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    Quando cheguei à mansão, fui direto para minha residência. Ao sair da sala de banhos, encontrei Philip pousado sobre minha escrivaninha. Sob suas garras, uma carta de minha mãe. Pela nossa conexão, percebi que ele trazia mais do que correspondência — ele tinha informações sobre o homem encontrado morto, o suposto mestre do rato espião.

    Decidi lidar com Philip primeiro. Concentrei um fiapo de miasma em sua direção, e ele estremeceu, absorvendo a energia com prazer. Sua pequena mente se abriu para mim, e as informações fluíram como uma torrente: imagens, sons, cheiros.

    De repente, eu me tornara Philip. Minha visão vinha de um canto escuro da sala do legista, por detrás de um armário repleto de potes translúcidos contendo partes de corpos. O cheiro químico misturava-se à podridão sutil que impregnava o ar. Uma voz grossa quebrou o silêncio.

    — Então? Descobriu como ele morreu?

    Philip se moveu levemente, ampliando meu campo de visão. Três homens estavam ali. Um deles era obeso, de cabelos ralos e bigode farto, vestindo a casaca do corpo policial da cidade. O segundo, um homem careca e de mãos delicadas, usava um avental branco manchado. O terceiro, também uniformizado como policial, ostentava uma patente inferior à do primeiro. Tinha um rosto duro, um quepe bem ajustado e segurava uma prancheta onde anotava algo.

    O gordo — um investigador, provavelmente — encarava o legista, que respondeu com um tom meticuloso:

    — Há uma lesão estranha no cérebro. Idêntica às das últimas vítimas que encontramos nas mesmas circunstâncias. Veja.

    O investigador resmungou algo, tirou um lenço do bolso e cobriu o nariz antes de se debruçar sobre a mesa de dissecação. O legista removeu o tampo já serrado do crânio da vítima, expondo seu conteúdo.

    Pelos sentidos de Philip, senti o cheiro pútrido se espalhar. Era idêntico ao da moça do cortiço.

    O cérebro estava… cavado, como se algo tivesse feito um ninho ali dentro antes de partir. Entre os sulcos enegrecidos da massa cerebral, um líquido negro e viscoso se misturava aos fluidos naturais.

    Semente de carniçal.

    Eles não sabiam o que era. Mas eu sabia.

    E alguém estava espalhando isso pela cidade, descartando serviçais conforme não eram mais úteis.

    O gordo franziu o cenho, observando o cérebro deteriorado com visível repulsa.

    — Isso não parece coisa natural… Alguma droga? Um veneno?

    O legista balançou a cabeça.

    — Nenhum sinal de toxinas conhecidas. A estrutura do tecido está… comprometida. Como se algo tivesse crescido aqui dentro e depois desaparecido.

    O policial de patente inferior, que até então fazia suas anotações em silêncio, ergueu o olhar.

    — E os outros casos? Alguma ligação entre eles?

    O legista hesitou.

    — Não oficialmente. Mas todos tinham esse mesmo padrão de lesão cerebral. Todos moradores da cidade baixa, sem família, sem conexões importantes. E todos apresentavam sinais de… infestação.

    O gordo endireitou-se, limpando a testa suada com o lenço.

    — Infestação? De quê?

    O legista suspirou, colocando o tampo do crânio de volta no lugar.

    — Ainda não sei. Mas tem algo estranho nisso.

    Philip se moveu levemente, e minha visão mudou de ângulo. Eu sentia sua inquietação—não pelo cadáver, mas pela presença dos homens ali. Algo no tom deles sugeria que sabiam mais do que estavam dispostos a admitir.

    O policial de patente inferior folheou suas anotações, franzindo a testa.

    — O nome dele era Tarsius Dreno. Um Zé-ninguém até algumas semanas atrás. De repente, apareceu com dinheiro inexplicável e comprou uma residência na parte chique da cidade, perto do rio. Quem o matou fez isso para apagar seus rastros e talvez…

    Ele hesitou, reconsiderando as palavras.

    O investigador gordo bufou.

    — Talvez tenha sido o mesmo que matou os outros.

    Um silêncio pesado pairou sobre a sala.

    O legista fechou os olhos por um instante, como se precisasse reunir coragem antes de falar.

    — Se querem minha opinião… Isso não é um assassinato comum. É outra coisa. Algo que está crescendo nas sombras desta cidade. E tem mais uma coisa: em dois corpos — neste e em outro — detectei traços de miasma.

    O policial mais jovem se empertigou, anotando com dedos ágeis. O investigador gordo empalideceu, recuando um passo como se o cadáver fosse contagioso.

    — Refaça os testes — ordenou, a voz carregada de tensão. — Se isso for verdade, o caso sairá da nossa jurisdição. O tribunal vai querer enviar seus pretores para cá.

    Philip tremeu, e a conexão entre nós oscilou por um instante. A informação estava completa.

    Eu me afastei da mente dele, o estômago revirando com a revelação. Se os pretores do tribunal entrassem no caso, significava apenas uma coisa: caça às bruxas.

    Pisquei, voltando à minha própria consciência.

    A semente de carniçal.

    Então era isso. Alguém estava espalhando essas malditas sementes pela cidade, transformando pessoas em servos obedientes e descartando-as sem o menor escrúpulo. E agora, com essa investigação, meu nome corria o risco de ser arrastado para o centro disso tudo. Afinal, eu mesmo tinha Jorjen, Marcus e Dante como portadores de uma semente.

    Respirei fundo. O pânico não me ajudaria. Primeiro, precisava ver o que minha mãe queria comigo. Depois, teria que descobrir quem estava por trás disso e, principalmente, o que essas pessoas estavam planejando.

    Antes de pegar a carta, levantei-me e fui buscar um copo d’água. As imagens da visão de Philip ainda fervilhavam em minha mente. Os pretores tinham videntes, inquisidores e outros meios para levar uma investigação adiante. Se eu fosse implicado nisso, não haveria escapatória. O simples fato de portar miasma já era sentença de morte. E se eu caísse, Selune, Nix e todos ao meu redor cairiam comigo. Precisava encontrar um jeito de evitar o radar deles.

    De volta à escrivaninha, ordenei a Philip que dispersasse nosso pequeno exército de espiões. Até segunda ordem, queria todos longe—de preferência, escondidos na névoa. Ele saiu para cumprir minha vontade.

    Peguei a carta, decodifiquei-a e comecei a ler.

    “Querido e estimado filho,
    Espero que esta carta o encontre bem. Tenho algo a lhe relatar que se relaciona com nossas últimas conversas.
    Uma de suas primas, Maya Nymeris, foi vítima de um atentado e não sobreviveu. A família está mantendo isso em sigilo, por isso peço que trate essa informação com extrema discrição. Como você sabe, ela era a líder de um dos times do torneio. Althéa está conduzindo uma investigação, e há fortes indícios de que esse caso esteja ligado a outros incidentes recentes. Tome cuidado e permaneça vigilante. Embora Lior não pertença a uma Grande Casa, sua posição de destaque pode atrair olhares indesejados.
    Sobre a arma com nossa tecnologia que você encontrou no Matadouro, ocasionalmente vendemos protótipos que consideramos falhos. Não se preocupe com isso. Apenas uma questão me ocorre: por que você tem frequentado esse tipo de lugar? Que tipo de intriga está participando e se envolvendo? Fico preocupada, o subterrâneo do império também tem seus poderes e segredos.
    Reforço que se cuide.
    Beijos afetuosos de sua mãe.”

    Apertei os lábios, sentindo o peso de cada palavra.

    Maya Nymeris, morta.

    Eu não a conhecia bem, mas sua morte significava que a disputa pelo torneio ia muito além do que aparentava. Havia interesses ocultos, forças e organizações poderosas agindo nos bastidores. E, o pior, minha mãe e Althéa suspeitavam de um padrão. Se todos esses eventos estavam interligados, então aquilo que se movia nas sombras da cidade poderia estar muito mais próximo do que eu imaginava.

    Peguei papel e tinta e escrevi uma resposta para minha mãe. Mencionei meus planos de transformar o Matadouro em um campo de treinamento, mas, para não preocupá-la, omiti alguns detalhes — inclusive sobre minha luta com Germano. Não havia muito mais a ser dito. Depois de revisar rapidamente a carta, chamei um dos serviçais e o instruí a entregá-la no restaurante onde Althéa mantinha seus homens. 

    Resolvida essa parte, soltei um suspiro e me deixei cair sobre a cama. Minha mente ainda girava com todas as peças desse quebra-cabeça que se desdobrava diante de mim, mas não havia muito mais que eu pudesse fazer naquela noite.

    Fechei os olhos, refletindo se havia deixado alguma ponta solta.

    Nada me veio à mente.

    Achando que tudo estava resolvido, adormeci.

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