Capítulo 22: A primeira lição da sombra
Dias depois, recebemos em nossa residência os convites para o tão aguardado baile de máscaras. Os convites de Gérard foram entregues em nosso endereço, mesmo ele e sua comitiva ainda não tendo chegado. Eu, como um dos participantes de minha casa, tenho direito a levar o meu padrinho, que nessa situação era Jorjen, e um outro acompanhante. O problema era decidir quem seria. Selune havia sugerido que eu fosse sozinho, argumentando que isso me colocaria em uma posição vantajosa, onde eu poderia ser abordado mais facilmente, especialmente se precisasse usar meu charme ou seduzir alguém para obter informações ou alianças. Apesar do pragmatismo da ideia, eu não havia tomado uma decisão final. Queria conversar com Nix antes.
Nossa rotina continuava a ser intensa, marcada por treinos diários e práticas exaustivas. Jorjen, como sempre, me mantinha informado das novidades. Todas as noites, ele me relatava a chegada dos participantes, descrevendo suas comitivas, os acompanhantes, as alianças que começavam a se formar e, claro, as intrigas que já se insinuavam nos corredores de Thallanor. Naquela noite em particular, ele trouxe notícias que me atingiram em cheio: minha mãe e Cassiopeia haviam chegado. Elas estavam instaladas na propriedade dos Vulkaris, não muito longe do Palácio. A cidade estava começando a ferver, com jovens nobres de todo o território chegando para o torneio e os eventos sociais que o precederiam.
Mais tarde, já recolhidos em nosso quarto, Nix notou meu silêncio. Ela se aproximou, seus olhos dourados fixos em mim, cheios de preocupação genuína.
— O que está te preocupando? Você está tão calado… — Sua voz era suave, mas firme. Ela sempre conseguia ver através das minhas proteções.
Respirei fundo, tentando organizar meus pensamentos. Nix merecia a verdade.
— São muitas coisas, meu amor. A cada dia, sinto o peso das expectativas e das coisas que terei que fazer, se estou preparado para o que virá. — Fiz uma pausa, sentindo o calor do olhar dela. — Mas tem duas coisas que não saem da minha cabeça. A primeira é que minha mãe e Cass chegaram. Não sei como vai ser encontrar as duas novamente, especialmente depois de tudo… A segunda coisa… — Hesitei, mas sabia que precisava continuar. — Aconteceu algo que não quero esconder de você.
Antes que eu pudesse dizer mais, Nix me interrompeu com um sorriso compreensivo.
— Eu já sei sobre o beijo entre você e Selune. — Seus olhos não desviaram dos meus. — Ela mesma me contou. Não se preocupe, não estou brava. Na verdade, eu entendo… ou pelo menos, tento entender.
Fiquei sem palavras por um momento. A cumplicidade entre as duas garotas me pegou de surpresa, mesmo com os sinais de sua proximidade, e a maturidade de Nix, apesar de sua juventude, era algo que sempre me impressionava.
— Ela também me explicou sobre o tal “jogo social” que você vai precisar jogar… — Nix continuou, sua voz ligeiramente trêmula. — E que talvez… talvez você tenha que se envolver com outras garotas por conta dos seus objetivos. — Ela baixou os olhos por um instante, antes de continuar. — Dói em mim, mas sei que seus costumes são diferentes dos do meu povo.
— Eu não quero isso, Nix. — Peguei suas mãos, apertando-as suavemente. — Nunca quis te magoar. Você me disse que as raposas escolhem um parceiro para a vida toda…
Ela assentiu, um sorriso triste nos lábios.
— Não estou entre raposas aqui, Lior. Sou bem crescida para entender o que está acontecendo. Não serei um obstáculo para você. — Ela fez uma pausa, respirando fundo. — Você vai continuar sendo meu parceiro. Selune me garantiu que eu sou a primeira esposa, e ela, a segunda…
Engasguei-me com a revelação. Selune já se via como minha esposa? Talvez fosse apenas uma brincadeira, como ela sempre fazia. Nix percebeu minha surpresa e sorriu de leve.
— Sei que essas garotas do torneio não significam nada para você.
— Não significam mesmo. — Meu tom era firme. — Na verdade, não pretendo me envolver com ninguém.
Inclinei-me para beijá-la, tentando acalmar as emoções que pairavam entre nós. Quando me afastei, falei suavemente:
— Tem mais uma coisa. Você faria algo por mim? Se infiltraria na casa onde minha mãe está e deixaria um bilhete para ela?
— Claro, meu amor. Farei o que for preciso.
Sorri, sentindo um peso sair dos meus ombros.
— E mais uma coisa… — Segurei o rosto dela entre as mãos. — Me decidi. Quero que você vá comigo ao baile. Faço questão da sua companhia. Amanhã, vamos providenciar as máscaras e nossas roupas. Não se preocupe, ninguém vai ver sua marca de escrava. E vou conversar com Jorjen sobre conseguir uma cidadania para você. Quero que se livre dessa marca nojenta.
Nix sorriu, os olhos marejados, e me abraçou. Naquele momento, senti que, apesar das sombras que nos cercavam, tínhamos algo verdadeiro. Algo que ninguém poderia tirar de nós.
Me levantei da cama, sentindo o frio da noite ainda impregnado no quarto. Caminhei até uma escrivaninha, respirei fundo e molhei a pena na tinta, começando a escrever um bilhete para minha mãe. Cada palavra parecia carregar um peso que só agora eu conseguia aliviar. Depois da conversa com Nix, uma leveza diferente me invadia; sabia que ela estava contrariada, mas ao menos tudo estava às claras entre nós. Havia uma transparência que, mesmo desconfortável, trazia paz.
Na manhã seguinte, Jorjen mandou chamar os alfaiates. Antes que eles chegassem, aproveitei para conversar com ele sobre a possibilidade de cidadania para minha raposinha. Ele me lançou um olhar estudioso, avaliando o pedido em silêncio antes de dar um aceno curto, indicando que iria tentar providenciar.
Mais tarde, eu e Nix estávamos no centro da sala de estar, equilibrados em banquinhos baixos enquanto os alfaiates tomavam nossas medidas. O tecido frio da fita métrica deslizava pela pele, e eu observava Nix, que se mexia inquieta, provavelmente pouco acostumada a tanta atenção. Selune, sentada em um sofá próximo, nos olhava com uma expressão divertida, o cachimbo equilibrado nos lábios.
— Então quer dizer que você vai levar Nix ao baile? — provocou Selune, soltando uma baforada de fumaça. — Saiba que você vai ficar me devendo um encontro também.
Olhei para Nix, que corou instantaneamente. Algo em sua expressão tinha mudado; percebi que, desta vez, não havia ciúmes em seus olhos. As duas pareciam partilhar segredos que me escapavam por completo, e aquilo, de alguma forma, me intrigava.
— Claro que sim — respondi, sorrindo de canto. — E deixo você escolher o que vamos fazer. Tenho que cuidar da minha esposa número dois, não é?
A resposta a pegou de surpresa. Selune ficou vermelha, perdendo momentaneamente a compostura. Pela primeira vez, vi-a sem palavras, e isso me deu um estranho prazer.
Foi nesse momento que a porta se abriu. Jorjen entrou, acompanhado por um jovem de postura rígida e uma senhora de traços austeros. O jovem tinha olhos azuis penetrantes, cabelos loiros cacheados e uma estatura quase igual à minha, embora fosse um pouco mais magro. A senhora tinha o mesmo olhar firme, mas seu corpo mais robusto lembrava o de Jorjen. Reconheci, de imediato, que eram Gérard e sua mãe.
Desci do banco e estendi a mão, mantendo uma expressão neutra.
— Então você é o enigmático Lior… — disse a senhora, seus olhos avaliando cada detalhe meu. — Sou Liana, sua tia-avó de terceiro grau. Uma pena que nunca tivesse te conhecido. Fiquei sabendo do seu acidente nos treinos. Tem certeza de que vai participar do torneio?
Assenti com firmeza. — É claro que sim. Praticamente já estou recuperado. Dia após dia, meus círculos de mana se fortalecem.
Gérard se apresentou de forma seca, quase mecânica. Apresentei Nix e Selune como parte de minha comitiva, sem entrar em detalhes. Na presença de seus parentes, Jorjen adotava uma postura mais rígida, como o mestre da casa que era. Joguei o jogo, participando da pantomima sem hesitar.
Terminamos os preparativos com os alfaiates, e Lady Liana e Gérard aproveitaram para encomendar suas próprias vestimentas. Enquanto isso acontecia, nos retiramos para minha residência.
Já no final da tarde, entreguei a Nix o bilhete destinado à minha mãe.
— Então resolveu desprezar minha opinião como sempre? — indagou Selune, os olhos semicerrados.
— Nem sempre. Segui a especialização em magia, não foi?
Ela suspirou, mas um sorriso suave brincou em seus lábios. — Só tome cuidado. Me preocupo com você.
— Pode ajudar Nix nessa missão.
Selune assentiu, segurando a mão de Nix. — Claro. Vou ajudar minha irmãzinha.
As duas saíram juntas, deixando a casa em um silêncio que parecia mais pesado do que antes. A ansiedade crescia em meu peito; a experiência me ensinara que, sempre que Selune e Nix saíam sozinhas, alguma encrenca as encontrava. Mas, para minha surpresa, o nervosismo durou pouco. Voltaram algumas horas depois, trazendo sacolas cheias de comidas de rua e badulaques, as faces coradas e os olhos brilhando.
— Não se esqueceram da missão, né? — perguntei, cruzando os braços.
— Claro que não, meu amor — respondeu Nix, sorrindo, o brilho nos olhos dourados reluzindo à luz suave das lamparinas. — Missão cumprida. Deixei o bilhete na penteadeira do quarto da sua mãe. Ninguém me viu. Depois disso, a noite estava tão bonita… decidimos aproveitar um pouco. Selune sai toda hora, mas eu fico trancada aqui, só treinando. Eu precisava sentir um pouco da cidade, das pessoas.
Sua voz carregava uma nota de saudade e frustração que eu não imaginava que ela tinha. Aquele desejo de liberdade que Nix carregava me tocou; havia um mundo além das paredes da mansão, um mundo que ela raramente podia explorar.
Selune se escusou logo em seguida, sua expressão mais suave do que o normal. Era raro vê-la constrangida, mas naquela noite ela parecia diferente, talvez mais vulnerável. Com um aceno rápido, retirou-se para o quarto, evitando meu olhar. Nix sorriu de leve, como se compartilhasse um segredo silencioso com ela, e seguiu para o banho, antes de vir se deitar.
Mais tarde, já deitado na cama, o silêncio da noite se tornara quase absoluto. Foi então que senti aquele puxão familiar em minha mente, como se algo dentro de mim fosse arrastado para um mundo distante. O teto desapareceu, dissolvendo-se em névoa, e, quando dei por mim, estava de volta ao meu oceano de mana.
O ambiente era etéreo e infinito, o chão líquido sob meus pés refletindo um céu estrelado que não pertencia a este mundo. Minha sombra estava lá, esperando-me como sempre, os olhos vazios fixos em mim. Havia algo diferente nele; uma intensidade nova, um peso mais sombrio.
— Finalmente me recuperei do esforço de semanas atrás — disse ele, a voz ecoando como um sussurro nas profundezas. — Desde que você completou o segundo círculo, quero te mostrar algo…
Olhei ao redor. Meu coração de mana flutuava à frente, brilhando intensamente, dois anéis de energia azulada pulsando ao seu redor, cada batida reverberando pelo espaço. A luz parecia mais densa, mais viva. Ao fundo, a esfera negra que representava Mahteal pairava como uma ameaça constante, opressiva e inabalável.
— Existe um conhecimento extraído da essência de Mahteal que vai te ajudar agora — continuou minha sombra, os olhos fixos em mim. — Minha Selune vai endoidecer quando ver você conjurar magias de segundo grau.
— Sua Selune? — perguntei, arqueando uma sobrancelha.
Ele riu, um som seco e quase cruel. — Tá bom… nossa Selune. — Estendeu a mão, e uma esfera negra surgiu, flutuando entre nós. Era do tamanho de uma abóbora, pulsando com uma energia sombria e densa.
Hesitei por um instante antes de estender a mão para tocá-la. No momento em que meus dedos a tocaram, a dor explodiu. Não havia como descrever aquilo: era como se um trovão percorresse meu cérebro, cada nervo queimando em agonia. Conhecimento bruto, vasto e implacável, foi forçado em minha mente, como se cada símbolo, cada runa, estivesse sendo esculpida diretamente em meu ser.
Gritei, o som ecoando tanto no oceano de mana quanto no mundo real. Mexi-me tanto que acordei Nix, que me sacudiu, o rosto preocupado pairando sobre mim.
— Está tudo bem… — murmurei, tentando tranquilizá-la. Meu corpo ainda tremia, o suor frio escorrendo pela testa. Ela me observou por um momento, relutante, mas voltou a deitar, os olhos ainda cheios de dúvida. Incapaz de dormir, levantei-me e fui até o gramado. A noite estava fria, o vento soprando suavemente. O céu estava claro, as estrelas brilhando como pequenos faróis distantes. Fechei os olhos e respirei fundo, deixando as novas runas se formarem em minha mente, transformando-se em luz azulada que pulsava na ponta dos meus dedos. Senti a magia fluir, mais forte, e soube que algo dentro de mim havia mudado.
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