Um velho senhor balançava em sua cadeira, mantendo os olhos firmes no crepitar do fogo na lareira improvisada dentro de sua casa. Ele usava extensos colares feitos com sementes de plantas, dentes de animais e alguns minerais; por isso, seu pescoço era ligeiramente curvado para baixo. Vestia longas e leves vestimentas tingidas de verde, que arrastavam no chão.

    — Entre, Fendrik.

    — Ancião, temos um novo visitante. Ele foi encontrado na floresta por uma garota. — Um homem surgiu atrás dele, mantendo a cabeça baixa enquanto se agachava, apoiando o punho no chão em sinal de respeito.

    — Certo. Notou algo de estranho nele? Algo diferente em seu comportamento, seu corpo ou em suas roupas?

    — Bem… há várias diferenças. Até mesmo na cor da pele. Ela é semelhante à do povo do norte, mas seus traços corporais nem tanto. É melhor que o senhor veja com seus próprios olhos, ancião.

    Fez uma pausa antes de acrescentar:

    — Ah, ele tem uma marca estranha no braço. E também uma prótese de madeira. Pelo visto, deve ser um guerreiro.

    — Uma marca? — grunhiu o ancião, cerrando os dentes. — Vigie-o enquanto eu solicito o ritual.

    — Às suas ordens, ancião.

    O sol refletia no espelho cristalino do lago, mas algo fazia a água oscilar. Os peixes fugiam para longe, e as folhas caídas ali balançavam com as ondas.

    Rounn tentava aprender a pescar sozinho, mas, sem a supervisão de Talia, parecia se embolar mais com a linha do anzol do que com a espada durante os treinamentos com a senhora Durval.

    “Meus únicos amigos se foram… mas parece que toda a tristeza foi substituída por um vazio… e por esse ódio reprimido.” Ele apertou o cabo da vara com força.

    Posicionou a linha para trás e a lançou com toda a força. Apenas esqueceu de um detalhe importante…

    — Bom dia, Koran. Ainda não conseguiu capturar nada? — Talia surgiu atrás dele, segurando uma cesta de frutas.

    — Acho que já faz uma hora que estou tentando — respondeu Rounn, desanimado.

    — Ué, mas cadê o balde com as iscas? Nem sequer um anelídeo… ou pelo menos um pedaço de carne?

    Ele puxou o anzol para cima e deu um tapa na testa, frustrado por esquecer algo tão óbvio.

    — Desculpa, é o cansaço — suspirou.

    — Você é sempre assim? Parece tão melancólico.

    Rounn virou a cabeça e abaixou o olhar para o reflexo distorcido de seu rosto na água.

    — Argh, me… me desculpa. Foi uma pergunta idiota. Você foi atacado junto de seus colegas… é óbvio que tem o direito de estar triste.

    — Na verdade… digamos que sou um homem amargurado, marcado pelos temores da guerra. Não é uma vida fácil, você sabe.

    — Sim… a guerra é cruel. Me desculpe pela intromissão. Eu compreendo sua dor. Também temos outros veteranos de guerra. Cada um deles presenciou horrores diferentes…

    “Se compreendesse de verdade…” ele pensou.

    — Enfim, venha comigo. Já vamos almoçar. Hoje teremos peixe assado, ensopado de batatas e nozes. — Virou-se em direção à vila, ajustando o peso da cesta nos braços.

    A mesa de madeira estava cercada por gramíneas altas que balançavam ao vento. Pássaros cantavam no topo das árvores distantes, e o sol quente tingia de dourado os copos de barro dispostos entre travessas simples.

    Talia ajeitou a trança sobre o ombro e notou o olhar fixo de Fendrik em Rounn, que manuseava os talheres com uma elegância inesperada, cortando o peixe em pedaços delicados.

    — Estou dizendo, foi na clareira. Eu vi com estes olhos! Um corvo negro com penas brilhando como vidro. Não era um pássaro comum — contou um dos homens sentado à mesa.

    Ele fez uma pausa, esperando causar algum impacto, mas Ardun apenas arqueou uma sobrancelha cética.

    — Corvos sempre voam perto da floresta — disse Ardun, sua voz grave como pedra. — Isso não é um presságio.

    — Não era só isso — insistiu o homem. — Quando ele pousou, o vento mudou. Senti um frio estranho na espinha, mesmo com o sol queimando minha nuca.

    Ele mergulhou a colher no ensopado e levou-a aos lábios, enquanto os demais ponderavam suas palavras em silêncio.

    Talia apoiou os cotovelos na mesa.

    — A floresta não gosta de visitantes indesejados — murmurou Ardun, sem erguer o olhar. — Talvez o corvo estivesse só avisando.

    — Sim, a floresta realmente não gosta de visitantes indesejados… não é mesmo, Koran? — Sua voz se manteve tão firme quanto seu olhar, fixo na tatuagem do garoto.

    — Hum? — Rounn murmurou, sem ter prestado atenção ao contexto da conversa. — Pode repetir o que disse, por favor?

    Fendrik interpretou o comentário como uma resposta agressiva à provocação e franziu a testa. “Ele está me desafiando?”, pensou, intrigado.

    — E você, Talia? O que acha disso? — perguntou Ardun, buscando alívio no pragmatismo dela.

    — Não sei se o corvo significa algo, mas se o vento mudou, é bom estarmos atentos. Não seria a primeira vez que algo estranho aparece na floresta. — A voz dela era firme, mas havia um toque de inquietação.

    — É… ou alguém. — Fendrik olhou novamente para Rounn.

    O silêncio se espalhou pela mesa, tornando o clima tão pesado quanto uma nuvem tempestuosa. Até os sons da natureza pareciam se dissipar por um instante. Ardun lançou um olhar severo para seu colega, esperando uma resposta por tal comportamento.

    — Fendrik, tenha modos com nosso convidado. — Sussurrou em seu ouvido. — Não faz nem três dias que ele acordou do desmaio.

    Fendrik levantou-se e puxou Ardun pelo braço, chamando-o para um lugar mais reservado.

    — Me desculpem por isso. Eu não deveria estar aqui — disse Rounn, ao perceber o desconforto ao seu redor.

    Ele retirou uma pena debaixo da mesa e se levantou do banco. Talia pousou a mão em suas costas, envergonhada pela atitude de seu colega.

    — Não, Koran, por favor. Ele… ele é assim mesmo com novos convidados.

    — Por favor, sente-se e almoce conosco. — Todos se desculparam.

    Rounn ficou sem jeito, mas retornou para terminar sua refeição.

    Enquanto isso, Fendrik levou Ardun até a cozinha e comentou:

    — Ardun, olha só para ele! Está claro que ele é perigoso. Não responde direito às perguntas e, quando responde, uma história não bate com a outra. Sem contar que sua pele é branca como a do povo do norte. O ancião me alertou para ficar de olho!

    — O ancião? Ultimamente você tem entrado em contato com ele muitas vezes, irmão…

    — Isso… isso não entra em questão…

    — Tá, mas pelo menos vamos esperar o julgamento antes de sair criticando o novato. Aliás, ele ainda precisa passar pelo ritual. Não sejamos tão convencidos. Koran parece uma boa pessoa. Eu confio nele.

    Fendrik balançou a cabeça, desapontado com a descrença do irmão. Sem dizer mais nada, saiu da cozinha e seguiu em direção à mesa de almoço no jardim.

    — Ouçam todos! O ritual foi requisitado para hoje à tarde, ou seja, daqui a uma hora. O ancião decidiu com caráter de urgência.

    — Por causa do Koran? Ah, em nome de Foullan… — Talia esfregou a mão no rosto, atônita com o absurdo que acabara de ouvir.

    — Talia, o que isso significa? — perguntou Rounn, com preocupação na voz.

    — Não se preocupe, não irá lhe causar nenhuma dor… ou pelo menos nada demais.

    As pessoas ao redor da mesa ficaram comovidas, mas não a ponto de se desesperarem. A discriminação de Fendrik contra Koran gerava desconforto, mas a maioria se lembrava de como o garoto havia sido gentil e prestativo desde que chegara à vila. Ainda assim, o ritual era uma tradição inquestionável, e ele teria que passar por isso.

    — Vamos, Koran… vamos acabar logo com essa besteira — o tom de voz de Talia estava carregado de presunção.

    — Talia, não despreze nem desrespeite nossos métodos e rituais religiosos — Fendrik repreendeu, gesticulando agressivamente.

    Ela suspirou, impaciente.

    — Ah, tenha paciência. Desde que cheguei aqui, nunca vi esse ritual dar errado. Deve ser muito raro encontrar um profano entre nós.

    — É o que veremos… não é, Koran? — retrucou Fendrik. Seu olhar pesado pronunciava o nome de Koran como uma sentença.

    O céu tingia-se de laranja e púrpura quando os aldeões se reuniram no círculo sagrado. O lugar ficava em uma clareira ampla cercada por árvores altas cujas copas pareciam formar um teto natural. O aroma forte de ervas queimadas pairava no ar, misturado ao leve crepitar das tochas fincadas ao redor. Cada tocha tinha tiras de pano vermelho presas ao topo, que dançavam ao ritmo do vento.

    No centro, uma grande pedra lisa servia de altar. Sobre ela, estavam dispostos objetos cerimoniais: uma tigela de barro com água cristalina, um ramo seco de alguma planta sagrada e uma faca ritualística com o cabo talhado em madeira.

    Os tambores começaram a ressoar com vibrações graves; o som parecia vir das profundezas da terra. Os homens e mulheres da vila batiam os pés em sincronia com o ritmo; as pulseiras de ossos e madeira em seus braços tilintavam a cada movimento.

    Rounn estava no centro. Seu rosto sério demonstrava que ele não se importava nem um pouco com aquilo. Sua prótese de madeira contrastava com a delicadeza do ritual. Talia estava ao lado dele, segurando uma pequena fita trançada que simbolizava proteção.

    O ancião se aproximou lentamente, seu manto escuro arrastava sobre a terra. Ele ergueu a tigela de barro com água, deixando que a luz das tochas refletisse em sua superfície.

    — Que esta água revele o quão pura é a alma deste jovem e o guie para os caminhos corretos, se for o seu caso… — entoou o ancião, sua voz rouca ecoando pela clareira.

    Derramou parte da água sobre a cabeça de Koran, que fechou os olhos ao sentir o líquido gelado escorrer por seu rosto. A partir de então, os aldeões observaram o ritual em completo silêncio.

    Um grupo de mulheres com máscaras de palha se aproximou, movendo-se em uma dança lenta ao redor de Rounn. Cada passo era acompanhado pelo tilintar das pedras presas em suas cinturas. Elas espalhavam folhas secas pelo chão, criando um padrão simbólico que lembrava uma espiral. Elas entregaram o cadáver de um roedor da floresta para o ancião e ele pôs cautelosamente na mesa de pedra.

    Ardun ergueu a faca cerimonial. O cabo tinha um fragmento de uma gema esverdeada, que afugentava as sombras projetadas pelas árvores ao redor da clareira.

    — Estenda seu braço, Koran — ordenou.

    Ele obedeceu com indiferença, achando uma bobagem toda aquela cerimônia.

    O velho fez um corte na mão de Rounn, e seus olhos esbranquiçaram no mesmo instante. Seu corpo caiu com um baque na grama alta e úmida, sendo acolhido pelos insetos presentes ali.

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