Capítulo 10: As súplicas de Rounn
Acordei com o som de passos pesados rugindo pelo corredor. Dois guardas entraram na cela, suas expressões estavam tão impassíveis quanto máscaras. Antes que eu pudesse reagir, um deles agarrou meu braço e me deixou de pé, enquanto o outro amarrava mais correntes em torno dos meus pulsos.
“Qualquer esforço será inútil. Se não forem eles, será a mácula que irá me impedir.”
Levaram-me até a sala de cirurgia. O cheiro metálico era nauseante, uma mistura de sangue e produtos químicos. No centro, uma mesa de pedra, manchada e rachada pelo uso constante, me aguardava. Fui forçada a deitar nela, e minhas correntes foram presas em ganchos que me mantiveram imóvel.
Um homem vestido com um avental de couro e uma máscara totalmente fechada, organizava algumas ferramentas em cima de uma bancada…
Eu… prefiro não escrever sobre essa parte de forma detalhada. Mas meu corpo ficou muito ferido. Algumas ferramentas foram quebradas no processo e o “açougueiro do Coliseu” não ficou nada contente. Verificaram como funcionava a anatomia da minha mão e do sexto dedo, foi como disseram. Depois, testaram a resistência do meu corpo e procuraram descobrir como funcionava a Antropofagia. Esse era o nome atribuído à mutação, um fenômeno assombroso que conferia ao portador a capacidade de assimilar a força daqueles que consumia. Uma morfose tão perturbadora quanto poderosa. Avisei para Vann (quero dizer… Ubran) sobre ela, caso contrário, eu enlouqueceria dentro daquele vagão e faria um alvoroço.
Os dias se passaram, e a noção de tempo começou a se perder. Era sempre o mesmo ciclo: Eu era levada, testada, explorada e retornava à cela. Cada experimento parecia levar um pedaço de mim embora. Então foi quando ganhei este caderno. Me disseram para anotar tudo o que aconteceu comigo desde a descoberta dessa mutação. Provavelmente irão utiliza-lo para pesquisas futuras.
Nestes últimos dias, estão testando até que ponto eu aguento a fome, mas eu já sei muito bem qual será o resultado disso… enfim, faltam poucas horas para que eu perca a minha sanidade. Pedi para que me colocassem em outra cela, mas não cederam ao meu desejo. Pelo visto, o meu velho cientista nunca mais verá a luz do sol.
Dia: ?
Eu voltei! Quantos dias haviam se passado? Eu não sei. É assustador perder a noção do tempo desse jeito, como se parte da minha vida tivesse sido apagada. Nos primeiros minutos após a minha consciência ter voltado, eu estava dentro da minha cela comendo um pedaço de carne crua num prato de barro. Os ossos das minhas costelas estão começando a aparecer, esses imbecis acham que eu sou imortal… será que eu sou?
— Eu preciso de mais! Me deem mais carne! — É inútil.
Eu preciso saber o dia de hoje. Em que estação estamos? Será que se passaram anos? Se pelo menos pudesse usar o crescimento do meu cabelo como pista… mas eles o cortaram.
Todo esse estresse me resultou em uma dor de cabeça lacinante. As memórias dos últimos dia percorreram em minha cabeça como repentinas imagens distorcidas. Elas ressoavam em minha mente: o ruído das ferramentas; o corte da lâmina; o miasma dos produtos químicos. Era rápido demais para assimilar com clareza.
Comecei a ouvir coisas. Vozes que pareciam vir das paredes, murmúrios que zombavam de minha fraqueza. “Laurient, a colona de Nounhill, enclausurada em uma prisão de um laboratório ilegal”. Que título mais desonroso, eu sou uma vergonha para meus semelhantes. Meus amigos… quem eram eles mesmo? Isso não importa mais. Devem ter me abandonado aqui, à mercê de uma vida luxuosa. Ingratos.
As sombras da cela começaram a parecer mais vivas, movendo-se quando eu não olhava diretamente para elas. Minha cabeça foi tomada por uma tontura azucrinante, quanto tempo eu fiquei sem comer? Eu preciso de respostas! O velho… cadê o velho? Será que eu o devorei? Não… caso contrário, eu teria despertado com seu sangue em mãos.
Pelo visto, não há nada que eu possa fazer. Irei deitar-me aqui e esperar meu cadáver ser engolido pelos vermes. Da mesma forma que fiz com os outros, eles tomarão minha vitalidade. Só preciso deitar… e esperar…
Finalmente, após horas, algo de interessante aconteceu. Começei a prestar atenção aos berros irritantes aumentando cada vez mais. As palavras não pareciam claras, mas definitivamente eram gritos de pavor. O som estava cada vez mais perto, até que de repente, soldados enfurecidos chutaram a porta do corredor, pareciam apressados. Eles carregavam consigo entre seus braços um prisioneiro. Jogaram-o em uma cela próxima à minha, era ele o responsável por toda essa inquietação nos corredores.
— Da próxima vez, é melhor que cortem a língua desse desgraçado.
— Escutar ele berrando é pior que ouvir o estalo de um sondador. Agora terá que passar o resto dos dias escutando o falatório desse moleque. Hahaha. — Apontou para mim.
— Me disseram que o antigo companheiro de cela dele teve o cérebro derretido e saiu pelos ouvidos. Hehehe.
Pareceu que toda a fúria dentro deles fora trocada por uma satisfação incalculável. Ótimo, agora não terei mais momentos de tédio, e pelo visto, nem de sossego.
— Por favor! Não me deixem aqui! — Sua voz estava tensa, ele falava como se tivesse engasgado.
Os guardas saíram, foi o seu último contato com aqueles homens. A partir desse momento, suas reclamações seriam ilógicas e desnecessárias. Mas ele não calava a boca.
— Não, não, não… — Desesperado, ele soluçava, segurando com força as barras da cela enquanto balançava freneticamente o corpo.
Eu já perdi as contas de quantas vezes ele já repetiu essa palavra.
— Se você não fizer silêncio por um segundo, eu juro que vou até aí acabar com o seu sofrimento… para sempre!
Ele me ignorou?
Mordi o vergalhão da cela da mesma forma que antes. Mas o ferro nem se moveu. Foram tentativas inúteis. Maculada e enfraquecida. Eu não sou mais nada… nunca estive tão impotente em toda a minha vida quanto neste momento. O prisioneiro sentou-se no chão e começou a orar.
— Hornnek, meu senhor, derramai sobre mim as bênçãos do vosso manto radiante. Perdoai os irmãos de guerra por suas tiranias. Erguei vosso poder pela justiça, não pela espada. Acolhei-me sob o vosso manto enquanto houver males ao meu redor, e… — Seus braços se cruzavam, formando um simbolo de oração.
— Ótimo, agora terei que escutar as suas súplicas.
— AAH! — Um grito repentino? Quanto ódio em um só coração.
Mas não era apenas um clamor de fúria. Esse grito… eu já o ouvi antes! Era o grito da agonia… de uma dor pior do que a mordida de um Vernoferno. Pensei que a sua cabeça fosse explodir como aconteceu com o velho lavrador. Mas ele começou a vomitar algo negro. Era o pleófago, a criatura estava saindo da sua boca como se fosse entranhas. Mas a quantidade era pouca e, felizmente, o pleófago não sobreviveu por muito tempo fora de seu hospedeiro. Era repulsivo, mas por ser algo tão único de se assistir, também era chamativo. Parecia um truque de mágica genialmente executado, mas era real.
Já não bastava o odor mofado dessa prisão, ainda tive que lidar com o fedor pútrido de seu vômito. Ele parecia um Homem tão animalesco quanto o ser que tinha vomitado. A primeira impressão que tive foi de alguém em constante sofrimento, deformado, irregular… Contudo, subitamente ele ajustou sua coluna, de maneira perfeitamente ereta. Seu rosto estava muito sério. Ele limpou as lágrimas e estranhamente se recompôs.
— Perdoe-me os modos. Eu me chamo Rounn… — Curvou-se com a mão sobre o peito.
Sua voz tornou-se mais cortês e formal. Seu longo cabelo apresentava um ruivo avermelhado, formoso como uma cascata de sangue, ou como uma chama ornamentar. Seu nariz comprido complementava harmoniosamente a sua personalidade… e esse seu belo cabelo.
— Sou Laurient… você estava berrando como uma criança desesperada, prestes a ser decapitada. Mas, de repente, começou a agir como uma pessoa sensata. Isso foi estranho.
— É um prazer, Laurient. E essa foi uma analogia devidamente atípica. — Pôs as mãos na grade. – Agonia, aflição, angústia… são palavras esbeltas, mas todas comunicam a degradação… o mais puro sofrimento que sinto todos os dias desde que vim para cá. Toda vez… toda vez que preciso expeli-lo, é uma sensação horrenda. No dia em que eu não temer mais a dor, eu estarei louco, Laurient.
— Pela escolha de palavras, você aparenta ser do alto escalão de alguma cidadezinha de nobres por aí.
— Já que não vamos sair daqui tão cedo, se é que vamos sair, não vejo problema em trocarmos algumas informações pessoais. Eu sou de Vallendrea, uma cidade pertencente ao rico império de Draffey. Além disso, estou acometido por um parasita; porém, isso já está claro… — Olhou para os restos do pleófago no chão. — Mas o que você não sabe…
Afastou a manga da roupa. Ele queria me mostrar a sua mácula, as tatuagens eternas forjadas pela manopla. Por que ele queria me mostrar isso… O ninfalídeo! São as mesmas asas da minha mácula. Na verdade, elas são praticamente idênticas.
— Percebi o desenho do ninfalídeo em suas marcas, é a primeira vez que vejo algo assim entre as tatuagens. Tem algum palpite sobre o que possa significar?
— Isso é tão novo para mim quanto para você, acredite. Mas sim, é muito interessante.
— Qual a cor da sua?
— Entre roxo à lilás. E a sua?
— Verde escuro… talvez tenham significados diferentes.
No final, ele se apresentou como alguém realmente agradável, apesar de nossas diferenças. Acho que os próximos dias não serão tão entediantes assim. Rounn de Vallendrea, uma figura intrigante para compartilhar o resto dessa vida miserável de escrava. Me mostre o seu pior lado…
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