As horas deslizam pela madrugada até se encontrarem com o Sol. O ciclo não para, as pessoas acima também não. Os carros começam a tomar conta das ruas, eles disparam para os mais diversos cantos da periferia. Limitados, encurralados, seja pelo Muro dos Oprimidos ou pela Fronteira com o Deserto da Criação. Na imensidão desse mundo, os seres humanos renegados por sua própria espécie, se dedicam rancorosamente em seguir em frente.

    Sarah que pegou no sono, mesmo diante de tal situação. Começa a despertar ao ouvir alguns barulhos ao seu redor. As escadas estão abaixadas e no fundo da sua cela bem acima de sua cabeça, a luz está acesa. Bem a sua frente uma cabeça começa a surgir, aquele cabelo… aquele rosto… Não há dúvidas, no fundo sabia ele estava envolvido. Mesmo querendo que não seja verdade, ela sabe que sim.

    Cabelo castanho penteado para trás, baixo nas laterais quase raspado, barba rala e fechada, olhos esverdeados que brilham devido à luz refletida neles. Ombros largos, peitoral definido e marcado pela sua camisa social toda branca e apertada. Sua calça também é social e branca.

    Encostada na parede com seu olhar voltado para ele, o encara da mesma forma que encarou os guardas. A ferida em sua mão já nem é mais sentida.

    Júlio se senta à sua frente e cruza as pernas. Coloca seu cotovelo direito sobre sua coxa direita, encostando seu rosto sobre a mão direita. Apenas um metro os separa, após uma profunda suspirada ele começa.

    — O que eu faço com você? — Ele indaga para si mesmo em voz alta enquanto encara aqueles olhos frios a sua frente. Sua voz é forte e levemente grossa.

    Um silêncio estarrecedor toma conta do ambiente, não que ele já não fosse silencioso de costume. Não… dessa vez é diferente, até o coração dos dois guardas que estão no chão parecem ter parado de bater. Suas mãos estão mais geladas que os fuzis que seguram. Somente aqueles dois que se encaram parecem estar vivos. Um totalmente concentrado em cada detalhe ao seu redor, e o outro calmo e relaxado como se fosse só mais uma situação casual do dia a dia.

    — Bom… não interessa… logo você também estará morta! — Júlio exclama com sua voz tranquila enquanto olha para ela. Após alguns longos segundos de silêncio, ele volta a falar — Não vai dizer nada?

    Uma inspirada de ar enquanto fecha seus olhos, em seguida o ar é expulso de seus pulmões como um assopro forte e prolongado. Seus olhos se abrem novamente.

    — Nada que precise ser dito. — Sarah proclama tal sentença calmamente enquanto observa as pupilas dele.

    — Eu não sei se você está tão calma assim porque já aceitou sua morte, ou sei lá. Sempre soube que você era mais inteligente que sua mãe. Notas altas, desempenho beirando a perfeição em todos os esportes que já praticou. Mesmo você se metendo em várias brigas na escola e na rua, principalmente naquele grupinho de arruaceiros que você frequenta, nunca chegou machucada em casa. Mas agora olha só você…

    Sarah se indaga mentalmente como ele sabe disso tudo.

    — Às vezes eu pensava que você era algo criado em laboratório. Não um ser-humano nascido de um ventre. Queria conhecer seu pai, deve ser um monstro! Sabe… depois do acidente no rio que você escapou não sei como. Decidimos deixar você de lado, parecia um zumbi, nossos clientes não gostam disso. — Então um leve sorriso surge em seu rosto. — Sua mãe descobriu meu segredo, sabia? Bom… uma pequena parte dele.

    Ele direciona seu olhara para a luz por um momento

    — Vocês são só uma família de faixada, para manter meus status na sociedade de um homem bem-sucedido e com uma imagem confiável. Assim ninguém nunca vai desconfiar de mim. Mas como diz o ditado “a curiosidade mata”, e aqui está você. Logo saberá o que aconteceu com sua mãe. Na verdade, você se juntará a ela. — Um novo sorriso surge em seu rosto. — Pelo menos aos restos.

    Sarah em silêncio total, só escuta. O momento não permite outra coisa. Seus olhos continuam fixos em Júlio, que por sua vez começa a se levantar, e se vira para sair da cela. Dá uma última olhada para Sarah por cima do ombro esquerdo.

    Após fazer uma leve expressão de tristeza ele profere suas últimas palavras.

    — Desperdício! — Assim após um último olhar ele some da vista.

    — Um — Sarah sussurra enquanto enrola uma pequena porção da corrente em suas mãos.

    — Dois — Um novo sussurro enquanto se levanta.

    — Três — Agora coloca a sola de seu pé direito na parede a suas costas.

    — Quatro — Agora com um leve gemido. Dá um leve salto com sua perna esquerda também a apoiando. Seu corpo fica todo na horizontal acima do piso da cela. Suas pernas estão flexionadas, e sua posição é sustentada pelas correntes.

    — Cinco — Uma inspirada bem profunda acompanha sua contagem.

    “Seis” Um gemido bem mais forte que o último acompanha sua contagem agora na mente. Seus braços estão completamente esticados, com suas mãos segurando na corrente, suas pernas flexionadas fazem força para se estenderem.

    “Sete” Seu subconsciente continua a contagem, já que seu corpo e sua mente estão focados em um único objetivo. Aproveitar aqueles poucos segundos que a cela fica aberta.

    “Oito” Seu corpo já se encontra quase que pela metade fora da cela. É como se voasse, quando na verdade está caindo, e trazendo junto de si um pequeno pedaço de concreto preso a argola da direita.

    Naquele instante, Júlio e o guarda mais próximo da cela, escutam um barulho de algo sendo arrancado. Virando seu corpo para trás, avista a escada e um guarda no começo de sua escalada. Sua cabeça começa a se levantar acompanhando a escada até o topo. Quando está para avistar metade dela, um punho fechado ofusca sua visão. O que sente em seguida é um imenso baque bem no meio de seu nariz. Na verdade, ele nem chega a sentir a dor, sua consciência se vai quase no mesmo instante do choque.

    Com o soco, Júlio é arremessado a aproximadamente três metros para trás e já cai nocauteado no chão. Arremessado ele colide com um dos guardas que está de costas indo em direção à escada vermelha, derrubando-o.

    Sarah cai no chão rolando, e se levantando de forma ágil, começa a correr na direção oposta, rumo a sua cela e a escada que dá nela. Arrastando o pequeno pedaço de concreto preso à argola do braço direito, em dois segundos de corrida repara que o guarda da escada já está se virando e colocando a mão no fuzil.

    A aproximadamente dois metros de distância do guarda, dá um passo para a esquerda e outro para direita enquanto gira seu corpo no sentido anti-horário trazendo junto a corrente e o pedaço de concreto. Que é redirecionado para a cabeça do guarda a sua frente.

    Ele está com a mira do fuzil cravada em Sarah, mas por um instante ele cessa seus movimentos. Seus olhos se paralisam perante a obra de arte que está a sua frente. O cabelo de Sarah durante o giro se levantou, seu movimento giratório junto das correntes soltas em movimento no ar, criaram o efeito de como se aquela pessoa a sua frente fosse uma flor de pétalas negras girando com sutileza.

    No instante seguinte ao concreto se despedaçar com o impacto na lateral da cabeça do guarda. Ela começa a correr em sua direção saltando por cima de seu corpo. Suas mãos tocam primeiro no fuzil que é agarrado com força. Na queda faz um rolamento, e termina de frente e rente as grades e a escada. No instante seguinte gira para trás encaixando a mira no guarda que está terminando de se levantar lá no fundo.

    Cinco segundos foi o tempo que Júlio levou para descer da escada. Dez segundos era o tempo que levaria para atravessar o salão chegando a escada vermelha, porém, antes de ele conseguir completar metade do percurso, no intervalo do primeiro e o terceiro segundo após sua pisada no salão, foi o tempo que Sarah levou para cair da cela e nocauteá-lo. Mais dois segundos foi o tempo de corrida até o outro guarda. Dois segundos para o giro e o nocaute com concreto. Três segundos para o salto, o rolamento e o giro em 180º graus. Uma fração de segundo para o gatilho ser apertado. Quinze segundos e algumas frações, foi o que ela precisou para respirar novamente. — Só feito! — Sarah proclama o final de sua sentença.

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