“Devido à tensão de cair da árvore, minhas mãos já estavam quase escorregando de tanto suor.  Seu tronco era branco com pontos amarelos, com alguns galhos quebrados dispostos pela madeira.”

    — Relaxa, qualquer coisa eu te seguro! — Caius gritou lá de baixo.

    “Nessa hora eu deveria estar no chão, trabalhando nos campos de trigo, e não a oito metros de altura dele! Arranquei algumas frutas do pé e as joguei para ele, elas eram bem pequenas e redondas, e seu aroma…”

    — É melhor tampar o nariz, evite cheirá-las!

    “Eu quase havia esquecido. Eu só queria pegar pelo menos mais uma. As folhas faziam cócegas em meu braço estirado, minha mão quase alcançava aquela poma peluda. Em vez de tentar subir mais um pouco, estiquei o máximo que pude até o cotovelo estalar, mas um líquido caiu em uma parte da mão e o resto na testa. Era uma dor latejante, parecia queimar a minha pele. Aos poucos, ficava cada vez mais dormente. Sem prestar atenção, me soltei da árvore berrando de dor. Fui cambaleando durante a queda, batendo as pernas no tronco até cair nos braços de Caius.”

    — Argh! Merda, ta doendo demais! — Puxei meus cabelos com força. — Caius! Seu ombro, está em carne viva! 

    — Não… não se preocupa, já estou acostumado. — Sua postura se mantinha ereta.

    “Ainda me segurando, deu alguns passos para trás e viu o líquido escorregando pela madeira e gotejando no chão. Levantou a cabeça e viu uma criatura parada, olhando para nós, ela grunhiu de raiva e se escondeu entre as folhas.”

    — Um Vernoferno, odeio essas pragas. — Estirou o dedo do meio para o animal.

    “Correu até um córrego próximo, molhou minha cabeça e afundou meu braço.”

    “Meus olhos lacrimejavam pela dor lancinante, além da dificuldade de respirar. Minha atenção estava tão voltada ao meu braço corroído, que nem pensei em respondê-lo. Mas com o fluir das águas, pareceu estabilizar. Me virei para deitar-se no chão, como se estivesse cansada por correr uma maratona.”

    — Tá… — O peito se erguia e descia freneticamente. — Tá tudo bem — disse rapidamente.

    “Por mais que doesse muito, a pele rapidamente parou de ulcerar.”

    — Então, tudo bem. — Seus dentes apareceram, refletindo um triunfo. — Descansa aí que vou pegar as frutas do chão.

    “O sol encandeava meus olhos enquanto apreciava as nuvens passageiras, sentindo o vapor quente da expiração.”

    — Laurient, se levanta daí, já até triturei as frutas. Elas viram esse pó rosa. — Mostrou-me de longe.

    “’Como ele conseguiu suportar essa dor?’, Foi o que me veio a mente, ele estava tão focado em fazer seu trabalho.”

    “Fomos à caça do suídeo. Lá estava ele, deitado da mesma forma que antes. Me posicionei precisamente como dissera, a poucos passos em frente a ele.”

    — Irmãozinho, vou ter que fazer algo mais importante. A única coisa que você vai precisar fazer é assoprar esse pó no nariz da criatura e correr para longe do campo de visão dele, certo?

    — Se esse bicho correr atrás de mim, Caius, eu juro por Sornenm que eu vou… — Tapou a boca dele com sua mão.

    — Já entendi, já entendi. Vai lá. — Girou o garoto em direção a criatura e correu para dentro da floresta.

    — No momento em que ele abrir os olhos, corre em direção à cachoeira, sem olhar para trás.

    — Onde eu fui me meter. 

    “Louis soprou o pó perto do nariz do animal, caindo como fuligens em seu focinho. Ele ficou dando fungadas e espirrou grosseiramente, certamente do jeito como uma coisa de mais de cem quilos espirraria. Ele saiu correndo para longe, até que adentrou a floresta atrás do irmão.”

    “Ele estava ficando vermelho e seu focinho inchado. Até que abriu os olhos à procura da primeira coisa em sua frente. Sem esperar mais um segundo, disparei até o local combinado. Passei por entre árvores e desci a pequena colina, desejando para que me perdesse de vista, por mais que Caius quisesse essa conquista. Parecia que o plano tinha falhado, não o vi atrás de mim… foi quando acabara de aparecer em cima da colina e descera desenfreado, esbarrando entre os troncos pesados.”

    “‘É humanamente impossível fugir daquilo’, era o que eu pensava. Com minhas pernas comuns, comparadas às daquele troglodita, eu já estava morta. Mas algo tomou conta de mim, uma estranha euforia que começou a pulsar nas veias. Era como se o cansaço tivesse evaporado, substituído por uma energia inesperada e arrebatadora. Cada passo era mais leve que o anterior, os músculos respondiam com uma força que eu não sabia que tinha. Não fazia sentido, mas meu corpo parecia ser movido por um ímpeto desconhecido, uma espécie de êxtase frenético que me impelia a correr mais rápido, como se a própria fuga fosse a fonte de minha vitalidade. Não sabia de onde vinha aquilo, mas era o que mantinha a criatura à distância.”

    “Aproveitei dessa intuição corpórea e utilizei as árvores no caminho para despistá-la o quanto pude. No momento em que quase havia me alcançado, virei-me empurrando com toda a força para o lado e o Couramuço atingiu a cabeça no tronco. Era uma árvore média, mas mesmo assim, deixou um rombo com a marca de seu crânio na madeira, e caiu para o lado logo após. Pude ganhar uma brecha de quatro ou cinco segundos extra para correr. Quase lá, o fim do rio era bem em frente.”

     ‘Mas, não vai haver saída’, foi o que pensei quando parei por poucos centímetros da costa.”

    “O animal vinha cada vez mais veloz e eu apenas apostava todas as minhas fichas no plano de Caius…”

    — Levanta os braços — disse ele de cima das árvores.

    “E em poucos segundos antes da colisão, ele me puxou para os galhos, e o Suídeo desenfreado caiu no lago, debatendo para levantar o focinho para cima, até que uma hora perdeu as forças… então descemos para requisitar nosso prêmio.”

    — Argh, vai, puxa mais forte! — Sua voz gutural saia do fundo da garganta enquanto empurrava a criatura de dentro da água.

    “Nos arrastamos o corpo da criatura o mais próximo da borda, até que a água não fosse mais suficiente para nos ajudar a amenizar o peso. Estamos suados e suados e famintos.”

    — Como vamos cortar a carne desse bicho?

    — Não está óbvio? De dentro para fora.

    “Puxou o punhal do bolso, abriu sua boca e cortamos o animal pelas estranhas. A pele era rígida e elástica, então a cortamos fora, contornando o corte na carne. Nem uma bacia, nem folhas e nem mesmo um saco, nós pegamos o tanto que conseguimos carregar, segurando com as mãos, e estávamos voltando à colônia com uma boa parte do corpo ensanguentada e sentindo o cheiro da carne crua.”

    — Onde vamos colocar tudo isso? — disse Louis

    — Cada um leva o seu pra casa. Me parece justo… 

    — E deixarem vocês com mais da metade? Nem pensar, eu quem fiz a parte mais difícil!

    — Pega aqui… — Caius colocou um pedaço extra de carne em minha pilha, mas era menor que a palma de sua mão.

    — Ta brincando comigo? 

    “Nesse meio tempo, enquanto discutíamos, um guarda ewuliano nos abordou grosso modo, como sempre. Os sons dos passos de sua armadura, revestida em cota de malha, se aproximavam cada vez mais, ao compasso que se arrastavam na mesma terra em que chamavam de podre.”

    — Caça ilegal sem supervisão… hm… ou será que meus olhos estão me enganando? — Fechou os olhos e abriu os bolsos de seus braies. Aproveitei para sair de seu campo de visão.

    — Não te daremos nenhum trocado, seu imbecil. — Caius estirou a língua sem pensar duas vezes.

    — Caius… — Louis murmurou, se escondendo atrás da figura de seu irmão.

    — Do que você me chamou, colono de merda? — Retirou a espada da bainha, apontando para o queixo dele.

    — Chamei de imbecil! — Arremessei um pesado pedaço de carne com osso em sua cabeça, ele cambaleou. — Corre.

    “Conseguimos fugir e nos esconder após alguns minutos. Já estava escurecendo e o dia tinha sido cheio, cada músculo do meu corpo ficara exausto.”

    — Toma, pode ficar. — Louis entregou toda a sua parte que ganhara da caça para mim.

    — Pronto, agora está justo, ou a senhora reclamona tem algo a mais para acrescentar? 

    — Valeu, Louis, esse tanto já está ótimo. 

    Nos despedimos e fui direto para o meu pequeno pedaço de terra que tentava chamar de lar. Corri para acender uma fogueira que montei fora de casa, e imediatamente pus o suídeo para assar, esperando ansiosamente para terminar logo com aquele sofrimento. Aquele desejo… um anseio inescapável. A cada vez que piscava os olhos, podia sonhar com a suculência da carne sendo mastigada entre os dentes, o cálido sangue escorrendo pela língua, as fibras rasgando…

    Minha boca inundou de saliva, e os respingos chiavam no calor.  Retirei do fogo no exato momento, ainda nem estava assado, mas devorei em uma mordida só. Por quê? Cadê todo aquele prazer? Não… não, não, não, não. De novo! Coloquei tudo para assar. As chamas dançavam sob meus olhos, durante todo aquele espetáculo de pura vermelhidão.

    Não, não pude aguentar, minhas entranhas suplicavam por comida. Tentei morder, tentei lamber, mordisquei, mas nada, nada funcionava, eu engolia direto. Toda a carne havia acabado. Era enlouquecedor. Deitei-me em posição fetal abraçando meu corpo ali mesmo perto da fogueira. Me balancei e fechei os olhos para tentar dormir, mas minha mente pairava em completa agitação.

    — Aarrgh. — Algo gritou em desespero, aquilo não era eu… não queria acreditar que fosse.

    Bati minha cabeça em uma placa de metal para ver se desmaiava, não funcionou. Mais uma vez! Falhou… repeti, até que minha testa começasse a sangrar. O som dos meus ossos colidindo com o metal ecoava por aquela tortuosa noite interminável.

    — Ae! Pare de barulho, porra. Tem gente que trabalha amanhã! – Alguém se irritou.

    Só mais uma vez…então, finalmente adormeci.

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