O Caçador Exilado, parte 2
Sofrendo pelo aperto de cordas e a umbra da escuridão, era possível ouvir diversas vozes entre o barulho de uma charrete levada por cavalos.
— Inferno! Eu coloquei todas as minhas fichas que esse miserável seria o melhor de nossos guerreiros! Maldito seja esses inferiores.
— Um guerreiro? Hoho, poupe suas palavras e moedas. Um trivial não deveria permanecer nem mais um segundo na nossa aldeia.
— Ei, cuidado! Tenham mais cautela ao falar de um filho do mestre!
— Que cautela o quê! O nosso grandioso líder não perdoa! Ele nos agradece por também rejeitar alguém que não cabe nos nossos padrões e só nos traria desonra e desgraça.
— Viva ao mestre!
— VIVA-AO-MESTRE!!! VIVA-AO-MESTRE!!! VIVA-AO-MESTRE…!!!
Pálpebras tremiam, oscilando entre o esforço de se abrir e a vontade de permanecer fechadas. A luz atravessava a névoa da visão turva, revelando vultos deformados pelo desprezo. Mas enxergar não era necessário — o trauma já havia esculpido aqueles rostos na memória, uma cicatriz invisível que fez os olhos se fecharem novamente…
Repentinamente, o som de cavalos fora substituído pelo som de remadas e vozes abafadas, uma cada vez mais madura que a outra.
— Precisávamos mesmo desacordar e amarrar ele? Eu queria vê-lo crescer mais.
— Falácias, Tenjou. Você é o caçula entre nós, mas deve entender que ele já tinha passado do tempo.
— Ningen tem razão, não peguem remorso por um reles trivial.
— Ha ha haa! Francamente, Shura! Acha mesmo que teríamos pena de quem nem deveria ter o nosso sangue?! Este garoto não mereceu nem um nome, aliás, deveria receber um destino pior!
— Repreenda-se, Chikushou. Estamos próximos de um lugar sagrado, tente não ser barulhento como uma besta — advertiu uma voz firme e sábia, mas não a mais autoritária.
Dentre tons jovens e um maduro, um conhecido soar experiente veio. — Se preparem para encostar a jangada.
O som da água agitou-se, a intensidade cresceu até que tudo ao redor sacudiu e, de súbito, um impacto cessou o movimento.
Mas logo, passos ressoavam sobre a madeira, e posteriormente, mudaram para um solo arenoso.
— Desamarrem-o e deixem-o diante de mim.
Ser erguido e transportado por várias pessoas fazia um estômago revirar. O aperto das cordas afrouxou, e por fim, a escuridão cedeu quando uma venda foi retirada, trazendo de volta a visão e percepção da ventania.
— Garoto… — De costas para a extensa barreira natural de um bambuzal e seu verde infinito sendo entortado por uma forte brisa, Matabei Gotou, o líder do clã Asagiri, com sua armadura negra, chapéu de palha, e máscara oni, cruzou os braços para falar com o seu filho, ou melhor, a sua mácula. — Você, exclusivamente você, era para ser o meu mais honrado herdeiro, o sexto representante dos seis reinos. Eu planejava ouro, mulheres, glórias, tudo o que é de mais sagrado para o último filho do futuro herói de Ousaka. Porém, a graça dos deuses não quis procurar o vosso elemento, e infelizmente, você veio a nascer como um trivial, um inferior, um peso para os agraciados com um poder divino.
Embora aquela sentença deveria ser chocante para uma criança prestes a ser abandonada, o garoto não expressava tristeza, muito menos ódio; na verdade, ele já sabia de tudo antes mesmo de acontecer.
— Entenda — continuava Matabei — por mais que seja trivial, você continua como um filho que divide o meu sangue. Eu o alimentei, o observei crescer, e já o treinei com as mais variadas técnicas de um samurai… Mas eu não podemos mantê-lo no clã, e muito menos, continuar aperfeiçoando o seu crescimento. Você não seria forte o bastante.
— Pai — chamou Tenjou, a voz mais jovem entre o vento uivante — quer mesmo fazer isso?
Matabei olhou para um de seus filhos atrás do prestes a ser deserdado. — Hm, querer olhar no rosto de seu irmão uma última vez?
— Desculpe, pai. Mas ele não é nosso irmão.
— Reserve-se, Chikushou. Apenas responda a pergunta junto de seus outros irmãos.
Nenhum dos irmãos proferiu palavras a mais, porém, suas escolhas foram as mesmas: posicionar-se ao lado do pai, quatro à esquerda, um à direita.
A família trocou olhares rápidos, uma comunicação silenciosa antes de direcionarem a atenção para o garotinho em destaque, que, enfim, percebeu quatro kimonos escuros e máscaras demoníacas da testa ao queixo servindo jovens de quinze a vinte anos de idade.
A dificuldade em discernir detalhes vinha da armadura e capacete negro do único que simbolizava ser o braço direito de Matabei Gotou.
— Gaki.
— Sim, pai.
— A espada.
Uma simples katana de aço desgastado foi sacada da bainha do irmão mais velho e entregue ao pai, que com a arma em mãos, deu um passo à frente.
— Garoto, esta espada será entregue a você, e será o vínculo da sua nova missão no mundo. Com ela, você deve achar o significado do que é a paz.
— M-mas pai, um trivial não possui direitos de definir pala-
— Silêncio!
Ningen foi encarado de canto pelo pai, só assim ele pôde ver o brilho daqueles olhos azuis como o rio que atravessaram.
Mas Matabei queria terminar a despedida. — Sei que você poderá ter dificuldades neste bambuzal, mas eu não poderia largar um filho em um lugar sem propósitos para viver. Se fosse assim, seria melhor matá-lo — ele colocou a espada nas mãos do garoto sem reações — pegue esta katana, e procure o seu lugar neste mundo. Você ainda tem mais uma chance de viver. Lembre-se do que aprendeu na aldeia…
A jangada foi embarcada e solta à corrente do Rio Katsu. Assim, o garoto terminou abandonado pelos próprios familiares.
Ser uma criança deixada em um bambuzal sem fim seria motivo de inquietação até para a mente mais desatenta. No entanto, aquele garoto não demonstrou um traço de temor ou raiva durante toda a conversa que teve, e entregue à solidão, adentrou o emaranhado de hastes esverdeadas, guiado apenas pelo desejo de compreender o que ali se ocultava e descobrir o significado das coisas, em especial, a paz…
— Pai…
— Ningen! Pare de chamá-lo e continue me ajudando a remar!
— Não, Shura! Ele precisa me responder!
— Silêncio. Nosso pai está descansando a mente, vocês estão atrapalhando-o.
— Só por ser o mais velho você sempre tem que ficar do lado dele e não nos ajudar a remar?
— Chega, Ningen, deixe-o dormir. Pelo menos espere até chegarmos na aldeia.
— Quem você pensa que é para me ordenar, Tenjou? O caçula não deveria nem se expressar. Você nem consegue remar direito!
— Ha ha haaa! Olha quem fala! Estou praticamente carregando essa jangada nas costas! Algo que deveria ser o mínimo, já que serei eu, Chikushou Gotou, o próximo filho condecorado samurai!
— Calados… — A ordem do pai quietou os herdeiros. — Ningen, diga de uma vez o que te incomoda.
— Por que você deu uma katana? Por que você deu um propósito para aquele garoto impuro?
A resposta não veio do pai, e sim, do irmão mais velho. — Não se preocupe com isso, Ningen. É uma criança perdida em uma floresta áurica de bambus. A essa altura, ele já deve ter sido morto por uma fera selvagem ou inclusive insetos.
— Errado, Gaki.
— … Por que, pai?
— Aquela criança… Sim, a mesma que acabamos de deserdar… Saibam que ela possuía um potencial infinitamente superior ao de todos vocês. Muito mais do que conseguem sequer sonhar.
A fase desnorteou os jovens, essencialmente, Ningen e Chikushou.
— P-pai… Por que o senhor diz isso?
— É… o que você viu que nós não tivemos nem a chance de ver?
— Não me interpretem mal. É natural que as pessoas possuam capacidades distintas. Contudo, deixem-me ser claro: se aquela criança fosse áurica, seria a única representação viva da glória que nossa família conquistará no Castelo de Ousaka, esse mesmo local onde vocês, assim como eu, morreremos e deixaremos para trás o nosso legado.
— Como chegou à esta conclusão, pai? — questionou Gaki.
— Estamos falando de um garoto que desde o nascimento foi afetado por uma série de problemas empilhados um sobre o outro, obstáculos que sem dúvida apenas dificultaram e continuarão dificultando sua vida. Mas é inegável… no fundo, ele possui uma capacidade de aprendizado impressionante. Em toda a minha vida, nunca vi alguém se familiarizar com uma katana em tão pouco tempo. Ele não vai ser derrotado tão cedo… Espero um dia encontrá-lo novamente.
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