Índice de Capítulo

    Acordei cedo e deixei todas as preocupações da noite anterior de lado. Meu foco hoje deveria ser único: minha fatídica luta com Germano.

    Não era apenas meu orgulho que estava em jogo, mas também a confiança que Pandora e Rosa tinham depositado em mim. Embora eu não devesse nada a Rosa, e a aposta dela não me beneficiasse diretamente, seria um crédito a ser cobrado no futuro, e isso poderia se mostrar útil.

    Levantei-me, sentindo os músculos protestarem após os treinos intensos dos últimos dias. Um estalo percorreu minha coluna quando me alonguei, dissipando parte da rigidez. A água fria do lavatório trouxe-me de volta ao presente, varrendo os resquícios da inquietação que ainda rondava minha mente.

    Movi-me com calma, escolhendo minhas roupas e organizando minha vestimenta para a apresentação da noite em uma pequena mala. O ritual metódico ajudava a ordenar meus pensamentos, preparando-me para o que estava por vir.

    No meio desse processo, um toque suave na porta interrompeu minha concentração. A voz familiar de Anne, uma das serviçais que me assistiam desde a partida de Nix e Selune, veio do outro lado. Como de costume, ela abriu discretamente uma fresta, espiando para dentro.

    — Jovem lorde, há visitas esperando por você. Coloquei-os na sala de estar.

    Assenti, ainda com o torso nu, terminando de ajustar a camisa enquanto tomava uma decisão rápida.

    — Estou indo. Sirva-lhes uma xícara de chá, por favor.
    Anne fez uma leve mesura antes de fechar a porta, mas não sem antes lançar um olhar rápido e avaliador, que se demorou um instante a mais do que o necessário em meu corpo.

    Respirei fundo, preparando-me mentalmente para o que viria. Já imaginava quem poderia estar me esperando.

    Quando entrei na sala de estar, meus instintos se confirmaram. Claire, Joaquim, Joana, Dante e Gérard estavam lá, espalhados confortavelmente pelos sofás. Mas o que realmente me surpreendeu foi ver Aiden e Victor junto a eles, também à vontade, bebendo o chá que lhes tinha sido servido.

    Meu coração se aqueceu ao vê-los. Não apenas por nossa amizade, mas pelo fato de que, mesmo na minha ausência, o grupo que eu ajudara a formar se mantinha unido. Eles não precisavam de mim para existir; já tinham criado laços entre si. Era um sentimento estranho, mas genuinamente satisfatório.

    Um sorriso escapou antes mesmo que eu pudesse cumprimentá-los. No instante em que fiz menção de abrir a boca, Claire se levantou de um pulo e se lançou nos meus braços, me envolvendo em um abraço apertado. Seu rosto estava quente contra meu peito, e senti o leve tremor de sua respiração acelerada.

    — Que saudade! — exclamou ela, a voz carregada de emoção.

    Apesar de ter passado menos de uma semana desde que os vi pela última vez, a rotina exaustiva e a intensidade dos treinos fizeram parecer muito mais tempo.

    Acariciei a cabeça da menina, sentindo a maciez de seus cabelos. Ela não fez menção de me soltar tão cedo, e, para ser sincero, não me incomodei.

    — Parece mesmo que faz mais tempo — concordei. — O que vocês fizeram essa semana?

    Joaquim riu antes de responder, cruzando os braços com seu ar despreocupado de sempre.

    — Bem, acabamos treinando juntos e acolhemos esses dois aqui — disse, apontando para Aiden e Victor. — Eles são gente boa. Você não falou que, se conhecêssemos pessoas de confiança, devíamos apresentá-las ao grupo?

    Observei os dois com mais atenção. Aiden tinha uma postura séria, os olhos analisando cada detalhe do ambiente. Victor, por outro lado, exibia um meio sorriso, como se sempre estivesse à beira de fazer uma piada. Dei um aceno de cabeça, aprovando a escolha.

    — E eles querem participar da arena — acrescentou Joaquim. — Por falar nisso, sua luta é hoje, não é? Aproveitamos que temos que ir para lá também. Vamos lutar nas rodadas normais, apresentar os dois para Rosa e, claro, assistir sua luta.

    — Então vamos todos juntos — completei, sentindo um misto de empolgação e ansiedade crescer dentro de mim.

    Dante, que até então apenas ouvia, inclinou-se um pouco para frente.

    — Por falar em todos juntos, onde estão Nix e Selune?

    Havia um leve tom de preocupação em sua voz.

    — Elas tiveram que viajar de última hora — respondi, sem entrar em detalhes. — Essa semana foi cheia de acontecimentos.

    Sentindo que não poderia mais manter o assunto em segundo plano, respirei fundo e comecei a relatar tudo o que ocorrera nos últimos dias. 

    Falei sobre a irmã de Nix, que todos acreditavam estar morta e foi “encontrada” em uma arena numa ilha distante. Relatei minha semana com Pandora e os treinos intensos — omitindo, é claro, os segredos que ela me confiara sobre sua herança e a  cultivação. Mencionei a aparição da garota misteriosa, mas deixei de lado qualquer menção a Mahteal e Malena. Por fim, cheguei ao que realmente importava: os eventos da noite anterior. Contei sobre os pequenos espiões, as maldições de miasma espalhadas como pragas invisíveis, e a inquietante verdade de que os participantes do torneio estavam sendo vigiados. 

    A reação foi imediata. 

    — Caramba, quanta coisa em uma semana… — murmurou Joaquim, assoviando em descrença. 

    — Essa questão do miasma é muito séria. — Claire finalmente se afastou de mim, cruzando os braços. Seu semblante carregado de preocupação. 

    Assenti, cruzando os braços também. 

    — Eu sei. E por isso quis alertar vocês antes da luta. — Meus olhos percorreram o grupo, medindo suas reações. — Não sabemos o quão fundo isso vai, mas uma coisa é certa: precisamos tomar cuidado. Desde antes do início da temporada de patrocínios, os herdeiros das Casas têm sido alvos de atentados. Principalmente os das grandes Casas. Não posso revelar tudo o que sei, mas esses desgraçados são perigosos. Se chegaram a esse ponto, já devem ter algo grande em andamento.

    O silêncio que se seguiu foi pesado, como se cada um ali estivesse calculando as implicações. O ar carregado de tensão fazia parecer que, a qualquer momento, algo ainda pior poderia acontecer.

    Soltei um suspiro e deixei escapar um sorriso cansado. Ainda havia muito a fazer, mas pelo menos não estava sozinho nessa. 

    — Se quiserem avisar suas casas sobre isso, façam agora. Quando chegarmos ao Matadouro, não quero ninguém distraído. — Falei com firmeza, certificando-me de que todos compreendessem a gravidade da situação. — Mas lembrem-se: ninguém pode saber de onde veio essa informação. 

    Dante, que até então apenas observava, foi quem rompeu o silêncio. 

    — A maioria dos patriarcas das Casas teve que se ausentar. Até mesmo o Imperador partiu. Não sei se vai adiantar avisar alguém. — Ele fez uma pausa, cruzando os braços. — Ontem à noite reuniram uma força como não se via há tempos. Parece que houve uma emergência em uma das ilhas remotas. 

    As palavras pairaram no ar como um soco inesperado no estômago. 

    — Então a capital… — comecei, tentando processar. 

    — Está praticamente entregue aos jovens que vão participar do torneio, a alguns familiares de menor importância e ao povo comum. — completou Dante, o olhar sombrio. 

    O impacto da revelação nos atingiu em cheio. O que quer que estivesse acontecendo, nós estávamos sozinhos aqui. 

    Meu estômago se contraiu. Até então, eu acreditava que a movimentação desses usuários de miasma estava relacionada ao meu confronto com eles, ao fato de eu ter impedido que pegassem a garota misteriosa. Mas e se o plano deles fosse muito maior do que isso? E se soubessem que a maior parte das figuras mais poderosas do Império não estava aqui? 

    Balancei a cabeça, forçando-me a afastar aqueles pensamentos. Eu já tinha feito minha parte ao avisar minha mãe. O resto não estava ao meu alcance. 

    Meu foco precisava estar em apenas uma coisa: minha luta esta noite.

    Pedi aos serviçais que preparassem o almoço para todos e, assim que terminamos, seguimos para o Matadouro. O local ainda estava tranquilo, tão silencioso que tivemos que entrar pelo disfarce do bar abandonado. 

    Fomos direto ao escritório de Rosa. Eu queria conferir os preparativos e apresentar Aiden e Victor a ela. Rosa nos recebeu, mas estava ocupada demais para nos dar muita atenção — havia dezenas de lutas para organizar. 

    — Sua luta e a de Pandora serão as últimas da noite — informou Rosa, sem rodeios. — Dos seus amigos, apenas Joana, Dante e Joaquim lutam hoje. 

    Aiden lançou um olhar questionador para Rosa antes de perguntar: 

    — E nós dois? — referiu-se a Victor com um leve aceno de cabeça. 

    Rosa os avaliou por um instante antes de responder: 

    — Se são amigos de Lior, serão bem-vindos aqui. Mas terão que provar que merecem seu lugar. Semana que vem poderão estrear. 

    Os dois trocaram um sorriso animado, antecipando a oportunidade de crescimento. 

    Victor cutucou Aiden com o cotovelo, divertido. 

    — Eu te disse que colar no Lior ia ser uma boa. 

    Ignorei o comentário e, após uma breve despedida, deixamos Rosa retornar aos seus afazeres.
    Em vez de esperar nos vestiários, Rosa nos acomodou em um dos camarotes da área VIP, com comes e bebes por conta da casa. O tempo passou rapidamente. De onde estávamos, pude observar a arena ganhando vida aos poucos. Gladiadores chegavam, o público se acomodava, e a cada minuto o espaço parecia vibrar, pulsando como um coração que batia cada vez mais forte. 

    De repente, a porta se abriu e Pandora entrou. 

    — E aí, gente? — cumprimentou, lançando um olhar direto para mim. — Está pronto, Lior? 

    Convidei-a para sentar e se servir. Ela pegou uma jarra d’água e encheu uma taça. 

    — Estou pronto, sim. Fizemos tudo o que podíamos. Agora não adianta ficar nervoso, não é? 

    — Exato! Até porque você aprendeu com a melhor. 

    Rimos juntos. Claire nos observava com uma expressão curiosa, como se ela se considerasse os olhos de Nix ali para me vigiar. 

    O sino da arena soou três vezes. Pandora se levantou, esticando os ombros. 

    — Bem, vou me preparar. — disse, lançando um último olhar ao grupo. — Boa sorte a todos que vão lutar. 

    E com isso, Pandora saiu, deixando para trás aquela eletricidade no ar, a sensação de que o verdadeiro espetáculo estava prestes a começar. 

    Pouco depois, chamaram Joana para descer. Aproveitei a deixa e fui junto. Não queria ficar no camarote observando as lutas. Iria me isolar no vestiário até a hora do meu combate. Antes de sair, desejei sorte aos meus amigos e deixei para trás a agitação da área VIP. 

    No vestiário, o mundo exterior parecia distante, mas eu sentia a arena vibrar ao meu redor. Cada impacto dos golpes ressoava no solo, os pés dos espectadores batiam no mesmo ritmo, criando uma cadência quase tribal. Os gritos da arquibancada subiam e desciam como ondas, arrastando-me para dentro daquela tensão crescente. 

    Fechei os olhos e respirei fundo. 

    O medo estava ali, junto com a adrenalina. Mas não deixaria que me dominasse. 

    Revisei mentalmente cada treino, cada golpe, cada erro e cada acerto. Relembrei os ensinamentos de Pandora, os momentos exaustivos de prática, as quedas e as vitórias. Concentrei-me no presente, no que estava prestes a acontecer. 

    Perdi a noção do tempo. 

    Uma batida na porta me trouxe de volta. 

    — Sombra, está na hora. 

    Levantei-me, afastando o nó no peito. Passei as mãos pelo traje, certificando-me de que estava tudo em ordem. Minha respiração estava firme. Meus músculos, preparados. Caminhei pelo corredor, sentindo cada passo me levar ao desconhecido. 

    O túnel de saída se abriu diante de mim, e a luz forte da arena me cegou por um instante. O rugido da multidão me atingiu como uma onda, vibrando em cada fibra do meu corpo. O cheiro da areia quente, do suor e da antecipação preencheu meus sentidos. 

    Era isso. Era para esse momento que eu havia treinado. 

    Do outro lado, Germano já me aguardava. Seu traje de caçador se ajustava perfeitamente ao seu corpo, e a estranha arma que carregava repousava em suas mãos com a naturalidade de quem nasceu para usá-la. Um sorriso relaxado brincava em seus lábios, mas seus olhos estavam afiados, analisando cada detalhe. Ele transbordava confiança.

    — Vai ao menos me dar trabalho desta vez? — provocou Germano, com a voz carregada de ironia. — Ou vai se assustar como da última vez? 

    Deixei escapar um sorriso, cruzando os braços. 

    — Você não perde por esperar, desgraçado. 

    Eu também estava confiante.

    O locutor bradou nossos nomes, inflamando ainda mais o público. 

    Segurei minha respiração, esperando o som do gongo. O momento se alongou. Estranho. 

    A arquibancada também percebeu a demora, uma hesitação silenciosa pairando no ar. 

    Foi então que senti. 
     
    Uma presença. Algo pequeno, veloz. 

    Algo vindo em minha direção. 

    Olhei para o lado a tempo de ver Philip saltar para o meu colo. Sua presença quente e familiar foi um choque em meio à tensão crescente. Sua voz ecoou pela nossa ligação, urgente, afiada: 

    “Está começando, mestre.”

    O grito veio logo depois. 

    Primeiro, um. Depois outro. 

    E então, como se uma onda tivesse rompido, o pânico se espalhou. 

    A multidão começou a se mover de maneira errática, como se um instinto primal tivesse tomado conta. Pessoas empurravam umas às outras, tentando fugir. Corpos se atropelavam na pressa descoordenada de escapar. Mas, por um breve instante, houve um silêncio pesado, sufocante. Um momento de paralisia coletiva, como se todos estivessem tentando negar o que viam. 

    E então eu vi, ouvi e senti. 

    Na entrada oposta da arena, um som de rosnados e grunhidos se espalhava como uma sombra grotesca. O ar ficou pesado, denso, carregado de algo podre e maligno, era miasma. O chão, antes sólido sob meus pés, pareceu diferente, não fisicamente, mas em um nível mais profundo, como se o próprio espaço tivesse se tornado hostil. 

    Um cheiro pútrido de carne em decomposição preencheu minhas narinas. 

    Uma horda de mortos-vivos irrompeu pelas arquibancadas. Ferozes, impiedosos, famintos, avançavam sem medo, sem hesitação, como um enxame de predadores que finalmente encontrara sua presa. 

    O caos tomou conta do lugar. Pessoas despencavam das arquibancadas, caindo na areia como bonecos sem vida. Algumas ficavam imóveis ao tocar o chão, suas almas já arrancadas de seus corpos. Outras eram despedaçadas onde estavam, seus gritos se tornando uma cacofonia de desespero que sobrepunha qualquer aclamação anterior. 

    Uma criança separada dos pais chorava, paralisada de medo bem no caminho da horda. Um herói anônimo a puxou no último segundo. 

    Nos vestiários, os gladiadores começaram a reagir. Vi Domina e Gérard surgirem em meio à confusão, lutando lado a lado para proteger os espectadores. Um morto-vivo rompeu a linha defensiva e investiu contra ela. A magia de Gérard brilhou no último instante, repelindo o ataque, mas vi o medo estampado em seus rostos. 

    Meus olhos varreram a multidão. Não encontrei meus outros amigos. Meu peito se apertou. 

    Engoli em seco, o coração martelando no peito. 

    Olhei para Germano. 

    Ele já me encarava. Seu sorriso havia sumido, substituído por uma expressão sombria e determinada. 

    Não trocamos palavras. 

    Apenas concordamos com um aceno de cabeça e avançamos contra as criaturas. 

    O gongo já não importava mais. Nossa luta havia perdido o significado. O chão da arena tremeu sob nossos pés, não pelo impacto dos golpes que deveriam ter sido trocados entre nós, mas pelo colapso iminente de tudo o que conhecíamos. A guerra que enfrentaríamos agora não era motivada por rivalidade, e sim por algo muito maior: nossa própria sobrevivência. 

    O que quer que aquela organização sombria estivesse tramando, havia começado. E eu sabia, com a clareza de quem sente o próprio destino se desenrolar diante dos olhos, que, a partir daquele momento, nada mais seria o mesmo.

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