Capítulo 36: Descontrole
Depois do episódio, tentei voltar a dormir, mas os pesadelos não me deram trégua. Sonhei com Nix, Selune, Cassiopeia, minha mãe… até mesmo com Joana, Joaquim, Claire e outros rostos conhecidos. Todos estavam mortos, seus corpos deformados e transbordando miasma, servindo-me como marionetes. O que realmente me aterrorizava não era a visão grotesca, mas a satisfação estranha e doentia que aquilo me trazia.
Na manhã seguinte, sentado à mesa do café, sentia-me cansado, desorientado e enojado comigo mesmo. Quando olhei para Nix e Selune, por um instante, as vi como cadáveres ambulantes. Um arrepio percorreu minha espinha, mas o pior veio logo depois: um desejo mórbido e sombrio começou a tomar forma em minha mente.
Balancei a cabeça, tentando afastar aquelas imagens, mas elas eram persistentes. Meu coração disparou, enquanto pensamentos aterradores me consumiam. Eu ansiava pelo sabor do sangue, pela carne crua, e… por algo ainda mais perturbador. Um impulso sombrio e possessivo tomou conta de mim, como se quisesse dominá-las, torná-las completamente submissas à minha vontade. Queria que elas me adorassem como um deus.
Meu olhar cruzou com o de Nix. Seus olhos estavam cheios de preocupação, mas ela não disse nada. Ela não precisava. Sua pureza parecia ampliar minha culpa e vergonha.
Selune, por outro lado, enquanto me encarava, seus olhos sempre prateados e luminosos, estavam se tornando escuros como a noite. Havia algo diferente nela, algo que me desarmava completamente. Seus lábios se moveram, formando palavras que eu não queria ouvir:
— Mestre…
O tom era doce e submisso, mas carregado de algo sombrio. Era demais para mim. Levantei-me abruptamente, afastando a cadeira com um rangido.
— Não me sigam! — gritei, saindo da sala antes que pudesse perder o controle.
Corri para longe, tentando fugir não apenas das duas, mas de mim mesmo.
Refugiei-me na sala de banho, trancando a porta atrás de mim. Meu corpo tremia incontrolavelmente. Sentia o miasma dentro de mim descontrolado, pulsando como uma tempestade prestes a romper suas amarras. O ponto negro no meu núcleo de mana latejava e se expandia, ameaçando corromper e consumir toda a minha energia.
Tentei lembrar das lições de Selune, concentrando-me na respiração para acalmar a energia caótica. Mas o nervosismo me impedia de alcançar a concentração necessária. O medo era esmagador.
Foi então que senti um puxão em minha consciência, como uma âncora me arrastando para dentro. Minha contraparte sombria interveio, guiando-me para meu oceano de mana.
Ela estava lá, uma figura negra idêntica a mim, aguardando pacientemente.
O cenário refletia meu estado interno: um caos furioso. Ondas gigantescas colidiam umas com as outras, trovões rugiam e ventos cortantes rasgavam o ar ao meu redor.
Minha sombra me avaliou rapidamente.
— Acalme-se — ordenou, a voz firme, mas não cruel. — Não deixe o miasma tomar o controle. Você ainda não é forte o suficiente para dominá-lo.
Eu lutava para ouvir suas palavras, mas a tempestade dentro de mim crescia. Minhas extremidades começaram a escurecer, adquirindo a mesma tonalidade negra que revestia minha contraparte. Meu desespero crescia.
— Droga… — ela murmurou antes de agir. Sem hesitar, lançou-se contra mim, fundindo-se ao meu corpo.
Senti algo que nunca havia experimentado. Era como se, há muito tempo, uma parte de mim tivesse sido arrancada e, agora, estivesse retornando. Familiar e, ao mesmo tempo, completamente alienígena. Um universo inteiro de sensações, memórias e conhecimentos inundou minha mente. Era informação demais para processar, uma torrente tão avassaladora que apagou momentaneamente o medo e o desespero.
No centro de meu oceano, a esfera que continha a consciência de Mahteal pulsava com uma energia negra, viscosa, quase viva. Cada pulsação era absorvida pelo meu núcleo de mana, como um viciado consumindo uma substância proibida. Eu não conseguia discernir o que, naquela esfera, era Mahteal e o que era algo além, algo ainda mais obscuro.
A voz da minha sombra ecoou dentro de mim:
— Concentre-se. Acalme-se! Não podemos perder o controle agora. Ainda não estamos prontos.
Com uma rapidez e força que eu não conseguia utilizar sozinho, ele usou minha própria projeção para conjurar uma redoma ao meu redor, isolando-me da tempestade caótica e das pulsações malignas da esfera.
Mesmo assim, meus medos continuavam me puxando para o abismo. Cada pensamento sombrio era uma corrente, arrastando-me para mais fundo no caos. Então, como uma luz em meio à escuridão, pensei em Nix e Selune. Suas presenças reconfortantes, a calma que me traziam mesmo nos momentos mais difíceis. Lembrei-me das lições de Karlom, da importância de manter o foco mesmo quando tudo parecia perdido. Respirei fundo, agarrando-me àquele fio de sanidade em meio à tempestade.
Lentamente, minha respiração começou a se estabilizar. O rugido ensurdecedor do caos foi diminuindo, e as ondas furiosas do meu oceano de mana começaram a se acalmar. O silêncio tomou conta, e, pela primeira vez em muito tempo, senti um controle frágil, mas real, retornando.
Quando finalmente recuperei o controle, a redoma se desfez. Minha sombra, novamente separada de mim, me observava com uma expressão que me deixou desconfortável. Havia algo ali além da usual frieza calculada — preocupação genuína.
— Essas visões que você tem tido não são obra minha — disse ela, com a voz carregada de gravidade. — Sempre acreditei que a consciência de Mahteal estivesse adormecida, enfraquecida ou mesmo danificada. Mas está claro que ele está te influenciando. O que ele quer te mostrar ou o que planeja está além da minha compreensão.
As palavras dele trouxeram à tona memórias que eu tentava reprimir. Lembrei-me de quando agarrei Selune, um ato que, por mais que eu quisesse negar, não fora inteiramente meu. Não era como os impulsos violentos de hoje, mas ainda assim era algo sombrio, uma fome que parecia ancestral. O peso daquela lembrança me deixou inquieto, e o medo de que esses impulsos se tornassem mais frequentes — ou mesmo incontroláveis — cresceu como uma sombra no fundo da minha mente.
Na lembrança, Mahteal era uma presença colossal, dotada de um poder incomensurável, mas não invencível. Ele resistia aos impulsos, mas isso lhe custava caro. Cada vez que refreava os desejos sombrios por Malena, parecia carregar o peso de um fardo cada vez maior. Sua determinação era clara, mas também era evidente que cada vitória tornava os embates seguintes mais árduos, mais traiçoeiros.
Se o que eu sentira era apenas uma fração do que Mahteal enfrentava, o que mais poderia estar por vir? A ideia de que aquilo era apenas o prelúdio de algo maior e mais sinistro fez minha espinha gelar.
Lembrei-me de Malena. Quando pensei nela, uma emoção tão intensa quanto avassaladora me atingiu como uma onda. Era um amor tão poderoso que me deixou sem ar, mas não era meu. Eu sabia disso, mas isso não me impedia de sentir a emoção. Era um resquício de Mahteal, um fragmento de sua alma que agora pulsava em mim. Eu sentia seu amor por ela, como se fosse meu. Eu me perguntava o quanto das emoções e impressões dele eu carregava, achando que eram minhas?
Decidi permanecer ali, no meu oceano de mana, meditando. Precisava me recompor, fortalecer minhas barreiras e evitar que um novo descontrole tomasse conta de mim.
Minha sombra, percebendo minha fragilidade emocional, ficou em silêncio. Pela primeira vez, sua presença parecia desprovida de ameaça, oferecendo algo inesperado: apoio.
— Para te acalmar, tive que assumir o controle novamente. Não sei os efeitos da nossa união antes do tempo certo. Só posso esperar pelo melhor. — disse ela, com um tom carregado de pessimismo.
Já mais calmo, minha consciência começou a retornar ao corpo. Ao abrir os olhos na sala de banho, deparei-me com uma cena que, de alguma forma, me tocou profundamente. Nix e Selune estavam ali, vigiando meu corpo inerte. Seus rostos traziam expressões de preocupação, e seus olhares pareciam buscar respostas que talvez nem eu pudesse oferecer.
Ainda sentia o miasma de Selune ressoando com o meu. Era algo quase palpável, um chamado compartilhado que parecia estar, ao menos por enquanto, sob controle.
— Estou bem agora. — Minha voz saiu baixa, mas sincera.
Selune deu um passo à frente, quebrando o silêncio.
— O que aconteceu? — perguntou, hesitante. — Eu senti meu próprio miasma… Ele me atraía até você. Era como se sussurrasse coisas. Parecia que eu estava debaixo d’água. Nunca havia experimentado algo assim antes.
Respirei fundo, buscando uma explicação que nem mesmo eu compreendia completamente.
— Não sei explicar exatamente. — Minha resposta veio lenta, carregada de incerteza. — Mas perdi o controle. Meus medos, meus instintos… Eles assumiram, e algo sombrio me fez agir de um modo que eu não queria. — Baixei o olhar, envergonhado. — Para proteger vocês, fugi. Tive medo de machucá-las.
Antes que pudesse dizer mais, ambas se aproximaram, e o abraço que recebi foi tão inesperado quanto necessário. Havia ternura em Nix e força em Selune, mesmo em sua vulnerabilidade.
Nix ergueu o rosto, seus olhos dourados brilhando com determinação.
— Estamos com você. Vamos sempre te ajudar.
Selune permaneceu em silêncio, mas seu olhar dizia mais do que qualquer palavra. Havia algo ali, algo profundo e inquietante. Ela estava assustada, mas não apenas comigo. Era como se tivesse sentido a ressonância sombria entre nós, um vínculo que não podíamos ignorar.
Eu sabia que tudo era mais complicado do que parecia. E, pelo brilho em seus olhos prateados, Selune também sabia.
Depois de tudo, percebi que precisávamos de um momento para respirar. O dia tinha sido pesado demais, e a tensão pairava no ar como uma nuvem espessa.
— Vamos sair um pouco. — sugeri. — Nada de treinos ou preocupações hoje. Vamos dar uma volta pela cidade, experimentar as comidas de rua, explorar as barracas do mercado…
As duas me olharam, surpresas, mas não demoraram a aceitar a ideia. Elas também precisavam disso, talvez até mais do que eu.
Com o humor um pouco mais leve, partimos em direção à cidade. Por algumas horas, nos permitimos esquecer o peso das sombras que nos cercavam, imergindo nos sons, cheiros e cores vibrantes do mercado.
O evento na Casa Vulkaris seria amanhã. Eu precisava estar com a mente limpa, afastado dos ecos do que havia acontecido hoje. E, acima de tudo, precisava me lembrar de que, mesmo nas trevas, ainda podíamos encontrar luz em momentos simples e humanos.
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