Capítulo 30: Intrigas no jardim
Quando me dei por mim, estava em um grupo inesperado: Joaquim, sua prima Joana, Nix e Claire. O desfecho de minha luta com Joaquim não só havia selado uma reconciliação, mas também iniciado uma amizade peculiar. Ele tinha um jeito estranho de fazer amigos, admito, mas não parecia ter malícia em suas palavras ou ações. As tensões do início haviam se dissipado, substituídas por conversas sutis e trocas de olhares mais suaves.
Joana, por outro lado, era um enigma à parte. Quieta e introvertida, ela soltava risadas esquisitas quando ficava nervosa, um som agudo que parecia destoar do ambiente. A semelhança física com Joaquim era quase perturbadora: o mesmo tipo de rosto anguloso, o nariz idêntico, e aqueles olhos castanhos profundos que pareciam esconder segredos. Era difícil aceitar que estavam noivos, uma união arranjada pela casa deles, um laço forçado que ambos claramente rejeitavam. Joaquim havia confidenciado que seu coração pertencia a outra pessoa, mas faltava coragem para assumir isso. A cada palavra, eu percebia um peso em seus ombros que nem a luta mais feroz poderia aliviar.
Claire, desde nossa primeira dança, parecia não querer se afastar. Sempre encontrava uma forma de se posicionar dentro do meu campo de visão. Seus cabelos serviam de escudo, escondendo as faces coradas cada vez que nossos olhares se cruzavam. Ela falava baixo, como se cada palavra fosse um segredo compartilhado apenas comigo. Nix, sempre perceptiva, notou o interesse de Claire, mas, em vez de se incomodar, adotou a garota como uma espécie de protegida. Era como se tivesse decidido que Claire precisava de alguém, e ela estaria ali para ocupar esse espaço.
Sem perceber, eu estava reunindo aliados. Cada um, com suas peculiaridades, começava a formar uma rede ao meu redor. Uma teia de relações frágeis, mas promissoras.
Continuamos nossa conversa nos jardins, a brisa noturna trazendo um frescor revigorante. Claire, sempre curiosa, não escondia o fascínio por minhas habilidades mágicas. Ela havia escolhido o caminho da magia, assim como eu, e sua paixão pelo assunto era evidente. Segundo ela, a magia de cura era rara e preciosa, algo que poucos dominavam. As perguntas vinham em uma torrente incessante, e mesmo com seu quarto círculo de mana completo, Claire parecia uma aprendiz ávida por conhecimento. Eu respondia como podia, consciente de que cada palavra alimentava sua admiração.
De repente, um tumulto adiante chamou nossa atenção. Um aglomerado de jovens se formara perto da entrada do salão, vozes elevadas e olhares atentos. Decidi me aproximar, a curiosidade aguçada.
No centro da confusão, André Rulmar discutia com Cassiopeia, os olhos verdes ardendo de raiva. André era um homem robusto, a força evidente nos ombros largos e no maxilar firme. Seus cabelos castanhos avermelhados estavam desalinhados, os olhos carregados de uma embriaguez perigosa. Ao seu lado, de braços dados com ele, estava Alissande — minha meia-irmã. Ela permanecia firme, mas o desgosto era visível em cada linha de seu rosto delicado. Alta e esguia, a beleza de Alissande era impossível de ignorar. Seus cabelos negros e brilhantes caíam como uma cascata até o fim das costas, e seus olhos puxados, herança de sua mãe, davam-lhe uma expressão quase etérea. Seu rosto, de uma simetria perfeita, era coroado por lábios pequenos e rubros, que pareciam prestes a desabrochar.
A tensão era palpável. Joaquim, ao meu lado, suspirou ao olhar para André, um suspiro carregado de uma emoção que não consegui decifrar. Algo mais profundo se escondia ali.
— Você vai se arrepender de ter me recusado! — gritou André, a voz embargada pelo álcool. Seus olhos fixos em Cassiopeia, o ressentimento pingando de cada palavra.
Alissande, ainda segurando o braço de André, deu-lhe um leve tapa no ombro, tentando acalmá-lo. Sua voz soou fria, quase cruel:
— Calma, querido. No fim das contas, a recusa dela foi a sua sorte grande. Agora você tem a mim.
— Sim — respondeu Cassiopeia, com um sorriso cheio de desprezo —. Sorte grande de ganhar um prêmio de consolação. E você, minha irmã, pode ficar com o que sobrou… Uma cadela como você deve adorar restos.
Os olhos de Alissande transbordaram veneno. Conhecendo-a como eu conhecia, André jamais teria o perdão dela, nem Cassiopeia. Ele a havia colocado no centro de um conflito que não era dela. Ela o suportaria, mas aquela humilhação nunca seria esquecida. Já previa o destino dele: uma tempestade de chifres e traições que ele jamais veria chegar.
Sorri, quase sem querer.
Enquanto Cassiopeia enfrentava o foco das atenções, aproveitei para circular ao redor do grupo. Observava as expressões, os murmúrios, os olhares trocados. Precisava identificar quem mais a odiava entre os jovens presentes. Havia algo naquela multidão — uma tensão oculta, talvez uma pista para os atentados que tínhamos sofrido. Cada palavra sussurrada poderia ser uma pista, uma peça do quebra-cabeça que eu precisava montar.
Eu não havia percebido, mas meu outro meio-irmão, Roderick, estava ao lado de Cassiopeia, tentando a todo custo arrastá-la dali. Seu semblante era fechado, quase frio, mas havia um lampejo de preocupação genuína em seus olhos. Ele não parecia confortável com a situação, e a tensão em seu maxilar denunciava seu esforço para conter a irritação.
Cass, teimosa como sempre, resistia. Ela ignorava os apelos de Roderick, mantendo-se firme em sua posição, enquanto trocava olhares e palavras desafiadoras com André. A cada frase, o tom entre os dois se tornava mais cortante, como se aquele embate verbal fosse uma extensão de um conflito maior, algo que ia além daquela festa.
Roderick, por sua vez, parecia prestes a perder a paciência. O contraste entre a determinação impulsiva de Cassiopeia e o controle rígido dele era quase palpável. Ao invés de diminuir, a disputa entre Cass e André continuava a se acirrar, atraindo olhares curiosos e, certamente, alimentando rumores entre os convidados.
Minha observação, finalmente começou a render frutos. No meio do murmúrio da multidão, uma figura chamou minha atenção. Uma garota que eu não reconhecia. Loira, de olhos azuis penetrantes, unhas longas e pintadas de vermelho, irradiando uma presença quase magnética. Seu corpo era voluptuoso, cheio de curvas, e o sorriso sutil nos lábios deixava transparecer uma autoconfiança afiada como uma lâmina. Apesar de estar cercada por outros jovens, seus olhos estavam fixos em Cassiopeia e André. Seus lábios se moviam em um sussurro quase inaudível.
Um brilho sutil emanava dos seus olhos, tão discreto que passaria despercebido para qualquer um menos atento. Mas algo dentro de mim, talvez o instinto ou meu senso aguçado para a mana, captou a anomalia. Ela manipulava a mana com uma maestria impressionante, quase invisível.
Fechei os olhos por um instante, concentrando-me. Uma onda suave de energia percorreu meu corpo, ampliando minha percepção. E então, entendi. Ela estava usando um feitiço de ampliação de emoções, forçando o conflito entre André e Cassiopeia. Era sutil, quase imperceptível, mas poderoso. A raiva de André, a teimosia de Cass… tudo estava sendo amplificado.
Sem pensar muito, aproximei-me dela por trás, fingindo tropeçar. Quase a derrubei, minhas mãos esbarrando em seu ombro. Ela se virou com uma expressão de fúria, os olhos faiscando. Por um momento, achei que ela iria me atacar. Mas ao invés disso, me lançou um olhar gélido, quase letal, antes de se afastar, desaparecendo entre a multidão.
Nix e Claire estavam próximas o suficiente para notar.
— Quem é essa aí? — perguntou Nix, sua voz carregada de desconfiança. O olhar dela era avaliador, como se tentasse decifrar o que havia acontecido entre mim e a loira.
Antes que eu respondesse, foi Claire quem se adiantou.
— Elizabeth — disse, baixinho, como se o próprio nome carregasse algum peso. — Não a conheço muito bem, mas sei que vem de uma casa vassala da nossa. Ela é sobrinha de Annabela e ouvi dizer que tem talento com magia… muita gente tem medo dela.
Ela hesitou por um momento, como se quisesse dizer mais, mas se calou. Guardei o nome e as informações. Elizabeth. Precisava descobrir mais sobre ela.
O efeito do feitiço se dissipou, e pude ver a mudança imediata em André. O brilho de raiva nos olhos dele se apagou, como uma chama sendo sufocada. Sem mais uma palavra, ele se virou, arrastando Alissande com ele. Ela o acompanhou, mas seu olhar encontrou o meu por um breve instante. Havia algo ali — talvez raiva, talvez alívio. Algo me dizia que aquela história estava longe de terminar.
Roderick soltou um suspiro aliviado, mas ainda mantinha os punhos cerrados, como se pronto para outra explosão. Cassiopeia, por sua vez, estava imóvel, os olhos fixos no chão, como se tentasse juntar as peças do que acabara de acontecer.
Me aproximei dela.
— Você está bem? — perguntei, a voz baixa.
Cassiopeia levantou o olhar, um lampejo de vulnerabilidade cruzando suas feições. Mas assim que me viu, a expressão suavizou apenas por um instante, para logo se fechar como uma muralha.
— Alguém queria que essa briga acontecesse — murmurou, mais para si mesma do que para mim. Sua voz carregava um tom de desconfiança e frustração.
Assenti, silencioso. Elizabeth acabava de se tornar uma nova peça no tabuleiro, mas decidi guardar essa informação. Por enquanto.
Cassiopeia me lançou um olhar direto, frio como gelo.
— Conversei com minha mãe. Ela me confirmou sua história. Disse para confiar em você, até sugeriu que eu pedisse para você entrar na minha equipe. — Seus olhos se estreitaram. — Mas eu não confio. Você tem algo que me cheira estranho.
Seu tom era firme, quase desafiador. Não era apenas orgulho; havia algo mais profundo, uma necessidade de proteger o que era dela. Mesmo assim, sua voz tremia, quase imperceptivelmente. Cassiopeia Vulkaris nunca admitiria fraqueza, mesmo quando o mundo ao seu redor desabasse.
Nix e Claire se aproximaram, percebendo a tensão entre nós. Fiz um gesto, apresentando-as a Cassiopeia.
— Esta é Nix. E esta, Claire — disse, a voz neutra.
Cassiopeia apenas assentiu, o olhar avaliando cada uma delas. Nix retribuiu o olhar com a mesma intensidade, um leve sorriso provocador nos lábios. Claire, por outro lado, manteve-se mais reservada, desviando o olhar e ajeitando os cabelos. Parecia nervosa, como sempre.
— Por mais que você não acredite em mim — continuei, voltando a atenção para Cassiopeia —, só tenho boas intenções a seu respeito. Quero ajudar. Vou entrar na sua equipe, sim… se você pedir com jeitinho.
Um silêncio carregado se instalou. Cassiopeia me fuzilou com os olhos, a mandíbula travada. Por um momento, achei que ela fosse me atacar ali mesmo.
— Você tem a audácia de… — Ela parou, respirando fundo. — Sabe o que mais? Faça o que quiser. Mas se você me trair, Lior…
Ela deixou a ameaça pairar no ar, inacabada. Não precisava concluir; o aviso estava claro.
Nix reprimiu uma risada, sussurrando perto de mim:
— Você realmente gosta de provocar as pessoas erradas, não é?
Eu apenas sorri de canto, sem tirar os olhos de Cassiopeia. Talvez estivesse forçando a barra, mas alguma coisa me dizia que ela precisava dessa provocação. Precisava saber que, mesmo em um campo de guerra, havia aliados que não a tratariam como uma líder intocável, mas como alguém real.
— Confiança se constrói com o tempo — murmurei. — Vamos ver até onde essa estrada nos leva.
Cassiopeia não respondeu. Apenas virou-se, os ombros rígidos, e começou a se afastar. Roderick a seguiu, lançando um último olhar de advertência para mim.
Nix cutucou meu braço.
— Você está brincando com fogo — disse, a voz carregada de diversão. — E eu adoro assistir. Claire permaneceu em silêncio, mas algo em seu olhar dizia que ela estava começando a entender que estávamos todos jogando o jogo. Talvez ela precisasse rever suas atitudes e planos.
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