Capítulo 19: A chama ornamentar
Já era fim de tarde. O sol, que antes refletia nos cristais pendurados, estava se pondo atrás das colinas de Hiutan. As lamparinas foram acesas para que os agentes pudessem analisar a cena de crime grotesca que os esperava diante de seus olhos. Os guardas tentavam retirar o garoto de perto do cadáver para não atrapalhar a investigação. Contudo, ele se esperneava, insistindo em permanecer ali por mais alguns minutos. Gustav segurava a cabeça de sua irmã, ainda boiando na fonte do Sr. Gordon. De joelhos, ele acariciava seus cabelos úmidos e tingidos de sangue, espalhando o líquido por suas mãos. O pesar em seu coração o impedia de se afastar. A culpa permeava seus poros, fazendo-o suar excessivamente, considerando a tensão que pairava na festa. Ele chorava em silêncio, sem alarde.
“Eu… eu não sabia… que você estava passando por tudo isso. Eu sei… sei que é difícil aceitar toda essa falsidade, essa manipulação. Por que não aguentou mais um pouco… só mais um pouco”, pensou, apertando a cabeça entre os braços, ignorando o nojo que sentia pela massa negra que saía de sua irmã, além do sangue, e o fato de estar abraçando um cadáver.
Rerdram pôs a mão em seu ombro, firmemente, como se quisesse carregar uma parte do seu pesar.
— Minhas mais profundas condolências pela sua perda. Faremos o possível para descobrir sobre essa doença que a assolava.
— Não levarão minha irmã para um laboratório de pesquisas! — protestou, olhando diretamente nos olhos de Rerdram.
— Tudo bem… só precisaremos de uma pequena amostra da substância escura mesmo.
Ele temeu o movimento de Rerdram ao se agachar e cortar um pedaço do material biológico, mas logo assentiu.
— Retirem logo o cadáver daí, preciso fazer o meu trabalho — apressou Galand.
Os guardas verificaram a segurança do material antes de levar a garota com cuidado. Gustav os acompanhou.
— Consegue retirar todas as manchas de sangue da minha preciosa fonte? — perguntou o Sr. Gordon a Galand, seguindo-o fervorosamente, como se fosse seu anjo da guarda.
— Considerando a situação, deve sobrar um pouco de sangue seco entre as pequenas fissuras da fonte. A diluição do sangue na água pode atrapalhar um pouco o processo de absorção, mas nada que não saia com um pouco de limpeza e substituição da água — respondeu Galand, colocando a mão no gramado ao lado da fonte.
“Esse cara não sai do meu pé, que saco. Vou utilizar os nutrientes do solo de seu jardim. Já gastei muita energia na semana passada por causa da bagunça que a Laurient causou”, pensou Galand.
A pequena raiz que carregava consigo se desenvolveu rapidamente, espalhando vinhas espinhentas que seguiam as manchas de sangue, absorvendo a maior parte do conteúdo. Quando entraram na fonte, a água dificultou a captação, fazendo as vinhas incharem. Fora exatamente como planejado. Não podendo fazer mais nada para ajudar, ele as retraiu, transformando o conteúdo em uma bolota.
— Ó, muito obrigado! — Sr. Gordon quase o abraçou de felicidade, mas hesitou.
“Espero que esqueça o meu rosto antes que as flores comecem a murchar. Vou até embora para evitar mais contato”, pensou Galand, puxando o braço de Rerdram para saírem logo dali.
— Pai, para onde a estão levando? — perguntou Gezebel.
— Para o embalsamamento. Mas, levando em conta a confusão que ela criou na festa, duvido que as pessoas compareçam ao seu velório — disse ele, evitando os olhares do público. “Eu… me sinto falho…”, pensou, enquanto apertava o punho.
Naquela tarde, uma das colunas que sustentavam a família ruiu. Mas uma chama se acendeu… um coração compreendeu. Naquela tarde, houve o primeiro badalar do sino… houve a primeira ruptura. Naquela tarde, eles não sentiram nem um terço do pavor que os aguardava. Naquela tarde… ah, aquela tarde…
Passava da meia-noite, e Gustav continuava acordado. O sono lhe escapava, atormentado pelos pensamentos que o assombravam sobre o que acontecera mais cedo. A ansiedade tomava conta de seu corpo, e os sintomas eram impossíveis de ignorar: Seu coração palpitava, o peito subia e descia em um ritmo descompassado. Tudo havia sido brutal demais… repentino demais. Tentando encontrar um pouco de alívio, decidiu que um banho talvez ajudasse a acalmar sua mente. A água se mantinha inerte na banheira, em contraste com a mente inquieta do rapaz. O nível do líquido era raso, mas seus pensamentos, por pouco, não transbordavam. O local era iluminado apenas por um candelabro distante e pela fraca luz do luar.
“A culpa é sua… Não, é deles! Você foi fraco… inútil… Veja o que nos fizeram passar! Sua irmã foi corajosa em enfrentá-los, e você só ficou olhando. Quanta covardia. Cala a boca!”
Ele se levantou grosseiramente, totalmente despido. Suas costas apresentavam marcas de queimaduras. Em algumas partes, a pele parecia rugosa, espessa e enegrecida; em outras, estava vermelha e em carne viva. O piso do banheiro estava ficando encharcado com suas pegadas, que seguiam até o lustre de fogo. Suas mãos se envolveram firmemente em uma ânfora de óleo, trazendo com cuidado até a cabeça. Moveu o braço para trás, pensando em jogar o óleo nas costas, mas…
“Sempre foi uma pedra no sapato para sua irmã. Assim como aqueles que você detesta. Ela afirmou em um grito o ódio que sente por você, na frente de todos! Calem a boca! Que se dane o que eles irão pensar!”
Despejou o conteúdo no próprio braço, até então isento de queimaduras ou machucados, e ateou fogo com o candelabro. Gemeu em um primeiro momento, mas pareceu se acostumar com a dor. A pele queimava vagarosamente, seu corpo estava se adaptando. Apesar de não encontrar o sofrimento que ansiava, apenas observar a beleza da chama já o satisfez. Era como se ela pertencesse a ele… Não, na verdade, ele a enxergava como uma companheira, que agora estava ao seu lado. Algo naturalmente tão belo o aceitara, era como se uma divindade escutasse as suas preces. Para Gustav, isso não tinha preço.
“Amor…”
Não havia devastação, nem gritos, nem reclamações; apenas o silêncio e a aceitação. Ele estava preso naquela imagem estática, querendo mais daquele acolhimento. Seus sentimentos negativos cessaram. Ele olhava para a chama como se fosse seu escape do mundo real.
“Minha bela chama”, ele acariciou as fagulhas do fogo, como se fossem uma mecha de cabelo sedoso. Como se fosse… o cabelo de sua irmã. “Ela ainda está comigo. Não… não se vá!” O fogo estava diminuindo, mas ele passou mais uma camada de óleo no braço.
— Não me abandone jamais — Gustav falou para a chama, se acolhendo em toda a sua imensidão.
Ele olhou para a cortina da janela ao lado, julgando as fracas cores que havia em sua costura.
— Está faltando beleza. — Ele levantou o braço, tocando de mansinho na cortina. O fogo se espalhou como um rio sereno, alastrando toda a sua vivacidade pelo tecido de linho e veludo. — Perfeito — sussurrou.
Lentamente, saiu do banheiro, incendiando tudo em seu caminho. A madeira que adornava as decorações, o cabide com suas roupas, até mesmo a porta — nada foi poupado. “Coisas tão triviais não merecem minha atenção.” Era como um reflexo da mente de sua irmã. Nem mesmo seu quarto escapou dessa distinta obra de arte que ele executava. Os lençóis da cama transformaram-se em uma aquarela alaranjada em meio ao cenário de vermelhidão, como um pôr do sol no horizonte, apenas para se tornarem mera fuligem instantes depois.
Seu corpo se envolveu em chamas, iluminando todo o corredor da casa. As sombras, produzidas pela luz, chegava até o andar de baixo da mansão, como um presságio do que estava prestes a acontecer. As cinzas que deixava pelo chão… nada além de um reflexo da queda da família Morvayne… da podridão que habitava em seu legado.
Ele entrou no quarto de seu pai, dormindo com a madrasta ao lado. As brasas da chama caiu na colcha da cama…
— Tudo precisa estar devidamente belo… incandesça tudo, minha donzela flamejante. À você, eu lhe dedico esta orquestra, Guinevere. Agora, eles estão… perfeitos!
Eles berravam enquanto seus corpos se preenchiam com a beleza da chama. Agora, marcados na eternidade… em cinzas. Gustav olhou para a janela, observando a grandiosa cidade de Vallendrea. Uma agonia tomou conta de seu corpo; algo estava faltando: Cores!
— Esta cidade está cheia de sombras, e eu serei a vela que afugentará essa escuridão. Eles precisam… A-R-D-E-R! — Proclamou Gustav, apertando os dentes.
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