Andei por um bom tempo e, quando dei por mim, estava aqui. Ainda não sei se foi um erro ou um golpe de sorte.
Ela terminou o mingau e ficou em silêncio por um instante, como se ponderasse minhas palavras.
— Ainda bem que veio para cá… A névoa…
Antes que pudesse terminar a frase, o som seco de ossos se chocando ecoou pelo corredor. Nossos carcereiros haviam retornado.
A porta da cela se abriu com um rangido enferrujado, e um dos esqueletos apontou diretamente para mim. Por um instante, não me movi. Ele bateu a mandíbula repetidamente, o som de castanholas reverberando pelo ambiente, me apressando.
Me levantei devagar, lançando um olhar para Nix.
— A criatura, Drael, parece gostar de falar. Vou tentar descobrir o máximo de informações que puder.
Ela assentiu e, num gesto defensivo, puxou o cobertor sobre o peito, os olhos levemente arregalados.
— Espero voltar logo — murmurei antes de dar o primeiro passo para fora da cela.
Segui os esqueletos de volta ao laboratório, mantendo meus passos firmes, embora cada fibra do meu corpo estivesse tensa. O ambiente era o mesmo de antes, mas agora parecia ainda mais sufocante. O cheiro metálico de sangue e carne queimada impregnava o ar, misturado com algo químico, quase doce, que me dava náuseas.
Na grande bancada onde antes repousavam pedaços dissecados de criaturas, havia agora um novo ocupante. O orc da minha cela. Ele estava amarrado com grossas correias de couro, cada uma apertando sua pele verde e rasgada. Tubos saíam de suas veias, drenando líquidos espessos para frascos pendurados acima dele, enquanto outro tubo, grotescamente inserido em sua garganta, vibrava levemente a cada tentativa fracassada de grito.
Seus olhos estavam arregalados em pânico, rolando de um lado para o outro, as pupilas dilatadas em puro terror. Os dedos mexiam compulsivamente, como se sua mente ainda tentasse lutar, mesmo que seu corpo já estivesse quebrado. Partes de sua pele haviam sido removidas, expondo músculos pulsantes e, em alguns pontos, os próprios ossos. Mas o pior era seu peito. Ele estava aberto. E eu podia ver tudo.
Seus pulmões enchiam e esvaziavam em um ritmo quase metódico, como se fossem operados por algo além dele. O coração batia forte, uma massa vermelha úmida, bombeando vida para um corpo que já deveria estar morto. O brilho das tochas refletia no sangue fresco, destacando cada detalhe horrível daquele espetáculo grotesco.
Uma náusea violenta subiu pela minha garganta, mas engoli em seco, obrigando-me a manter o rosto impassível.
Foi então que Drael se virou para mim.
O bisturi ainda estava em sua mão, pingando um líquido viscoso. Seus lábios se abriram em um sorriso doentio, um contraste perturbador com seus olhos fundos e vazios.
— Espero que tenha dormido bem e se alimentado. — Sua voz era suave, quase cortês. — Afinal, você é nosso mais estimado hóspede.
As palavras me atingiram como um golpe inesperado. Algo na maneira como ele as disse, com um tom quase afável, me deixou desnorteado. Meu coração acelerou, e, por um instante, hesitei.
Mas eu precisava pensar. Precisava fazer ele falar. Qualquer informação poderia ser útil.
Respirei fundo, mantendo minha expressão o mais neutra possível.
— Eh… já que sou seu hóspede mais estimado… poderia me explicar o que vai acontecer aqui? Comigo? E como isso ajudará a trazer o mestre de volta?
Drael inclinou a cabeça levemente para o lado, como um corvo curioso. Seus dedos começaram a tamborilar na bancada, o som seco ecoando pelo laboratório.
Por um breve momento, seu sorriso desapareceu, e um brilho calculista passou por seus olhos. Mas logo depois, ele inflou o peito, e o sorriso retornou, agora duas vezes mais amplo.
Eu me arrepiava cada vez que via aqueles dentes pontiagudos.
— Bem… primeiro, preciso realizar uma inspeção detalhada no seu corpo e, mais importante, na sua alma.
Ele deu um passo em minha direção, os olhos percorrendo meu corpo como um açougueiro avaliando um pedaço de carne.
— Sua compatibilidade é alta. O que significa que não precisarei agir com pressa. Ainda que a ansiedade de libertar meu rei me consuma, eu não posso permitir que erros comprometam a perfeição desse ritual.
Ele estendeu a mão, apontando para o orc na bancada.
— Veja, orcs possuem uma regeneração invejável. Seus tecidos são incrivelmente permeáveis à mana. Seus ossos, músculos e até mesmo órgãos podem fortalecer um corpo fraco e torná-lo um receptáculo mais… adequado.
Afastando-se, ele caminhou pelo laboratório, gesticulando em direção a outras criaturas mortas, empilhadas e dissecadas há tempos. Algumas estavam tão decompostas que seus corpos haviam se fundido às mesas de pedra.
— As possibilidades são muitas… — murmurou, quase para si mesmo. — Mas não se preocupe, no final de tudo, seu corpo será um receptáculo digno do mestre.
Meu estômago revirou. O modo como ele falava, com tanto entusiasmo e orgulho, fez a realidade pesar sobre mim como um bloco de pedra.
Meus olhos vagaram pelo laboratório, e então percebi algo que não havia notado antes.
No degrau mais baixo do anfiteatro, onde Drael havia preparado seu altar, uma maca me esperava. Perfeitamente arrumada.
Para mim.
O necromante seguiu meu olhar e sorriu, satisfeito.
— Quando seu corpo estiver forte o suficiente, a consciência do rei será transferida para você. Ele tomará sua mente, suplantará sua personalidade e, então, renascerá.
Ele caminhou até o altar e pousou uma mão sobre a grande pedra que repousava ali.
— Foram anos e anos procurando sua prisão.
De perto, pude notar algo estranho. Ela não era apenas uma relíquia inerte. Uma rachadura atravessava sua superfície, e de dentro dela, pingava um líquido negro e espesso, que deslizava lentamente como óleo queimado.
Franzi a testa.
— E essa rachadura aí?
Drael paralisou. Seu sorriso sumiu.
Por um momento, apenas o som das gotas negras atingindo a pedra ecoou na sala.
Seus olhos se estreitaram, e ele respondeu, seco:
— Nada com o que se preocupar.
Mas seu tom denunciava o contrário.
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