Capítulo 79 - Apenas uma constatação
— Esse lugar é um cadáver. — disse Sam. — Só faltam os vermes.
Nicholas empurrou uma porta entreaberta com o ombro, evitando tocar na madeira úmida.
— Os vermes já tão aqui. Só são do tipo que prefere sombra à luz.
Dentro da sala, prateleiras descaídas sustentavam monitores antigos e pilhas desorganizadas de fitas VHS. O silêncio era quebrado apenas por um gotejar lento e persistente em algum canto invisível. Sam parou na entrada, observando Nicholas inspecionar o ambiente.
— Então… Eu vi, sabia.
O agente não se virou, continuando a examinar uma estante com fitas etiquetadas.
— Viu o quê?
— Vocês dois quase se beijando. Foi por isso que você ficou tão irritado quando eu bati no vidro?
Nicholas ficou parado num instante que quase passou despercebido, antes de retirar uma fita do arquivo.
— Não tava irritado. Só alerta.
— Tá bom, haha, sei.
Por fim, Nicholas virou-se, com o rosto iluminado de baixo para cima pela lanterna cujo feixe de luz incidia agora no chão entre eles.
— O que você quer que eu diga?
— Não sei. A verdade, talvez? — O garoto encostou na soleira, cruzando os braços. — Ela é diferente. Dá pra ver no jeito que olha pra você. E no jeito que você não olha pra ela, pra ser sincero.
— Você devia era tá prestando atenção nos cantos escuros.
— Tô prestando atenção em tudo, incluindo no fato de que a única vez que você não parece carregar o mundo nas costas é quando ela tá por perto.
— Isso não é assunto pra agora, cacete.
— Tá bom. — O garoto aceitou, mas não antes de soltar uma última observação: — Mas se você deixar ela escapar por medo, aí sim vou achar que você é burro, não só teimoso.
Nicholas não disse nada, mas seus ombros ficaram tensos. O gotejar no canto da sala pareceu intensificar-se, acompanhando o tempo que passava a seu lado, e as oportunidades que poderiam ter escapado com a água.
A verdade. A palavra soou-lhe na mente com um sabor amargo. Que verdade poderia ele oferecer a um adolescente sobre algo que nem ele próprio compreendia? Sam, na sua simplicidade crua, reduziu a questão à sua essência: Ela é diferente. Sim, ela era, e essa diferença era precisamente o problema.
Emilly era uma porta aberta para um quarto escuro, um lugar onde não entrava ninguém. Esta não apenas entrava, como parecia conhecer o caminho.
Com ela, o peso da sua própria existência parecia… partilhável. Isso era mais perigoso que qualquer Mephisto. Um inimigo se enfrenta, derrota e supera, mas o que se faz a alguém que oferece alívio? Como se lida com a possibilidade de se precisar de alguém?
Nicholas passou outra fita entre os dedos, concentrando-se no plástico mofado para não encarar a sua própria vulnerabilidade.
“Burro ou teimoso.”
Talvez fosse os dois. Porque o verdadeiro medo talvez não fosse perder Emilly, mas sim descobrir que, depois de a ter, não conseguiria voltar a ser quem era antes. Que ela deixaria de ser um luxo para se tornar uma necessidade, e as necessidades eram pontos cegos fatais no seu mundo.
O gotejar ouvia-se como uma zombaria, cada gota uma batida no caixão das suas desculpas. Sam, com a sua sabedoria não solicitada de dezasseis anos, possivelmente tinha razão. A única verdadeira burrice seria acreditar que poderia continuar a fingir eternamente que aquilo não importava.
Mas a admissão disso, mesmo para si mesmo, era uma rendição, e Nicholas não se rendia. A única coisa que fazia era recuar estrategicamente. Pelo menos, era o que se dizia a si mesmo, enquanto o som da água insistia em lembrá-lo de que algumas coisas, uma vez perdidas, não voltam mais.
— Bom… Você trabalha na U.E.C. há muito tempo? — Sam perguntou, enquanto o acompanhava andar para fora da sala.
Nicholas desacelerou. A luz da lanterna vacilou entre duas bifurcações. Escolheu a esquerda, onde o ar parecia menos pesado.
— Tempo suficiente para saber que você não quer isso pra sua vida.
Sam franziu o cenho. Cruzou os braços, como se quisesse se proteger de algo invisível.
— Eu discordo. A U.E.C. estuda coisas que ninguém mais ousa nem mencionar. Eles enxergam padrões onde os outros vêem coincidências. Sempre quis ser pesquisador. Antes disso tudo acontecer.
O agente parou, virando-se. A sombra projetada no teto alongou-se de forma distorcida.
— Pesquisador? — Riu-se. — Você acha que eles passam o dia analisando mistérios em laboratórios limpos e bem-iluminados? A U.E.C. destroça idealistas. Eles estudam os mortos. Os nossos mortos.
Sam apertou os lábios. O couro da jaqueta rangeu sob seus dedos tão tensos que as juntas esbranquiçaram.
— Mesmo assim, se eu pudesse entender o Mephisto, descobrir como ele se alimenta…
Nicholas suspirou, passando a mão no rosto. Estava acostumado com esse tipo de esperança. Ele mesmo já a tivera um dia.
— Quer um conselho? Não tente dar sentido a isso. Você pode passar uma vida inteira tentando entender, mas no fim só vai sobrar uma pergunta sem resposta e um corpo na sarjeta. A U.E.C. não está aqui para impedir nada. Eles observam, catalogam, contêm. E quando chega a hora, exterminam. Mas não evitam merda nenhuma de acontecer.
O garoto encarou o chão. Um storyboard meio escondido sob o entulho mostrava um desenho incompleto. Era uma mão, os dedos longos e finos, como garras se arrastando pelo papel.
— Então qual é o ponto disso tudo?
— Controle. Informação. Manter as pessoas no escuro. Se a população soubesse o que realmente acontece, haveria pânico. E sabe o que acontece quando as massas entram em pânico? Governos caem. O sistema implode. E a U.E.C. existe pra garantir que isso nunca aconteça.
Sam inspirou fundo. As mãos, ainda marcadas pelos arranhões da fuga, tremeram levemente. Lembrou-se deles.
— Eu não quero ser um agente de campo. — admitiu, a voz baixa, quase inaudível. — Mas depois do que eu vi aqui… como posso voltar a ser apenas um estudante?
Não houve resposta. Por enquanto.
Nicholas parou em frente a uma porta. Estalou quando a abriu. A sala de música, empoeirada e abandonada, tinha um cheiro de mofo capaz de aprisionar o tempo. Partituras espalhadas, outrora o orgulho do lugar, lembravam melodias esquecidas. O piano estava destruído, com suas teclas espalhadas pelo chão, tal qual os dentes de um gigante adormecido.
— Você não volta. — disse por fim — Mas pode escolher não se perder.
Sam afastou uma cortina de teias de aranha com a ponta dos dedos. Havia uma crueza naquelas palavras, mas também um fio de esperança.
— Você já se perdeu?
Ele ficou parado por um instante, e a lanterna tremia levemente em sua mão.
— Todo dia. — respondeu, sem virar-se. — Todo maldito dia.
Com a respiração presa, Sam sentiu o ar pesado dentro dos pulmões. Havia um cheiro de madeira úmida e ferrugem, misturado à poeira que flutuava na pouca luz da lanterna. Nicholas seguiu até a porta ao fundo. O letreiro, pendurado apenas por um parafuso enferrujado, balançava levemente, revelando as palavras apagadas: Sala de Mixagem. A tinta descascada e o papel desgastado indicavam anos de negligência.
Nicholas testou a maçaneta. Resistiu. Forçou novamente, os nós dos dedos embranquecendo com a pressão. Nada. Ele estreitou os olhos e disse:
— Se afasta, garoto.
O homem deu um passo atrás e chutou na altura da fechadura. O impacto reverberou pelo corredor, e, com um rangido seco, a porta se abriu alguns centímetros antes de cair no chão.
— Minha nossa… — disse Sam, espantado.
O cheiro lá dentro era diferente. Havia um leve aroma de madeira úmida, equipamentos envelhecidos e um traço de eletricidade que ainda impregnava os consoles, como se o lugar tivesse resquícios de vida mesmo após ser abandonado. Sam entrou devagar, evitando os fios espalhados pelo chão.
A luz da lanterna revelou toda a desordem. Os racks de áudio estavam tombados. Fitas de rolo desenroladas formavam um emaranhado sobre um tapete manchado. Caixas de som viradas, com os cones enterrados. Falhas no revestimento acústico e marcas de arranhões na parede próxima à porta indicavam que algo havia sido arrancado com pressa. No centro da sala, no entanto, como uma ilha no meio de um mar em ruínas, uma mesa de mixagem permanecia intacta.
Nicholas se aproximou e a analisou. A fina camada de poeira cobria quase toda a superfície, exceto por uma pequena área limpa. Ele percorreu os botões com os olhos. Alguém os havia tocado recentemente.
Passou os dedos por um dos controles e encontrou marcas. Pequenos vestígios de óleo natural da pele haviam afastado a poeira. Estava seco, mas não antigo. Seus olhos afiaram-se. Pressionou um dos botões.
O som explodiu pelos alto-falantes velhos.
Primeiro, um chiado irregular. Estalos. Silêncio. Depois, uma gravação.
— Isso… está gravando? — A voz era masculina, nervosa, ligeiramente ofegante. — Ok… Se alguém estiver ouvindo isso, significa que a gente… que ninguém conseguiu sair.
Sam trocou um olhar rápido com Nicholas.
— Ele está louco. Joseph enlouqueceu. Ontem, ele fez todo mundo ficar até tarde porque queria que ‘os sons soassem certos’, mas nada fazia sentido. Ele nos trancou aqui dentro. Ninguém pode sair até terminarmos.
O áudio chiou. Um som distante ecoou no fundo, algo entre um gemido e um roçar abafado.
— Joseph não quer que ninguém vá até a Sala do Auditório. Ele surtou quando Mark entrou lá ontem. Mandou todo mundo esquecer que aquele lugar existe.
Outro estalo. O áudio cortou, e um novo começou logo em seguida.
— Ok, eu não sei que dia é hoje… Eu não dormi, não tem janela aqui. Joseph continua dizendo que ‘o som não está certo’. O que isso significa? O que ele quer? — A respiração do homem acelerou. — Eu tentei sair. Juro por Deus, eu tentei. Mas todas as portas estavam trancadas. O problema não é só ele. Eu ouço coisas. Nos corredores. Nos alto-falantes. Na sala ao lado…
Ruídos se sobrepuseram à voz. Algo arranhava a madeira, seguido por um estalo seco. Sam enrijeceu os ombros.
A voz retornou, agora em um sussurro rouco:
— Eu vi alguma coisa ontem. Não era Joseph. Não era nenhum de nós. Estava na porta da Sala do Auditório. Eu juro que vi. Mas quando eu pisquei… sumiu.
Outro ruído. Mais arranhões. Um rangido baixo, como se algo estivesse sendo movido do outro lado da gravação.
— Se alguém encontrar isso… Por favor… Não entrem na Sala do Auditório.
Nicholas esperou por um instante, fitando a mesa de mixagem com a expectativa de que ela lhe dissesse algo a mais. O chiado dos alto-falantes ainda se ouvia no ar, enfraquecendo aos poucos até se perder na quietude pesada do estúdio. Ele passou a mão na nuca e varreu a sala com os olhos em busca de algo que escapara à primeira análise.
Sam se virou, observando a bagunça ao redor. As marcas de arranhões na parede, os cabos embolados como veias expostas, o cheiro de isolamento e tempo preso.
— E essa tal Sala do Auditório? Como a gente encontra?
Ele não respondeu de imediato. Em vez disso, apontou a luz da lanterna para as paredes, examinando detalhes que poderiam ter passado despercebidos antes. Nada ali parecia recente. Nenhum sinal de Jake. Mas também… nenhum sinal de que não pudesse ser ele.
— Não sei — respondeu, por fim. — Mas alguém tocou nessa mesa. Alguém mexeu nesses botões.
— Mas… e se não foi ele? — Sam cruzou os braços. — E se foi algo?
Nicholas se virou para ele. Sam não estava sendo paranoico. Não depois do que já havia visto naquele lugar.
— Então temos um problema. — disse, então inclinou a cabeça em direção à porta aberta. — Vamo.
Sam foi o primeiro a sair. Logo que passaram pela porta derrubada, a Sala de Música estava como antes: partituras espalhadas cobertas por poeira, o piano destruído de dentes quebrados em um sorriso macabro. Depois da gravação, no entanto, o lugar parecia menor. Os vestígios daquele passado preso em áudio ainda estavam ali, como se ouvissem cada passo deles.
O garoto hesitou ao passar pelo piano.
— Eu nunca toquei um desses.
— Esse não vai te ensinar nada.
Forçou um riso forçado. Ainda assim, não havia humor de verdade ali.
Ao retornarem ao corredor, foram recebidos pelo cheiro de madeira velha e umidade, e o silêncio lhes veio mais denso. Embora não houvesse vento, um pedaço de fita adesiva solta em uma das portas balançava levemente.
— Você sente isso? — Sam perguntou, baixando a voz.
Nicholas não respondeu. Ele sentia. Algo ali estava diferente. Com passos cautelosos, foram adiante pelo corredor. Viam que as portas ao longo do caminho estavam fechadas, algumas trancadas, outras entreabertas, e que por trás delas se formavam sombras de equipamentos abandonados em meio a móveis cobertos por lençois.
Naquele momento, Sam parou abruptamente.
— Espera.
Ele apontou para algo na parede. Nicholas ergueu a lanterna e a apontou para o objeto.
Era uma planta do WonderheartStudio, afixada em um quadro de vidro empoeirado. O mapa detalhava todas as áreas do prédio, desde estúdios menores até o salão principal.
Nicholas aproximou-se do quadro e passou a manga do casaco sobre o vidro empoeirado. A sujeira permitiu que a imagem do mapa se revelasse melhor. Era grande, impresso em papel amarelado e colado diretamente na madeira da parede. No entanto, o tempo não havia sido gentil. Algumas seções estavam manchadas, rasgadas a ponto de se apagarem, e havia sinais de que alguém havia tentado arrancar informações dali. Outras áreas estavam marcadas por queimaduras, deixando buracos escurecidos onde antes haviam nomes de salas.
— Interessante. Parece que alguém não queria que certos lugares fossem encontrados.
Sam franziu a testa.
— Você acha que foi… ele? O Joseph?
— Não sei. Mas seja quem for, estava lidando com fogo dentro de um prédio cheio de coisas inflamáveis. Então ou era muito estúpido, ou muito desesperado.
Sam engoliu em seco.
Nicholas seguiu com os olhos pelas áreas ainda legíveis. A estrutura do estúdio era extensa, com corredores labirínticos e divisões específicas para diferentes funções:
- Estúdio A e Estúdio B
- Sala de Mixagem
- Sala dos Técnicos
- Depósito (próximo da saída de emergência. Estava parcialmente queimado no mapa, mas a localização ainda era visível.)
- Escritório de Joseph (Nome destacado em letras pequenas, localizado ao lado da sala de reuniões.)
No canto inferior da planta, algo rompeu a sequência lógica das salas e corredores. Entre os nomes já desgastados, um permaneceu legível, sem a interferência do tempo ou da fuligem que apagava o resto do papel:
SALA DO AUDITÓRIO.
O que deveria ser apenas mais um espaço no WonderheartStudio tinha um detalhe que o diferenciava. Uma linha espessa cruzava a escrita, não um risco apressado ou rabisco descuidado, mas uma tentativa deliberada de apagá-la, sem arrancar o mapa por inteiro. A força da tinta havia desbotado parte do papel, e, ao lado, um aviso escrito à mão emergia por entre as marcas do tempo:
“NÃO ABRA.”
Nicholas deslizou a lanterna até a anotação e soltou um sopro breve pelo nariz.
— Direto ao ponto.
Sam inclinou-se para ver melhor. Passou os dedos pela inscrição, quase como se esperasse sentir alguma textura diferente, uma cicatriz no papel que confirmasse a urgência do aviso. O silêncio arrastou-se por alguns segundos até que o garoto soltou uma risada curta, sem humor.
— E aposto que vamos ignorar, né?
A resposta veio na forma de um sorriso enviesado, mal contido, carregado de uma ironia discreta.
— Você tá pegando o jeito.
Sam recuou, esfregando o rosto com ambas as mãos, como quem tenta afastar um arrepio incômodo.
— Esse lugar já era ruim antes. Agora tá pior.
Nicholas passou os olhos novamente pela planta, traçando mentalmente o caminho até o auditório.
— Você se acostuma.
Não foi uma promessa. Não foi um conselho. Apenas uma constatação.

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