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    Nix me olhou com seus grandes olhos dourados, a cauda balançando devagar de um lado para o outro. Sempre que fazia isso, sabia que estava tentando me seduzir ou se sentia em desvantagem em relação à Selune.

    — Você vai passar a tarde toda com ela… Eu não tenho treinamento com Karlom, nem posso sair sozinha… O que vou fazer esse tempo todo? — perguntou, com um toque de irritação velada.

    — Por que não pega um dinheiro, manda uma mensagem para Claire e vão juntas ao mercado? Podem comprar algo e comer aquelas comidas de rua que você adora. Dante pode acompanhar vocês, assim nada de mal acontece.

    Seus olhos brilharam com minha sugestão, e um sorriso travesso surgiu em seus lábios antes de sair do quarto, cantarolando alegremente enquanto caminhava em direção ao escritório de Jorjen.

    Levantei-me e inspirei fundo. Era hora de encontrar Selune.

    Ela já me aguardava na sacada que dava para o gramado, absorta no cachimbo, as volutas de fumaça prateada contrastando com o céu azul. Ao me ver, apagou as brasas com um gesto rápido, quase envergonhado.

    — Está pronta? — perguntei, ciente da delicadeza do momento. Selune era sensível ao tema do miasma, e eu sabia o quanto havia sofrido por causa disso.

    Ela balançou a cabeça afirmativamente, sem dizer uma palavra.

    Sentei-me atrás dela, espelhando o que ela havia feito inúmeras vezes comigo enquanto me ensinava a criar meus círculos de mana. Fechei os olhos, conectando-me ao meu oceano de mana. Minha contraparte sombria estava lá, como sempre, aguardando nas profundezas.

    — Vamos ampliar o miasma da nossa Selune? Ah, que momento magnífico… — murmurou, sua voz repleta de excitação mal contida.

    — Ela precisa de controle, não de caos — respondi, firme. — Isso não é sobre abraçar o miasma, mas sobre impedir que nos coloque em perigo. Fique calado e colabore.

    Meu tom pareceu silenciá-lo por um momento, e respirei aliviado antes de continuar.

    — Vou precisar do seu conhecimento. Nada mais — acrescentei, sentindo o peso do compromisso em minhas palavras.

    — Não se preocupe. Nunca faria nada que pudesse prejudicá-la — sussurrou, sua voz tingida de algo que quase parecia genuíno.

    Coloquei minhas mãos nas costas de Selune, pedindo silenciosamente permissão para entrar em seu oceano de mana. Ela assentiu, e então senti sua energia se abrir para mim, revelando um mundo de trevas.

    O oceano dela era um abismo repleto de miasma, viscoso e frio, com uma redoma de cristal flutuando sobre a escuridão. Dentro dela, uma energia azul pulsava, pura como mana cristalizada. No centro, uma figura de elfa adolescente, brilhando como uma estrela, irradiava luz na escuridão sufocante.

    Selune apareceu em frente a mim, sua projeção firme, mas cautelosa.

    — Vamos lá? — perguntei, começando a explicar o processo, mas ela ergueu a mão para me interromper.

    — Eu confio em você, mais do que você imagina.

    Assenti, sentindo o peso da responsabilidade, e mergulhei no miasma.

    Sob a orientação de minha sombra, abri as comportas do meu próprio oceano, permitindo que o miasma fluísse para dentro de mim. A ideia era transformá-lo, refiná-lo, até que deixasse de ser uma força corrosiva para se tornar algo semelhante ao meu próprio miasma, frio e fluido, como o vazio.

    O trabalho era lento, mas não exaustivo. Exigia paciência e, acima de tudo, confiança mútua. Éramos intrusos nos oceanos de mana um do outro, e qualquer hesitação poderia romper o delicado equilíbrio.

    Com o passar do tempo, percebi que o miasma de Selune estava mudando. Tornava-se menos pegajoso, adquirindo a fluidez serena do vazio.

    — Está funcionando — murmurou minha sombra. — Ela está evoluindo.

    Continuei até que seu oceano inteiro refletisse essa nova harmonia. Quando finalmente emergi, Selune olhava ao redor, surpresa.

    — Não sinto mais ele me corroendo… Nem a minha alma, nem a minha sanidade. Se soubesse disso antes…

    Sua voz quebrou algo dentro de mim. A dor implícita em suas palavras era um lembrete cruel de quanto sofrimento ela havia suportado.

    Minha sombra me entregou uma pequena esfera negra.

    — Para terminar, dê isso a ela. Contém o básico do conhecimento sobre miasma. É o suficiente para evitar que nos prejudique.

    Hesitei, mas senti que não havia malícia em suas intenções. Entreguei a esfera a Selune, que a segurou com uma expressão de curiosidade e apreensão.

    — Como faço isso? — ela perguntou.

    — Pressione contra o peito.

    Ela obedeceu, mas, assim que a esfera se fundiu com ela, sua expressão mudou. Uma dor terrível se refletiu em seus olhos antes de ela desmaiar, e eu senti sua vontade me expulsar de seu oceano.

    Fora de sua consciência, ela estava desfalecida em meu colo, seu corpo estava mole e sem reação.
    Tentei me mexer, instintivamente querendo ajudá-la, mas meu próprio corpo parecia se recusar a obedecer. Todo o esforço que empreguei para transformar o miasma de Selune retornou como uma avalanche, me esmagando com uma exaustão avassaladora.
    Minha visão começou a escurecer, as forças me abandonaram, e, sem qualquer controle, caí para trás, com Selune desabada sobre mim. Seu rosto estava tão pálido, tão sereno em sua inconsciência, que uma parte de mim temeu nunca mais vê-la abrir os olhos.

    E então, o vazio me envolveu novamente.

    Era uma escuridão absoluta, sem forma, sem som, sem cheiro. Nenhum sentido fazia conexão com a realidade; eu não sabia se estava caindo ou flutuando. Essa ausência de tudo parecia interminável, até que, lentamente, algo começou a mudar. Primeiro, vieram os sons — um murmúrio indistinto, como uma melodia distante. Depois, a luz se insinuou, uma faixa dourada que crescia até ofuscar minha visão.

    Quando meus olhos finalmente se ajustaram, vi Malena. Ela estava ali, diante de mim, como uma visão saída das memórias mais preciosas do meu passado. Agora, mais envelhecida, mas dona de uma beleza madura e etérea que me tirou o fôlego. Seus olhos me encaravam, cheios de pena e amor, como se eu fosse algo frágil que ela temesse quebrar.

    Meu coração disparou, a emoção me atingiu como uma onda poderosa. Era tão intenso que doía. Queria abraçá-la, tocá-la, sentir o calor de sua presença uma última vez. Tentei me mover em sua direção, mas algo me prendeu. Olhei para cima e vi grossas correntes adornadas com runas antigas, brilhando com uma luz opressiva. Meus braços estavam presos acima de mim, e, embora minha mente percebesse o peso, meu corpo não os sentia.

    Era como se eles estivessem naquela posição por tanto tempo que haviam deixado de existir. Tentei me lembrar do porquê, mas minha mente parecia coberta por uma névoa densa.

    Malena deu um passo à frente e passou as costas de sua mão pelo meu rosto. Eu exultei. Era como se toda a dor, o peso e a culpa tivessem desaparecido por um instante com aquele toque. Seus dedos hábeis recolocaram uma mecha de cabelo atrás de minha orelha, um gesto tão familiar que quase me fez esquecer onde estávamos.

    — Já lhe contei —, disse em um sussurro — que a névoa é a manifestação física do vazio que separa as dimensões? Que existe um Deus ali, oculto na escuridão?

    Eu a observei, absorvendo suas reações. Ela me deu um sorriso doloroso.

    — Sim, meu querido — ela continuou antes que eu pudesse responder. — Já falamos disso mais de uma vez. Suas descobertas foram inestimáveis. Obrigada por compartilhá-las comigo. Elas nos ajudaram muito.

    As memórias começaram a voltar, embora aos poucos e com dificuldade. A confusão ainda me rondava, mas as peças lentamente encontravam seu lugar.

    — Ainda estamos em guerra? — perguntei, minha voz saindo baixa e hesitante.

    Malena suspirou, desviando o olhar por um instante, antes de retornar sua atenção a mim.

    — Seus necros continuam invadindo os territórios humanos, com mais determinação agora. Desde que detectaram sua presença nesta torre, eles redobraram seus esforços. O tempo está contra nós.

    Meu peito se apertou.

    — Não fui eu quem começou essa guerra! — exclamei, quase em desespero. — Você sabe disso, Malena! Sabe, não sabe?

    Ela assentiu lentamente, mas seus olhos brilhavam com uma tristeza insondável.

    — Eu sei, Mahteal. Você sabe. Mas eles não sabem. Os territórios humanos que sua horda está devastando não sabem. Nem mesmo a sua própria horda sabe.

    A raiva subiu como uma chama em meu peito.

    — Tudo isso é para derrotá-lo! — gritei, sentindo minha voz ecoar pelo espaço vazio.

    Malena manteve a calma, como sempre fazia.

    — Você falhou em derrotá-lo, lembra? — retrucou ela, sem nenhum traço de malícia, mas com a crueza necessária. — Nosso objetivo agora é outro.

    Balancei a cabeça, tentando afastar a enxurrada de emoções. O número de mortes, o sofrimento sem fim, tudo parecia tão inútil agora.

    — É tudo um mal-entendido… — murmurei, mais para mim mesmo do que para ela. — Meus seguidores não sabem que vim até você por vontade própria. Me deixe ir até eles, Malena. Vou explicar tudo. Vou corrigir isso.
    Ela me encarou, seus olhos marejados.

    — Tem certeza de que voltaria?

    A pergunta pairou no ar, tão pesada quanto as correntes que me prendiam. Não consegui responder de imediato. Minha mente vacilava. Quando finalmente encontrei minha voz, ela saiu fraca e hesitante.

    — Não sei se voltaria… — admiti, derrotado. — Ele não deixaria.

    O rosto de Malena se contraiu em dor.

    — Antes de libertá-lo, precisamos livrá-lo dele, meu querido. Você sabe disso.

    As palavras dela trouxeram um medo primitivo. Meu corpo inteiro começou a tremer, involuntariamente. As memórias da dor, do tormento, da minha alma sendo dilacerada e reconstruída contra a minha vontade voltaram como uma tempestade. Era como se cada fibra do meu ser fosse um campo de batalha.

    Olhei para meu corpo, reduzido a pele e ossos, e para as inscrições mágicas que brilhavam em torno das correntes. Lembrei que não era apenas eu quem estava aprisionado.

    Então, uma explosão soou ao longe. O som reverberou por todo o espaço, seguido pelo tremor que sacudiu o teto. Pedaços de gesso começaram a cair, trazendo uma urgência inconfundível.

    — Me coloque junto na joia! — gritei, quase em súplica. — Deixe-me mudar o campo de batalha!

    Malena hesitou, como se lutasse contra algo dentro de si. Finalmente, ela assentiu, resignada.

    — Então você decidiu… Que bom!

    Ela se aproximou uma última vez, tocando meus lábios com um beijo tão doce quanto amargo. Quando se afastou, lágrimas caíam de seus olhos, cada gota carregada de dor e esperança.

    Sem dizer mais nada, ela se virou e começou a reunir os ingredientes para o ritual. Eu sabia o que estava por vir. Sabia o preço que seria pago.

    Minha consciência retornava lentamente. Selune estava deitada ao meu lado na cama, sua respiração leve, mas regular. Ao me mover, encostei em seu corpo e percebi que ela estava ardendo em febre. Uma toalha molhada repousava sobre sua testa, escorregando levemente com o movimento.

    Nix observava tudo de um pequeno sofá no canto do quarto, os olhos dourados cheios de preocupação. Assim que percebeu que eu estava acordado, correu até mim, ajoelhando-se ao lado da cama.

    — O que aconteceu?

    Seu tom carregava mais medo do que ela provavelmente gostaria de admitir.

    Encarei seus olhos, ainda confuso e exausto, e contei o que havia acontecido. Minha própria mente estava um turbilhão. Tentei me conectar com minha contraparte sombria, mas foi inútil. Ele parecia estar tão esgotado quanto eu — ou talvez mais.

    Foi então que Karlom entrou, silencioso, mas com uma presença que parecia encher o quarto. Seus olhos cravaram-se em mim, vigilantes e carregados de desconfiança. Sua lealdade era com Selune, e ele não fazia questão de esconder isso.

    — Ela está bem — declarei, forçando firmeza na voz, mesmo que eu mesmo não tivesse certeza disso. — Só precisa de tempo para se adaptar às mudanças.

    Karlom se aproximou da cama, com um olhar avaliador. Retirou a toalha da testa de Selune com cuidado, molhando-a novamente na bacia ao lado antes de colocá-la de volta. Seus movimentos eram precisos, quase reverentes.

    — Espero que sim — disse, sua voz baixa, mas carregada de uma advertência silenciosa.

    Engoli em seco, tentando sentir qualquer coisa vindo dela: mana, miasma, algum sinal de equilíbrio. Ambas as energias fluíam rápido em seu corpo, como rios caudalosos, mas sua respiração permanecia estável. Resolvi confiar no processo, mesmo com a dúvida pesando sobre mim. Até agora, a sorte não havia me abandonado.

    — Que horas são? Que dia é hoje?

    Nix ergueu uma sobrancelha, mas respondeu com a mesma preocupação de antes.

    — Calma, ainda estamos no mesmo dia. Nem chegamos na madrugada.

    A informação trouxe algum alívio. Meu corpo relaxou um pouco, mas meu estômago protestou alto, lembrando-me que a exaustão não era a única coisa a ser tratada.

    Olhei para Karlom.

    — Já jantaram?

    Antes que ele pudesse responder, notei Nix balançando a cabeça negativamente, sempre rápida em antecipar os outros.

    — Peça a um serviçal para trazer comida para cá, por favor — pedi. — Todos precisamos comer. Vou tentar dar um pouco de sopa para Selune. Talvez ajude no fortalecimento dela, para que enfrente melhor as mudanças que estão ocorrendo.

    Karlom hesitou por um momento, mas finalmente assentiu. Suas mãos, que estavam cerradas em punhos ao lado do corpo, relaxaram.

    — Vou providenciar a janta.

    Ele saiu em direção à porta, seus passos firmes e pesados ecoando no corredor.

    Virei-me para Nix, que ainda me observava de perto, agora com uma expressão de alívio misturado à preocupação.

    — Ela vai ficar bem — disse, mais para mim mesmo do que para Nix.

    E, apesar de tudo, acreditei nessas palavras.

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