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    Sob a luz clara do sol refletida, cada objeto, cada superfície, tornava-se a extensão da aura gélida, uma manifestação tangível do controle absoluto de Hisako Shimizu sobre o ambiente.

    Mas ainda assim, em um ponto onde deveria haver somente gelo, havia terra exposta.

    Para a instrutora, a sensação era inédita. Nunca antes alguém havia escapado de sua aura, que sempre fora uma força implacável, inevitável, sem contestação. E naquele momento, ao descobrir uma pequena brecha na sua perfeição, uma sensação a acometia: a incerteza.

    A maioria dos alunos sofria com camadas de gelo que variavam em espessura, cada um refletindo a intensidade do impacto que sofrera. Entretanto, entre toda essa paisagem cristalina, Miya encontrava-se em uma pequena área de dissonância.

    Hisako estudava cada detalhe próximo da jovem; onde por ali, as rachaduras que haviam chamado atenção estavam ainda mais intensas e desiguais.

    Pelo gelo mais próximo de onde Miya estava, grandes marcas escuras em formatos de fogaréis rodeavam o local.

    “Chamas… Teoricamente resistiram ao frio”, analisava a militar, pensativa, suas mãos frágeis inconscientemente apertavam o apoio da cadeira. “Nem mesmo shihais de mais altíssimo grau seriam capazes de neutralizar a minha aura dessa maneira… Só pode ser ela.”

    — Você… é Hiromi Miyazaki, certo? — Os pensamentos continuavam. “É raro que militares se permitam demonstrar qualquer interesse em alunos, mas agora, a surpresa é mais forte que qualquer fachada.”

    — Sim, senhora — a entonação quase pausada de Miya soou serena, mas foi perceptível um leve toque de arrependimento. Por quê?

    “Hm, como me foi informado. Está nessa turma”, relembrou Hisako, de olhar retraído, organizando os fatos consigo mesma. Então, ela ergueu a cabeça. — Soube que treinaria uma das possíveis matriarcas da família Miyazaki, não qualquer uma, mas a única portadora da chama eterna, um legado dos que já não estão mais entre nós.

    Distante da conversa, Rin, com os pés sem escape, esboçava desânimo. — Até quando vão encher a bola dessa garota? Eu, hein? Ela é só uma aluna como nós… — Quem sabe a reação fosse inveja.

    — Reagir de imediato àquela tempestade não é para qualquer um — respondia Kinyoku, neutro, embora o corpo estivesse paralisado — a maioria foi inabilitada sem nem perceber, e ela fez algo que talvez ninguém conseguiria na hora. Merece um bônus.

    Miya curvou-se com toda sua delicadeza, um gesto de respeito e simplicidade. — Fico lisonjeada pelo reconhecimento, senhora.

    — Poderia me explicar como se soltou da minha criogenia?

    A garota levantou o corpo. — Perdão, senhora, mas eu não… me soltei — as palavras saíram receosas.

    Hisako não relaxou e buscou algo que explicasse o caso. — Ah, claro… A aura da chama eterna, o fogo inapagável que reside nas mãos de uma jovem com reflexos impecáveis e técnicas refinadas. Já ouvi essa frase antes. É óbvio que a forma vital da algidez1 por si só não teria chances de alcançá-la. Tudo já estava antecipado… Minha aura encontrou o seu oposto e falhou. Que inapropriado para uma velha de guerra — ela sorriu da própria falta de sucesso.

    — Por favor, não entenda isso como uma afronta, eu apenas… — Miya não tinha certeza no que dizer… — eu apenas… agi por instinto.

    A explicação divertiu a instrutora, que deu espaço para a meiguice. — Instinto? He ho ho! Então você tem um instinto apurado. Não vê que está se destacando?

    — Ah! Então você está vendo a gente?! — alfinetou Kyoko, de braços cruzados, ainda presa pelos pés — será que não tem como pelo menos soltar seus alunos?! Duvido que depois de tudo isso alguém ainda tenha vontade de seguir com essa palhaçada!

    Hisako pausou por um momento, encontrar sentido nas duras palavras da bisneta não parecia uma tarefa difícil. — … Tem razão.

    Crsssssshh…

    Sem movimentos bruscos ou aviso prévio, todas as prisões de gelo foram quebradas e reduzidas a pequenos fragmentos cristalinos. Todavia, o chão seguiu azul e liso.

    — O primeiro desafio está encerrado! — A militar levantou a voz, a seriedade retornou — apesar de ser surpreendida pela habilidade e até audácia de alguns, nenhum de vocês está apto para ser promovido à turma E. Regras são regras.

    Finalmente liberta, Rin aliviou-se. — Arg, ainda bem, já não aguentava mais. Aquelas coisas estavam machucando… Mas doíam menos que o dia a dia.

    Teruo forçou a coluna para ajustar-se. — É inegável que aquela mulher possui uma força impressionante, porém — suas mãos pararam nos aros dos óculos multicoloridos — até o momento, não percebo qualquer progresso em suas abordagens. Não consigo vislumbrar o que de fato ela tem a nos oferecer em termos de aprendizado.

    — Aprendizados não vêm somente de instruções diretamente compartilhadas — afirmou Kinyoku, massageando o pulso — às vezes, experiências em batalha podem ser a virtude com mais capacidade de aprimorar nossas habilidades. Eu gosto disso — ele terminou com um sorriso confiante porém sutil.

    E mesmo com tanto alívio por parte dos alunos, havia quem ainda passasse por dificuldades. 

    — Ahn… Ah… Meus óculos… onde estão? — Engatinhando pelo chão gelado, Aruni tateava desesperadamente a superfície escorregadia. A falta de visão a deixava vulnerável, e o medo de tropeçar ou cometer algum erro aumentava sua aflição. Cada segundo sem achá-los fazia seu coração bater mais rápido. — Sem meus óculos, meu mundo não passa de manchas embaçadas, preciso encontrá-los logo! — Ela passava as mãos trêmulas de um lado para o outro, esforçada…

    Até que enfim, seus dedos encontram algo.

    — Oh! — Um alívio surgiu por um breve instante, contudo, como era rotineiro na vida de quem passava por situações azaradas, a boa sensação foi logo substituída pelo constrangimento. “A-ah, não! Esses não são meus óculos!”

    A superfície não era frágil como o vidro, nem fria como o chão, tratava-se de um pé, mais precisamente, um pé calçado em um chinelo de madeira.

    Desconcertada, Aruni tentava se desculpar: — Ai, perdão! É-é que eu não enxergo sem os meus… — a nítida visão reapareceu em seus olhos — óculos.

    Tudo voltou a se formar, e a primeira coisa que a garota encontrou foi Mayumi agachada, com os braços estendidos à frente, supostamente segurando as hastes dos óculos com cuidado.

    A ruiva estava tranquila, seus olhos brilhavam na visão de Aruni, encantada com um corar.

    — A-ah! O-obrigada! — O agradecimento embaraçou-se quando a tímida levantou-se de supetão e levou as mãos na altura coração.

    — Você está bem? — perguntou Mayumi, sem julgamento quando também se ergueu e uniu delicadamente as mãos no nível da cintura.

    — Estou. É que sem meus óculos, eu fico completamente perdida… — Aruni coçou a cabeça, mal conseguindo sustentar o olhar da outra garota.

    “E-eu não esperava tanta gentileza em um lugar como esse…” As bochechas de Aruni ficavam mais vermelhas ao passo que se deparava com olhos verdes, sérios, e de alguma forma, confortantes. Seu coração batia mais forte, suas mãos não conseguiam mais contê-lo. “Mesmo que a gente divida o mesmo beliche, isso é demais pra mim! O-o que eu faço…?!”

    Era uma sensação nunca antes sentida por ela, mas que já fora lida e relida pela mesma em vários livros de seu gosto, e contando que seu gênero narrativo favorito fosse romance, o sentimento não podia ser outro.

    O clima silencioso tornava-se complicado para quem experimentava uma nova perspectiva na vida…

    Tap tap tap…

    Mas antes que a situação continuasse, passos apressados se aproximaram.

    Sho apareceu, e atento, parou ao lado da irmã, levemente ofegante. — Irmãzinha! Está tudo ok?! Conseguiu achar seus óculos?! — perguntou ele, abaixando-se para vê-la de perto.

    — Está sim, é… como posso explicar…? Acharam pra mim — Aruni apontou para frente com a cabeça; a alegria no sorriso não foi ofuscada pela timidez.

    Ao perceber Mayumi, Sho curvava-se subsequentemente, enaltecido. — Oh! Senhorita Sanada! Muito obrigado por ajudá-la! Como é bom ter representantes de uma família de tão alto nível de etiqueta por perto! Obrigado por nos acompanhar!

    — Não precisa agradecer. Apenas zele por sua irmã com mais atenção. Nunca a deixe sozinha — embora o tom calmo, um breve sorriso tomou a jovem reverenciada, como se lembranças do passado tivessem lhe trago sentimentos preciosos — presença é o alicerce mais sólido que sustenta os laços entre aqueles que compartilham o mesmo sangue. Aproveite os momentos com ela, tá?

    Os olhos de Sho reluziam admiração. — Quanta sabedoria…! — Ele curvou-se totalmente, com a testa colada no chão — levarei seus ensinamentos pro resto da minha vida!

    — Oh! — Aruni também seguiu o gesto, a euforia do irmão a contagiou.

    E Mayumi? Não podia fazer nada além de aceitar o louvor dos dois com seu simpático sorriso…

    1. Rigidez fria, gélida, ou até emocional; mas neste caso, remete ao gelo em si.[]
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