Índice de Capítulo

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    — Gabriel, você tá aí?

    A voz de Ana perguntou baixinho, mas pareceu um trovão no súbito silêncio da forja ao cessar suas marteladas, arrancando Gabriel do torpor de seus pensamentos.

    Por um instante, ele permaneceu imóvel, os olhos ainda fechados, como se pudesse fingir que não a ouvira. Mas o som estava ali, vibrando no ar, exigindo atenção.

    Suspirou.

    — De novo? Eu mal voltei a descansar… — resmungou, sentindo o peso da existência agarrado aos ossos enquanto abria os olhos lentamente.

    A luz da forja dançava ao redor deles, oscilando como espectros nas paredes de pedra. O cheiro de metal queimado e óleo permeava o ar, familiar e imutável.

    E então, Ana.

    Estava em pé diante dele, e seus olhos brilhavam com uma excitação juvenil. O tipo de brilho que contrastava violentamente com o sorriso que adornava a parte de baixo de seu rosto. Este, se mostrava selvagem.

    — Eu finalmente consegui! É uma verdadeira obra de arte!

    Gabriel piscou, ainda puxando a consciência de volta ao presente.

    Olhou ao redor.

    As montanhas de equipamentos tinham se multiplicado. Não apenas dobrado de tamanho, mas triplicado, talvez mais. Blocos de aço, lâminas de todas as formas e tamanhos e itens que ele nem sabia para que serviam.

    Estreitou os olhos.

    “Apaguei por mais tempo do que pensava…”

    Apesar de indisposto, olhou para onde Ana apontou, o pequeno balcão à sua frente.

    E então, ele viu.

    Dois objetos se destacavam sobre a madeira quase carbonizada.

    O primeiro, uma braçadeira de metal magnífica, que se estendia do ombro até os dedos. Mais que uma simples peça de armadura, aquilo era um feito de arte e funcionalidade entrelaçados.

    Múltiplas placas metálicas se sobrepunham em um jogo perfeito de movimento e proteção. Flexível como uma segunda pele, resistente como a própria terra. Cada detalhe era meticulosamente trabalhado — padrões intrincados esculpidos no metal, símbolos antigos misturados a um design que parecia quase moderno demais para este mundo.

    À luz das chamas, os entalhes pareciam ganhar vida, como se contassem lendas para quem quer que quisesse ouvir. Um testemunho das eras que Ana havia transcendido.

    Ao lado da armadura, repousava uma única faca militar.

    Discreta. Versátil. 

    Gabriel inclinou a cabeça levemente, arqueando as pálpebras com certa surpresa.

    Tentou captar algum detalhe que denunciasse uma grandiosidade oculta, mas não havia arrogância em seu design. Nenhum traço de ostentação ou vaidade. 

    Era um objeto que se escondia na própria modéstia.

    Algo tão ironicamente simples, que gritava.

    A faca exigia ser reconhecida. Exigia aprovação.

    E assim, o anjo concedeu. Mas algo dentro dele sussurrou que não poderia compreendê-la apenas com os olhos. Precisava senti-la.

    A surpresa veio no primeiro toque.

    O cabo encaixava-se em sua palma de maneira quase orgânica. Não como se tivesse sido moldado para ele, mas para qualquer um que ousasse empunhá-la.

    A superfície era lisa, sem adornos desnecessários, e tão fria que trouxe à mente a textura do vazio condensado em metal.

    Por um momento, duvidou. Aquilo foi realmente forjado neste mundo?

    Custava até mesmo acreditar que havia sido feito pelas mãos da mulher humana à sua frente.

    A lâmina, por sua vez, era um paradoxo.

    Ainda mais simples que o cabo à primeira vista, mas carregando algo mais profundo. O aço era de um negrume absoluto, como se uma noite sem luar fosse comprimida em sua existência. 

    No entanto, brilhava com nuances sutis, um espectro de cores impossíveis que se revelavam conforme ele girava a faca sob a luz. Um reflexo discreto, mas impossível de ignorar, como um segredo sussurrado apenas para aqueles atentos o suficiente para ouvi-lo.

    Mais intrigante era seu fino fio. Elegante, homogêneo, mortal… uma anomalia.

    Gabriel tentou falar, mas engasgou. Uma tosse seca, violenta, chegou a sua garganta. Foi então que percebeu. Não havia respirado desde que tocara a empunhadura.

    Inspirou fundo, recuperando-se do impacto com um olhar que oscilava entre o fascínio e a inquietação.

    — Eu pensei que houvesse um limite para um mundo tão humilde quanto a Terra… — murmurou, mais para si do que para Ana. — Mas a tenacidade humana traz milagres.

    Milagre. Ou maldição.

    Algo pulsava na faca.

    Não fisicamente — não era um coração batendo dentro do metal. Magia? Também não. Era outra coisa. Um conceito estranho e incompleto, uma presença invisível aninhada no aço.

    A essência de uma arma havia se mostrado.

    O fio não era apenas afiado. Era o fio.

    O peso não era apenas equilibrado. Era o equilíbrio.

    Aquela faca não poderia ser nada além do que era.

    Não era apenas uma faca. Ela era a definição de faca por si só.

    Gabriel sentiu o espanto se enroscar no fascínio.

    Ele queria senti-la de verdade.

    Imaginou um pequeno traço vermelho cortando sua pele… e, antes mesmo que o pensamento terminasse, a lâmina já deslizava por seu polegar.

    O gesto foi automático. Natural.

    Nem mesmo percebeu que havia se movido até ver o sangue brotar.

    Seus olhos se alargaram momentaneamente. Não de dor, mas de surpresa.

    O fio rompeu sua carne com uma facilidade quase insultante, um gesto tão pequeno, mas que carregava um peso desproporcional. Como se aquela lâmina não apenas cortasse, mas recusasse qualquer resistência à sua existência.

    Ia além de sua compreensão, e ele gostou disso.

    — Este é meu último presente para você, criadora obstinada. 

    O sussurro veio após uma reflexão rápida, mas intensa.

    Havia algo na tonalidade de sua voz — uma mistura de ironia e reverência. Como se estivesse debochando do próprio ato e, ao mesmo tempo, curvando-se a ele.

    E então, aconteceu.

    O sangue deveria escorrer. Pingar.

    Mas não. Ele foi absorvido, forçado para o interior da nobre lâmina. 

    Um brilho rubro pulsou por um instante, um vislumbre fugaz de algo voraz. E tão rápido quando surgiu, desapareceu, deixando a lâmina negra como antes.

    Gabriel cambaleou, não caiu, mas quase.

    Seu joelho dobrou por um instante antes que se apoiasse na bigorna. Seus olhos perderam algo, não a cor, não a luz — mas algo mais sutil. Sua expressão se tornou ainda mais opaca.

    Um fino fio de sangue escorreu pelo canto de sua boca, e ele o limpou calmamente com a manga da roupa.

    E então, sorriu.

    Gentilmente. Perigosamente.

    — Peço desculpas por não ter pedido sua permissão.

    Estendeu a mão em direção a Ana. Ela o assistia de braços cruzados. Perplexa? Sim.

    Mas não da maneira que Gabriel esperava.

    Por um momento, pareceu que iria reclamar, talvez xingar, talvez tentar entender. Mas então, a tensão em sua testa se desfez.

    Algo mudou nos olhos dela.

    Algo que Gabriel não gostou.

    — Tá tranquilo. De qualquer forma, não é como se eu tivesse qualquer uso pra essa coisa — resmungou, pegando a faca e a jogando de forma descuidada de volta no balcão. 

    Não havia o menor traço do orgulho pela criação que era visto a pouco. No entanto, saltitava de um pé para o outro.

    Parecia genuinamente feliz, mas também… estranhamente calma.

    Estava em paz.

    — Não sei o que aconteceu com você, mas antes de qualquer coisa, preciso te contar algo. Estou satisfeita.

    Gabriel piscou.

    Algo frio passou por ele, dificultando ainda mais que mantivesse a compostura.

    — Satisfeita?

    A palavra pareceu um erro ao sair de sua boca. 

    — Sim. — A resposta veio leve, sem peso, como se não importasse. — Acredito que já vivi o suficiente.

    O estômago do anjo revirava. Não pelo que ela disse, mas pelo jeito que ela disse. Sereno. Como alguém que finalmente havia chegado a um fim de jornada.

    Ana o encarava, mas não era ele que ela estava vendo. Era algo além, muito mais distante do que as paredes daquela sala deveriam permitir.

    — Pensei que sempre encontraria algo novo para explorar, algo mais para aprender… mas já não sobrou nada.

    Os olhos dela estavam brilhando. Não de excitação, mas de lágrimas que nunca caíam. As palavras saiam de sua boca sem qualquer angústia, desespero ou até mesmo desejo.

    O rosto de Gabriel perdeu o sorriso, e se distorceu de forma que a garota nunca havia visto.

    Ana sabia o que viria a seguir. Ele ficaria furioso, a chamaria novamente de ingrata. Mas estava preparada. Se aproximou do anjo, e pela primeira vez, segurou suas pequenas mãos.

     — Gabriel, eu desejo morrer.

    Sua declaração era um sussurro, mas carregava o peso de um milênio de existência.

    Tudo parou, entrando em um silêncio que parecia prender a respiração para ver a conclusão de um ato teatral.

    Mas antes que qualquer nova sentença pudesse ser dita, o mundo se partiu. 

    Não literalmente, mas qualquer um que olhasse para o céu, afirmaria que sim.

    As nuvens se iluminaram, e em um som suave, porém monumental, trombetas começaram a tocar.
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