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    De volta à mansão, algo me incomodava, era uma sensação que vinha da minha ligação  com meu camundongo espião que se encontrava em cima da minha escrivaninha, seus pequenos olhos brilhantes fixos em mim. Sentia que ele desejava miasma.

    Com cuidado, manipulei um fio fino de miasma até ele e o deixei absorver a energia. Enquanto fazia isso, uma ideia surgiu em minha mente. E se ele pudesse localizar outros focos de miasma?

    Através de nossa ligação, dei-lhe uma ordem mental clara: “Procure pela cidade por lugares onde o miasma residual seja mais forte.” Com isso, talvez eu pudesse descobrir outros usuários de miasma ou locais de interesse. O pequeno roedor inclinou a cabeça, como se compreendesse minha ordem, e desapareceu pelas frestas da janela.

    Satisfeito com meu plano, fui me deitar.

    No meio da noite, um movimento perturbador me despertou. Algo se mexia pelo quarto, deslizando nas sombras. Acordei de sobressalto, o coração acelerado. Concentrei-me e lancei um feitiço de visão noturna. No instante seguinte, enxerguei uma figura escura, uma sombra animada que parecia dançar pelas paredes.
    Imediatamente imaginei ter sido descoberto. A ideia me gelou até a alma.

    Levantei-me silenciosamente, desenhando em minha mente uma runa de luz explosiva. Manipulei minha mana com precisão, e um brilho cegante inundou o quarto. O vulto guinchou alto, acordando Nix, que murmurou algo confuso ao meu lado.

    A sombra saltou da parede, caindo no chão com um baque suave. Enquanto observava, ela começou a se materializar, assumindo a forma de uma ave negra que murmurava com uma voz feminina e infantil:

    — Dói, dói, dói…

    Relaxei imediatamente. Era Shade. Sua evolução finalmente havia terminado.

    Olhei para a criatura, que piscava os olhos brilhantes e se ajustava à nova forma. Nix se aproximou, ainda sonolenta, mas curiosa.

    — Ele finalmente evoluiu? — perguntou, tocando levemente a cabeça de Shade, confortando a criatura.

    — Sim — respondi, ainda admirado. — E parece que tem novos poderes.

    Eu, Selune, que havia chegado, e Nix observávamos Shade com genuína curiosidade. Ela estava sobre a escrivaninha, imóvel, permitindo que a examinássemos à vontade. Shade, agora claramente fêmea, havia mudado bastante. Estava maior, mais inteligente, e não apenas podia falar, como também exibia habilidades intrigantes. Ela conseguia se transformar em uma sombra bidimensional ou tridimensional, dependendo da situação. Mas o que realmente nos impressionou foi sua capacidade de assumir uma forma humanoide, feita de pura escuridão, com cerca de 35 centímetros de altura.

    — Incrível como ela não emite nenhum miasma — comentou Selune, inclinando-se para olhar mais de perto, claramente intrigada.

    — Se a senhora Selune quiser, posso emitir miasma — respondeu Shade com uma voz fina e aguda, carregada de um tom quase infantil.

    Selune franziu o cenho, pensativa.

    — Somente quem possui um núcleo de mana pode emitir mana ou miasma. Criaturas, mesmo as mais avançadas, não têm núcleos de mana.

    Shade inclinou a cabeça, como se aquilo fosse uma afronta.

    — Tecnicamente, sou mais que uma criatura, minha senhora. Transcendi o que era e me tornei outra coisa. Eu tenho um núcleo de mana. Ou melhor, de miasma.

    Para provar seu ponto, Shade fechou os olhos e se concentrou. Um fluxo sutil, mas perceptível de miasma começou a circular por seu pequeno corpo. A energia era densa, quase palpável, e emanava uma sensação de peso e mistério.

    Olhei para Selune, que me devolveu o olhar. A revelação era preocupante. Um núcleo de mana — ou de miasma, no caso — significava que Shade poderia aprender, ou talvez já soubesse, lançar feitiços. A ideia me deu calafrios. Se eu não soubesse que Shade era totalmente leal a mim, estaria seriamente apreensivo.

    Decidi me antecipar.

    — Está proibida de lançar feitiços e de se revelar a qualquer outra pessoa além de nós três aqui.

    Shade assumiu sua forma humanoide e fez uma mesura exagerada, a cabeça baixa e os braços estendidos em um gesto dramático.

    — É claro, meu mestre querido.

    A forma como Shade pronunciou as palavras me causou um arrepio na espinha, mas eu decidi não prolongar aquele momento. Era tarde, e minha mente já estava exausta.

    Interrompi a conversa, dirigindo-me a todos:

    — Vamos voltar a dormir. Amanhã é um dia cheio.

    Olhei para Shade, que permanecia na forma humanoide sobre a escrivaninha, e dei uma nova instrução:

    — Supervisione a busca que meu camundongo está fazendo. Dei a ele uma missão importante…

    Shade sorriu com uma expressão enigmática e respondeu:

    — Já sei de tudo, mestre. Nossa ligação me permite acessar seus pensamentos superficiais, e posso usá-la para encontrar meu irmão.

    A maneira como ela falou me deixou intrigado, mas antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, Shade alçou voo, transformando-se em um borrão negro que desapareceu pela janela, engolida pela noite.

    Selune e Nix estavam em silêncio, ambas aparentemente processando o que haviam acabado de presenciar. Eu mesmo não tinha certeza do que pensar.

    — Boa noite — murmurei, voltando para a cama, tentando ignorar o desconforto crescente.

    Enquanto fechava os olhos, a imagem de Shade, tão cheia de segredos, continuava dançando em minha mente, precisaria ter uma conversa séria com ela em breve.

    O restante da semana transcorreu em uma mistura de treinos intensos, observações cautelosas e preparações meticulosas. Todas as manhãs começavam cedo, com Claire e Gérard mostrando progresso constante. Seus movimentos, antes desajeitados e hesitantes, agora eram mais precisos e carregavam uma determinação que eu não havia visto antes, suas mentes estavam mais ágeis e suas escolhas refletiam essa nova velocidade de raciocínio.

    Claire, em particular, estava se destacando. Seu controle sobre os mísseis mágicos evoluía a cada dia, enquanto Gérard, apesar de ainda lutar com sua covardia, mostrava um talento inegável para estratégias rápidas e golpes de surpresa. Selune permanecia ao nosso lado, corrigindo posturas, oferecendo dicas valiosas e, às vezes, criticando sem piedade — o que, para minha surpresa, parecia motivar ainda mais os dois.

    Rosa apareceu duas vezes durante os treinos, trazendo consigo aquela aura intimidadora que sempre carregava. Suas observações eram curtas, mas incisivas.

    — Não é ruim, mas ainda não é o suficiente — disse ela em sua segunda visita, olhando para Claire e Gérard com uma expressão que misturava desdém e expectativa.

    Dante, por outro lado, havia finalmente decidido. Ele se inscreveu para lutar na arena, junto de nós, contra adversários com experiência real. Eu podia perceber sua ansiedade.

    Mesmo nos momentos de descanso, não havia muito espaço para relaxamento. Nix, com sua energia incessante, sempre forçava um ou outro para estar todo o tempo em movimento.

    Shade e o camundongo — que já precisava de um nome para ele — continuavam sua busca por focos de miasma na cidade. Shade, em sua forma de sombra, me relatava toda noite seus resultados e os locais em que haviam investigado.

    — Nada de anormal, mestre. Ainda assim, continuo a busca — dizia ela com sua voz fina, mas carregada de confiança.

    Entre treinos, estratégias e atualizações de Shade, os dias passaram rapidamente, mas não sem impacto. Gérard e Claire estavam quase irreconhecíveis em comparação àqueles que chegaram ao primeiro treino.

    Agora, era manhã do dia mais esperado: a estreia de todos. As lutas de iniciantes estavam programadas para a tarde, mas eu havia combinado que chegássemos cedo. Era o momento de provar que todo o esforço daquela semana não seria em vão.

    O dia de Solis, dedicado ao descanso e à devoção ao deus do Sol, padroeiro da luz e da glória, parecia apropriado para um começo. Enquanto a carroça nos levava até o Matadouro, pensei se a glória de Solis nos alcançaria nesse dia. Apesar de preparados, precisaríamos de toda ajuda possível, divina ou não.

    Quando chegamos à arena, o movimento já era intenso. Homens e mulheres vestindo a libré vermelha de Rosa controlavam o fluxo de pessoas e carruagens com eficiência. As vozes se misturavam ao som de animais, comerciantes e espectadores animados.

    Me aproximei de uma mulher robusta que parecia coordenar a operação.

    — Estamos aqui para participar das lutas de estreantes.

    Ela nos avaliou com um olhar rápido, assentindo antes de responder:

    — Ah, sim. Estávamos esperando vocês. Me sigam.

    Selune, Nix e Karlom seguiram para as arquibancadas, enquanto eu, Claire, Gérard, Dante, Joaquim e Joana a acompanhávamos por um corredor estreito. A atmosfera começou a mudar conforme nos aproximávamos do coração da arena. O cheiro de terra e suor se intensificava, misturado ao som abafado de passos e vozes vindas do subsolo.

    Ela nos levou a um espaço amplo sob a arena, onde outros participantes já se preparavam. Alguns estavam em silêncio, ajustando armaduras e afiando armas, enquanto outros conversavam nervosamente, tentando aliviar a tensão.

    Troquei acenos com alguns dos gladiadores, tentando medir suas intenções. A tensão no ar era palpável, mas também havia um senso de camaradagem entre aqueles que compartilhavam o mesmo destino.

    Olhei para meus companheiros e tentei soar confiante:

    — Bem, a hora é agora. Vamos nos trocar e nos preparar. Que a sorte esteja conosco.

    Claire respirou fundo, passou o braço nos ombros de Joana e, a puxou para um dos vestiários improvisados. Gérard estalou os dedos, como fazia quando estava ansioso, mas seguiu sem hesitação. Dante e Joaquim pareciam mais calmos do que eu esperava, e isso me deu uma certa tranquilidade.

    Enquanto me preparava, vesti meu uniforme com cuidado, ajustando os detalhes que Selune e eu havíamos revisado na noite anterior. Reforcei mentalmente a estratégia e as lições que repassamos durante toda a semana. Essa estreia não era apenas sobre vencer, mas sobre mostrar quem éramos e que pertencíamos ali.

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