Capítulo 19: Uma nova identidade
Tinha-se passado uma semana desde a luta no armazém de Jorjen. O tempo parecia se estender e comprimir ao mesmo tempo, como se cada dia fosse uma eternidade e, ainda assim, tudo estivesse acontecendo rápido demais.
Eu estava em um espaço gramado à frente da residência que eu e Nix ocupávamos na propriedade do mercador. Era um terreno amplo, cercado por muros altos cobertos de hera, oferecendo uma sensação de segurança e privacidade. O sol brilhava intensamente, refletindo o calor em nossas peles e fazendo o suor escorrer pelo corpo. O som das espadas se chocando preenchia o ar, junto com o riso leve e provocador de Nix, que me surrava sem piedade.
Graças ao nosso empenho incessante, havíamos finalmente alcançado marcos importantes: eu, o primeiro círculo completo, e Nix, o terceiro.
Com o domínio do primeiro círculo, agora conseguia acessar algumas das capacidades do meu corpo alterado. A mana infundida me tornava significativamente mais forte, resistente e veloz do que qualquer pessoa comum nesse estágio. Além disso, minha recuperação havia se acelerado de forma impressionante; pequenos cortes feitos por Nix durante os treinos se fechavam em questão de minutos, mesmo que apenas superficialmente.
Nix também havia obtido um ganho significativo ao atingir o terceiro círculo completo. Uma de suas habilidades raciais fora despertada: agora, ela podia se transformar em uma pequena raposa. Essa forma poderia ser extremamente útil para alguém tão furtiva quanto ela, facilitando infiltrações e missões de espionagem.
Karlom supervisionava nosso treinamento, os braços cruzados, o olhar crítico de quem já viu batalhas demais para se impressionar com algo pequeno. Ele corrigia nossas posturas com grunhidos curtos e diretos, nunca permitindo que o treino perdesse a intensidade.
Eu e Nix nos enfrentávamos em um ritmo acelerado, e cada golpe errado parecia um lembrete de minha inexperiência. Ela era ágil, leve, movendo-se como uma sombra dançante ao meu redor. Seus olhos dourados brilhavam com uma malícia quase divertida, como se cada esquiva fosse uma brincadeira. Em contraste, eu era força bruta, descontrolada. Cada golpe que desferia era potente, mas desajeitado. Ela desviava facilmente, e eu me desequilibrava, quase tropeçando com o impulso dos meus próprios movimentos.
— Fraco! — provocou Nix, mostrando a língua de forma displicente enquanto girava graciosamente, escapando de mais um golpe meu.
O calor da frustração subiu pelo meu rosto. Meu corpo queimava, os músculos tensos, e a cada erro, sentia o peso do que estava em jogo. Era mais do que um treino. Era minha chance de sobreviver, de ser forte o suficiente para o que viria a seguir.
Percebendo minha frustração crescente, Karlom levantou a voz, firme e autoritário.
— Pare! — ordenou ele, o tom inegociável. Nix se afastou, ainda sorrindo, enquanto eu baixava a espada, respirando pesadamente.
Ele caminhou até nós, a expressão impassível, mas os olhos avaliando cada um de nós com intensidade.
— Nix, parabéns. Seu jogo de pernas está cada vez mais afiado. Você está controlando melhor o ritmo da luta. — Ele fez uma pausa, o olhar suavizando levemente. — Precisamos apenas trabalhar seus ataques. Não pode depender só de esquivas e ataques-surpresa. Quando a luta for direta, você precisará ser tão mortal quanto sorrateira.
Nix corou, desviando o olhar, as orelhas de raposa tremendo levemente.
— Na verdade… — murmurou, quase envergonhada — ainda nem recuperei a forma desde que fui escravizada…
Karlom assentiu, o olhar compreensivo. Ele sabia melhor do que ninguém o peso das cicatrizes, visíveis ou não.
— E você, Lior… — Ele voltou-se para mim, os olhos duros. — Precisa controlar suas emoções. Você começa bem, mas logo se frustra, e aí tudo desmorona. Força sem controle é só destruição. Base, fundamento… é isso que você precisa. — Ele bateu no próprio peito, como para reforçar o ponto. — E controle emocional. Se perder a cabeça, perderá a luta. Agora chega de sparring. Vamos praticar postura e cortes.
Engoli em seco, sentindo o peso de suas palavras. Sabia que ele estava certo. O cansaço nos ombros e nas pernas era quase insuportável, e a ideia de repetir os movimentos até a exaustão me fazia estremecer. Mas não havia outro caminho. Nix lançou-me um último olhar antes de se afastar.
— Vá procurar Selune — ordenou Karlom a ela. — Precisa praticar a respiração de mana.
Ela assentiu e desapareceu pelo portão.
Algumas horas depois, após o treino interminável, tomei um banho quente. A água escorria pelos músculos doloridos, levando embora o suor e, por alguns momentos, a exaustão. Ainda enrolado na toalha, deixei-me cair na cama, o corpo pesado. Antes que pudesse fechar os olhos, uma batida suave na porta me fez erguer a cabeça.
— Entre.
A porta se abriu, e Selune entrou, seguida por Jorjen. Ele fez uma reverência, a postura submissa, mas os olhos calculistas brilhavam com uma nova intensidade.
— Jovem mestre — começou ele, entregando-me um calhamaço de documentos oficiais, a voz firme — consegui as coisas que você me pediu.
Peguei os documentos, sentindo o peso do papel na minha mão.
— Você agora é Lior Aníbal — continuou ele. — Um sobrinho meu, filho de Annelise, minha falecida irmã. Todos os documentos estão aqui, devidamente autenticados com os sinetes da família. Nossa sorte foi que eu tinha os sinetes de minha mãe e irmã… validou tudo.
Ele fez uma pausa, olhando-me diretamente.
— Quanto à sua ausência na cerimônia de apresentação… foi porque, durante um treinamento, você sofreu um acidente. Danificou seu núcleo de mana. Quase morreu. Essa é a explicação para seu círculo baixo. Simples e convincente.
Ouvi atentamente, folheando os documentos. Tudo parecia em ordem. Uma nova identidade, um novo começo.
— Vou ler tudo com calma mais tarde — murmurei, a voz cansada, mas carregada de determinação.
Selune se aproximou, com seu gingado sedutor, e sentou-se ao meu lado, provocativamente próxima. Tirou o familiar cachimbo longo de jade da boca e, com um sorriso enigmático, entregou-me um novo calhamaço de documentos.
— Aqui — disse, com a voz suave e aveludada — está um relatório detalhado sobre a Casa Aníbal. Informações sobre sua nova identidade, sobre o patriarca, figuras de destaque, economia, e outros detalhes importantes… Como a Casa é subalterna da Casa Nymeris, incluí também informações sobre eles. Tudo o que um jovem da Casa Aníbal deve saber.
Eu ainda estava enrolado na toalha após o banho, e Nix não havia voltado do dela. Selune sentou-se tão perto que o espaço entre nós parecia inexistente. Eu sabia que ela usava isso a seu favor, divertindo-se com meu desconforto. Havia algo nos olhos prateados dela, um jogo constante que me deixava sempre alerta, mas também… intrigado.
Ela se inclinou ainda mais, sua proximidade fazendo meu coração acelerar.
— Você precisa levar o treinamento a sério, Lior. Esses relatórios não são só papel. O torneio será em pouco mais de seis meses. Em dois meses, as regras serão divulgadas e, a partir daí, começa a temporada de busca por patrocínios. Jovens promissores visitarão as Casas, e aqueles que impressionarem os patrocinadores terão vantagens significativas. Você já perdeu a apresentação oficial, então vai precisar se esforçar o dobro para ser notado.
Ela fez uma pausa, os olhos semicerrados e a voz carregada de malícia. Deslizou o indicador pelo meu peito, traçando um caminho lento que fez minha respiração falhar.
— Sabe… — murmurou, com um sorriso misterioso — ainda não te agradeci por tudo. Por devolver minha capacidade de manipular mana… por me libertar. No fim das contas, acho que você só me prendeu ainda mais a você.
Antes que eu pudesse responder, a porta do quarto se abriu, e Nix entrou, saindo do banho e vestindo um pijama simples. Surpreendentemente, ela não fez cena alguma. Em vez disso, aproximou-se, observando-nos com um olhar curioso.
— Irmã mais velha… — Nix cumprimentou Selune, com um sorriso contido.
Selune se levantou, devolvendo o gesto com um carinho afetuoso na cabeça de Nix.
— Irmã mais nova… — respondeu, com uma piscadela para mim, antes de sair do quarto, seus quadris ainda ondulando provocativamente.
Fiquei sem entender nada, mas não questionei. Puxei Nix para a cama, sentindo o peso do dia cair sobre meus ombros. Estávamos exaustos, e amanhã nos esperava mais um ciclo intenso de treinamento. Fechei os olhos, deixando o cansaço me levar, mas o jogo de Selune ainda ecoava na minha mente, deixando-me inquieto.

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