Enquanto os escravos limpavam os restos da última luta e preparavam a arena para o próximo confronto, Rounn e eu permanecíamos perto da entrada, onde o ar era menos sufocante e os gritos da multidão soavam mais distantes. Ele ainda usava a armadura de couro, com marcas frescas da batalha, e segurava a espada embainhada. Parecia cansado, mas a adrenalina de sua vitória mantinha seus olhos brilhando.

    — Você lutou bem lá dentro — comentei, tentando quebrar o silêncio.

    — Bem? Foi só isso? — Rounn ergueu uma sobrancelha, o canto da boca encurvou-se em um meio sorriso. — Eu fui incrível! Por mais que ainda me falte habilidade, pode-se dizer que sou um exímio guerreiro na arte da lâmina…

    — Não vou dizer mais nada para não inflar seu ego, mestre espadachim — retruquei, cruzando os braços.

    A conversa foi interrompida pelo som do portão de ferro se abrindo novamente. O próximo lutador havia entrado na arena, era um homem alto, de cabelos curtos e de expressão endurecida, arrastando uma corrente pesada enquanto segurava uma lança. A multidão voltou a rugir, ansiosa pelo próximo espetáculo de sangue.

    — Será que ele vai sobreviver?

    — Se tiver sorte… ou habilidade.

    De repente, todos ouviram um estrondo de algo se quebrando. Parecia ter sido no próprio coliseu. Era o som de paredes sendo demolidas. Segundos depois, um grito distante percorreu o ambiente, ricocheteando velozmente de ouvido em ouvido como um trovão.

    — VANN DESTATD… ESTÁ MORTO!

    Aquelas palavras eram muito impactantes para absorver de imediato. Tudo congelou. A plateia, os guardas, os prisioneiros — até o lutador na arena parou de se mover, a lança pendendo em suas mãos. Meu coração disparou, e Rounn me olhou com uma expressão que eu nunca tinha visto antes.

    — Os contratos de alma… — Ele murmurou, quase sem acreditar.

    — Rerdram, seu desgraçado…

    Foi então que o caos começou.

    Os prisioneiros, antes mantidos sob controle pela mácula, começaram a se libertar. Gritos de desespero e fúria ecoaram por todos os lados. Agora todos podiam utilizar suas habilidades sem limitações, e o resultado foi um espetáculo sanguinário. Guardas tentavam conter a multidão, mas eram rapidamente sobrepujados. A organizadora largou a prancheta e tentou fugir, mas foi morta antes que pudesse sair pela porta da sala. Outro guarda foi arrancado do chão por um prisioneiro que o esmagou contra a parede como se fosse um boneco de pano.

    — Laurient, temos que sair daqui. Agora! — Rounn puxou meu braço, mas eu já estava em movimento, os sentidos alertas enquanto o pânico tomava conta do lugar.

    Havia gente se rebelando por todos os lados. Na metade do caminho, o chão começou a tremer. Algo profundo, primal, parecia emergir das entranhas do coliseu. As paredes de pedra começaram a rachar, e do solo surgiram raízes gigantescas, grossas como troncos de árvores antigas, que avançavam com força destruidora.

    Um dos prisioneiros, com olhos brilhando em um tom verde-selvagem, estava no centro da arena, os braços enterrados e pulsando dentro do chão como se comandasse as raízes. Sua expressão era de pura fúria, e cada movimento fazia as plantas invadirem mais o espaço, destruindo pilares, arquibancadas e tudo ao redor.

    Rounn me puxou para trás de uma pilastra enquanto uma raiz atravessava o chão, espalhando estilhaços de pedra. As raízes não apenas destruíam o coliseu, mas atacavam guardas e prisioneiros indiscriminadamente, esmagando-os ou lançando-os pelo ar. O som era ensurdecedor: o rugido das raízes destruindo as paredes, os gritos da plateia e o barulho dos passos de todos correndo.

    Descemos por um atalho em um túnel que levava a uma saída em um pequeno morro. As raízes eram perigosas, mas o tumulto seria menor. Desviamos de escombros e raízes que cresciam em nossa direção. O teto começou a ceder, pedaços de pedra caindo a poucos metros de nós. Tudo parecia desmoronar ao nosso redor, mas Rounn não soltava meu braço, puxando-me com força. Ele estava mais ágil e focado. A poucos metros da saída, surgiu um soldado que não parecia ser guarda do coliseu nem da cidade de Dealina. Ele preparou a lança, fitando-nos com determinação.

    — Desculpe, Laurient, mas estamos com um pouco de pressa, certo?

    Assenti, já sabendo o que ele pretendia fazer. Não podíamos parar para lutar nem por um segundo; o teto provavelmente desabaria sobre nossas cabeças. Já fazia três dias, o parasita devia estar de bom tamanho.

    — É farto o que enxergo em seu coração. Extingue tudo o que é belo, mortifica nosso júbilo… — recitava apressadamente.

    — Rounn, mais rápido! Ele está logo ali! — Não parecia suficiente. — Aquele brasão…

    — Um soldado vallendreano? — Ele apertou minha mão com mais força, contendo a fúria que uma lembrança solitária alimentava. — Desapareça da minha frente! — O pleófago cumpriu sua tarefa com êxito.

    Conseguimos escapar por uma passagem lateral. O céu do lado de fora do Coliseu estava tomado por fumaça, tingindo tudo de um cinza opressor. O cheiro de terra queimada e poeira invadia nossos narizes. Podíamos escutar os berros distantes de prisioneiros e soldados em combate. Finalmente chegamos à floresta. Quando paramos, ambos estávamos ofegantes, com os rostos sujos e suados.

    Por um momento, nos escondemos entre as árvores que cercavam o coliseu, tentando recuperar o fôlego.

    — O que um soldado de Vallendrea faz aqui? — questionou Rounn, tomado de indignação.

    — Isso deve ter relação com a morte de Destadt.

    — Ele não é um Destadt de verdade. — A fúria crescia em sua voz.

    — Como sabe disso? Encontrou-se com o velho?

    — Qual velho…? Digo, foi isso mesmo. E como você descobriu…? Quero dizer, óbvio que foi com o velho. Pergunta besta.

    — Tá bem… — Apertei os olhos.

    — Temos que ir para a casa da Senhora Durval! — disse Rounn com urgência.

    Ele mudou de assunto antes que eu fizesse mais perguntas. Ainda segurava a espada, e seus olhos estavam fixos no chalé onde ela vivia.

    — Ela pode ser atacada por algum fugitivo ou soldado.

    — Se ainda estiver lá, não conseguirá sair sozinha.

    Corremos novamente, desviando dos destroços pelo caminho. Ao chegarmos à cabana, o silêncio parecia ameaçador. As janelas estavam fechadas, e a porta entreaberta balançava suavemente ao vento. Rounn foi o primeiro a entrar, em alerta, os olhos varrendo o ambiente.

    — Senhora Durval? — ele chamou, a voz tensa.

    Um ruído fraco veio do canto da sala. A mulher idosa estava sentada no chão, tentando se levantar. Ela parecia assustada, mas aliviada ao nos ver. Um homem com armadura e o brasão do Império de Hiutan jazia morto no chão.

    — Rounn… Laurient… — A dor em sua voz era evidente.

    Ela tentava se levantar, mas o tornozelo inchado a impedia.

    — Vamos tirá-la daqui — disse Rounn, aproximando-se para ajudar.

    — Meu pé… — murmurou, indicando o inchaço.

    Eu a segurei com firmeza, ajudando-a a levantar-se.

    — Eu cuido dela. — Olhei para Rounn. Ele assentiu e abriu caminho para sairmos.

    Estávamos correndo de toda aquela confusão. Enfim, eu já podia sentir a liberdade percorrendo pelo vento que soprava em meu cabelo. Quantas expectativas eu estava criando naqueles poucos minutos fora do Coliseu; e sem a mácula para nos confinar. Mas foi cedo demais. A poucos passos de sua casa, um som de correntes ecoou pelo ar, vindo de trás de nós. Olhando para trás, antes que pudesse reagir, algo brilhou no canto da visão. Uma corrente grossa e reluzente disparou pelo ar, movendo-se como uma serpente, e sua ponta laminada perfurou meu ombro e atravessou o peito de Durval.

    Era uma técnica brutal. A ponta da lâmina se abriu, dividindo-se em quatro partes. Fomos puxadas para trás, caindo no chão com um baque que me tirou o ar. Ele nos carregava como peixes em um anzol

    Rounn se virou imediatamente, a espada em estava em seu punho, mas seus olhos, arregalados de medo e raiva. O cavaleiro surgiu da escuridão, puxando as correntes com facilidade, como se fossem extensões de seu próprio corpo. Ele era alto, e utilizava uma armadura negra, brilhante como obsidiana sob a luz do luar. Seu rosto estava oculto debaixo de um elmo. Silencioso e mortal.

    — Laurient! Durval! — Ele deu um passo à frente, mas eu o interrompi antes que ele fizesse algo imprudente.

    — Rounn, corra! Vá embora. — Tentei lutar contra as correntes, mesmo sabendo que era inútil.

    Ele hesitou, a espada tremia em sua mão. Eu vi o conflito passar em seus olhos, a vontade de me ajudar lutando contra o medo e a lógica. Ele não ganharia, pelo menos não sem sua morfose. E ele já a havia usado fazem poucos minutos.

    — Rounn… Rounn Destadt? — O cavaleiro tirou o elmo, mostrando… seu esbelto cabelo sedoso? era tão escuro quanto a noite. Seu rosto destacava-se como uma estrela perante a imensidão do seus longos fios. — Pensávamos que estava morto. É uma pena ter que revê-lo assim, em um estado tão deplorável… em um situação tão ambígua.

    Ela disse “Destadt”? Agora eu não estou entendendo mais nada. Ele estava calado, com os olhos arregalados, perdidos na vastidão de seu cabelo. Paralisado pelo temor de algo que eu ainda não sei sobre ele. Respirava pela boca, aflito. A espada escorregou de sua mão trêmula. Só o que entendi é que esses dois se conhecem.

    — Vá, agora! — insisti, minha voz saindo mais desesperada do que eu gostaria.

    — Então… você também é um profano? Argh… ela é sua amiga? — Ele não respondia nada. — Se escolher abandoná-la, eu irei te dar dez segundos para sair daqui, e fingimos que isso nunca aconteceu, entendeu? dez… nove…

    Rounn finalmente recuou, os dentes cerrados. Seu corpo parecia rígido, mas ele tomou sua decisão.

    — Laurient… — murmurou ao vento. Ele abaixou a cabeça e seus olhos se tornaram escuros.

    Com um último olhar para mim, ele virou-se e correu para a floresta, desaparecendo entre as árvores.

    — Adeus, Rounn. — Sussurrei.

    Minhas expectativas foram mais uma vez destruídas. Esses… esses monstros não param de me perseguir. O que eu fiz para merecer tudo isso? Parece que o destino me caça sem descanso algum. Meu rosto enrugado apertava como uma bola de papel molhado, até que não consegui mais segurar as lágrimas e chorei como uma criança birrenta. Toda a esperança jaz morta dentro de mim. Eu não aguento mais!

    — Rounn! um dia… um dia ainda pintaremos este mundo de amarelo! — Gritei com todas as forças para ele pudesse ouvir de dentro da floresta.

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