Capítulo 97: Sentidos turbinados
Olhei para Marreta e Torreta, respirando fundo antes de erguer a mão em um gesto breve.
— Me deem um minuto. Preciso me organizar.
Marreta cruzou os braços, avaliando-me com olhos atentos, enquanto Torreta soltava um resmungo baixo, mas não protestava. Pandora, por outro lado, já me dava as costas, saindo pisando duro. Sua frustração era quase palpável. Eu sabia que ela detestava perder tempo, mas algo me dizia que não era apenas isso.
Alex, que assistia a tudo de longe, manteve o sorriso irônico nos lábios, como se estivesse se divertindo com a pressão que eu sofria. Bastardo.
Fechei os olhos e concentrei-me. Comecei a circular minha mana, guiando-a com precisão para seguir o caminho que Pandora havia indicado. No instante em que a energia percorreu os novos canais dentro de mim, foi como se o mundo tivesse sido redesenhado em traços mais nítidos e vibrantes.
Minha visão tornou-se absurdamente aguçada. Cada detalhe da arena se destacou de maneira dolorosa — as rachaduras sutis no chão de areia, o brilho incômodo do sol refletindo em partículas de poeira suspensas no ar. A claridade feriu meus olhos, forçando-me a fechá-los em dor.
Então veio o som. Um bombardeio implacável de ruídos antes imperceptíveis. Eu ouvia tudo. A respiração entrecortada de Pandora, o sutil ranger de seus dedos se fechando em punhos, o leve estalo das juntas de Marreta quando ele se moveu de leve. Cada som ressoava como um trovão direto nos meus ouvidos. O impacto foi insuportável. Soltei um grunhido e cobri as orelhas com as mãos, tentando barrar o excesso de estímulos.
E não parava por aí. Os cheiros também vieram, intensos e distintos. O suor salgado de Marreta, a ferrugem e óleo das placas da armadura de Torreta, o couro sutilmente queimado das botas de Pandora. E o gosto… O gosto da poeira, do ar seco, de algo metálico que se prendia à minha língua como se tivesse mordido um pedaço de ferro puro.
Meu corpo não estava preparado para aquela enxurrada de informações. Caí de joelhos, respirando de forma irregular.
Eu não podia falhar.
Pandora esperava algo de mim. Não queria vê-la se desapontar.
Engoli em seco, obrigando-me a ignorar o desconforto. Será que esse efeito era normal? Ou era o meu corpo modificado reagindo de forma exagerada?
Continuei circulando a mana, ajustando o fluxo com cuidado. Mudei o ritmo da respiração, tentando silenciar os estímulos em excesso. Foi um processo lento, uma guerra contra meus próprios sentidos. O tempo se arrastava, cada segundo parecendo uma eternidade.
Mas eu me adaptei.
Aos poucos, filtrei os ruídos, selecionei o que era útil e descartei o resto. Mantive minha visão clara sem queimar meus olhos, reconheci os sons importantes e aprendi a ignorar os irrelevantes. Era como aprender a usar um novo membro do corpo que eu nem sabia que tinha.
Lentamente, afastei as mãos dos ouvidos e abri os olhos. O mundo ainda parecia um pouco deslocado, mas já não era insuportável. Fiz microcorreções no fluxo da mana, aprendendo quais conexões eram mais eficientes, quais caminhos me davam mais controle. Estava desbravando um território desconhecido dentro de mim mesmo.
Quando senti que podia me mover sem desabar, levantei-me. A princípio, um leve enjoo ameaçou me derrubar, mas dei dois passos e minha condição estabilizou.
Então, testei algo.
Com a mana percorrendo minha estrutura nervosa, foquei meu olhar em Marreta e Torreta. E, de repente, o mundo desacelerou. Seus movimentos pareciam mais lentos, como se estivessem submersos em um líquido espesso. O deslocamento do ar ao redor deles tornou-se visível para mim, como se cada partícula de poeira traçasse um rastro no espaço. Já havia sentido essa sensação antes, era nos momentos em que minha contraparte assumia o controle.
Involuntariamente, um sorriso surgiu nos meus lábios.
— Vamos de novo? — minha voz soou firme, carregada de algo novo. Confiança.
Marreta ergueu a mão e deu o sinal de início.
Torreta, como esperado, reagiu no mesmo instante. Sua barreira se ergueu em um lampejo de luz azulada enquanto ele se deslocava lateralmente em alta velocidade, reproduzindo exatamente o mesmo movimento que fizera antes. Só que, desta vez, eu enxergava tudo com uma clareza assustadora. Cada detalhe de seus deslocamentos, a forma como seus pés afundavam ligeiramente no chão, o sutil atraso da barreira em acompanhar seu corpo. Até os padrões na circulação da mana dentro das runas gravadas em sua armadura se desenhavam nitidamente diante dos meus olhos.
Ele se posicionou e abriu fogo.
Os disparos de energia cortaram o ar com uma precisão cirúrgica, formando um cerco em torno de mim. Mas agora eu via o que antes apenas intuía: ele não estava apenas atirando. Ele me guiava. Criava um caminho forçado, delimitando minha movimentação como um mestre conduzindo sua parceira em uma dança.
Um estalo de compreensão percorreu minha mente.
— Vai precisar mais do que isso! — gritei, a adrenalina pulsando em meu peito. Um sorriso se espalhou pelo meu rosto.
Era a primeira vez que sentia que não estava nadando contra a correnteza.
Pelo contrário, eu via o fluxo das águas. E, melhor ainda, conseguia escolher os melhores caminhos.
Sem hesitar, explodi em movimento.
Minha magia de deslocamento ativou-se como um disparo de catapulta, lançando-me alguns metros à frente. Passei entre os feixes de energia disparados por Torreta, deslizando entre as lacunas como se os tiros tivessem sido disparados em câmera lenta. A expressão do anão se contorceu em espanto ao me ver cruzar, sem esforço aparente, a zona que ele havia transformado em um verdadeiro campo de morte.
Seu instinto reagiu de imediato.
Ele recuou com velocidade, os pés arrastando areia, e ajustou sua estratégia. Agora, seus tiros não eram mais de supressão. Ele havia me marcado como alvo.
Os disparos se tornaram mais agressivos, mais imprevisíveis. Ainda eram perigosos, ainda eram rápidos. Mas, pela primeira vez, eu os via. Não apenas previa onde cairiam, mas enxergava o deslocamento do ar antes que se condensassem, sentia o estalo sutil da mana vibrando no espaço.
Esquivei-me de dois disparos simultâneos, movendo mais mana para minhas pernas.
Até isso agora eu fazia com mais propriedade.
Minha mente processava cada detalhe em frações de segundo, minha percepção ampliada tornava minha tomada de decisões mais rápida, minha conexão com a mana mais refinada.
— Mas que diferença da porra! — exclamou Torreta, surpreso ao me ver avançando sem hesitação.
— Isso aí! — vibrou Marreta da arquibancada, batendo os punhos. — Continue ganhando terreno, Lior!
Torreta tentava recuar, mas eu o acompanhava. Estava quase ao alcance de minha espada.
Preventivamente, ativei minhas esferas de proteção. Uma delas fundiu-se com minha lâmina, reforçando-a. Se sua barreira não cedesse, ao menos eu poderia aparar um disparo inesperado.
Eu estava prestes a pegá-lo quando, de repente, ele mudou de estratégia.
Seu próximo tiro não veio na minha direção.
O feixe atingiu o chão à minha frente, levantando uma coluna de areia e detritos, criando uma cortina opaca entre nós. Num instante, minha visão foi obliterada. Se eu avançasse sem pensar, estaria exatamente onde ele queria—um alvo perfeito.
Quando recuperei a visão, Torreta já havia ampliado a distância entre nós.
Ele sorriu, recuperando um pouco de sua confiança.
— Achou que seria fácil, garoto? — debochou, erguendo a arma novamente. — Não sou inexperiente, sabia?
Mas sua voz traía algo.
Ele estava surpreso.
Eu ri, sacudindo a poeira dos ombros, voltando a me mover.
— Vamos ver quanto tempo você consegue me manter longe.
E parti para cima dele de novo.
Em pouco tempo nosso combate havia se transformado em um impasse. Nenhum de nós conseguia a vantagem decisiva. Cada golpe era respondido com uma esquiva. Cada disparo era evitado por um fio de cabelo.
Torreta resmungava algo entre os dentes, o cenho franzido em concentração. Seu suor misturava-se à poeira grudada na pele. Meu corpo também protestava. O desgaste da luta pesava em meus músculos, a exaustão vinha à tona, mesmo que minha mente continuasse afiada.
Até que, num gesto quase sincronizado, paramos.
Nenhum de nós verbalizou a trégua, mas estava claro. Se continuássemos, o resultado não mudaria.
Torreta foi o primeiro a soltar um suspiro, abaixando sua arma. Ele me avaliou por um instante, e então um sorriso torto surgiu no rosto suado.
— Porra, moleque… — ele bufou, balançando a cabeça. — Se eu soubesse que ia ser assim, tinha me aquecido antes.
Eu ri, respirando fundo para acalmar o ritmo frenético do meu coração. Minha mente protestava do uso prolongado da mana.
— Se eu soubesse que você era tão devagar, tinha pegado mais leve.
Ele riu de volta, um som rouco e satisfeito.
— Bom… para você um empate comigo você já vale alguma coisa. Germano tem o quarto círculo completo, eu sou considerado de quinto círculo, sabia?
Marreta bateu palmas, sua risada grave ecoando pela arena.
— Agora sim eu vi uma luta de verdade! — Ele apontou para mim. — E você, garoto… conseguiu sentir, né? A diferença.
Eu apenas assenti.
Sim, eu havia sentido. Pela primeira vez, eu não era apenas um espectador da minha própria força. Eu a controlava.
A adrenalina começava a se dissipar, dando lugar a uma fadiga avassaladora. Minha cabeça latejava, cada batida do coração ressoando como um tambor dentro do crânio. Mas, apesar do cansaço, algo em meu peito ardia com uma intensidade inegável.
Eu estava no caminho certo.
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