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    Sentia meu corpo se dissolver em partículas. Um calor suave me envolvia, acolhedor e tranquilo, como o toque de uma manta em uma noite fria. Pela primeira vez em muito tempo, não havia dor, medo ou preocupação, apenas uma paz profunda e indescritível.

    Mas então, uma voz ecoou no vazio.

    — Ainda não é a hora.

    Meus olhos se abriram.

    Estava deitado sobre um gramado macio, em uma clareira cercada por árvores floridas. As pétalas amarelas exalavam um perfume intenso, pungente, mas estranhamente reconfortante. O céu acima de mim era uma tapeçaria surreal de tons arroxeados, pontilhado por estrelas que brilhavam com uma intensidade impossível. No horizonte, uma lua gigantesca pairava preguiçosamente, sua luz projetando sombras alongadas pela paisagem.

    E então, percebi que não estava sozinho.

    Diante de mim, um homem observava com um olhar curioso, mas seus lábios traziam um sorriso sincero, quase familiar. Havia algo nele que transmitia serenidade, como se sua mera presença acalmasse qualquer temor.

    Era Mahteal.

    Não senti medo, nem ameaça. Pelo contrário — havia um conforto inexplicável naquela presença.

    — Obrigado — ele disse, sua voz carregada de gratidão genuína. — Nesse momento, estou travando uma batalha contra o Avatar do Vazio, sua sombra. Ele não se encontra completo, o que me dá alguma vantagem… e eu devo isso a você.

    Pisquei, confuso.

    — A mim?

    Mahteal assentiu.

    — Sim. Primeiro, ao criar sua sombra, você o forçou a se dissociar de mim. Segundo… ao enfrentá-lo, sua escolha foi me libertar. Mesmo sem perceber, sua decisão nos salvou. E, por fim, algo que você fez o fragmentou. Ele não está completo, não tem toda a sua força.

    As palavras dele eram um enigma, e eu não soube o que responder. Ele riu suavemente ao perceber minha confusão.

    — Há muito tempo, em meu mundo, eu e meus companheiros desencadeamos algo que vocês conhecem como a Névoa. — Sua expressão se tornou sombria, e seu olhar se perdeu por um instante. — Foi uma luta brutal. Um massacre. No final, dos meus amigos originais, restamos apenas eu e Malena.
    O nome reverberou dentro de mim como um trovão distante. Imagens cintilaram na minha mente. Vislumbres de um amor profundo e avassalador que não era meu. O peito apertou, como se eu carregasse um fardo que jamais deveria ter conhecido.

    Mahteal me observou atentamente e sorriu com tristeza.

    — Sim… essa paixão que você sente agora não é sua, mas minha. Quando pude, enviei fragmentos da minha vida para você, através de sonhos… pequenas fagulhas, discretas o suficiente para escapar da percepção dele.

    — Dele…? — murmurei, ainda processando tudo.
    Mahteal soltou um suspiro cansado.

    — Nosso inimigo. O mesmo que agora tenta consumi-lo. Sua sombra, o Avatar do Vazio.

    Minha expressão deve ter revelado o turbilhão dentro de mim, porque ele riu novamente.

    — Você tem muitas perguntas, eu sei. Eu gostaria de ter tempo para respondê-las todas, mas… o tempo é curto. Eu não estou verdadeiramente aqui.

    Franzi o cenho.

    — O que quer dizer com isso?

    — Esta clareira, esta conversa… tudo isso é uma ilusão. Neste exato momento, estou reconstruindo sua alma, que esteve à beira de se desintegrar. Também estou transmitindo meus conhecimentos e reforçando seu corpo. Você estava à beira do fim, Lior. E embora eu possa ajudá-lo a se reerguer, não posso assumir o seu lugar. E, ao contrário do que você pensava… nem sequer desejo isso.

    Ele fez uma pausa e seu olhar encontrou o meu, carregado de um peso que ia além do tempo.

    — Já tive minha chance. E falhei.

    Aquelas palavras carregavam um lamento profundo, a dor de incontáveis anos de arrependimento.

    — Mas você… talvez escolha diferente. Talvez tenha a oportunidade que eu não tive.

    Engoli em seco.

    — A oportunidade de quê?

    Mahteal inclinou a cabeça, o brilho das estrelas refletindo em seus olhos dourados.

    — De enfrentar um deus. O Deus do Vazio. Acabar de verdade com a Névoa.

    Um arrepio percorreu minha espinha.

    Eu não tinha palavras.

    O silêncio se estendeu entre nós, apenas o farfalhar das flores ao vento preenchendo o espaço.

    Mahteal sorriu outra vez, mas dessa vez havia algo diferente. Era um toque de esperança, misturado com pesar.

    — Você ainda tem um longo caminho pela frente, Lior.

    — Mahteal disse, sua voz carregada de um peso que eu não podia ignorar. — E agora, cabe a você decidir como irá trilhá-lo.

    Ele fez uma pausa, seus olhos me analisando com algo entre respeito e compaixão.

    — Sei que essa não foi a escolha que fez para si mesmo. — Seu tom suavizou, mas não perdeu a firmeza. — Mas, de alguma forma, o destino colocou esse fardo em suas mãos. Não para outro. Não por acaso. Mas para você, Lior… só para você.

    Mahteal ergueu o olhar para o céu arroxeado, seus olhos perdidos entre as estrelas cintilantes, como se sua mente vagasse por lembranças distantes.

    — Sabe… sempre achei estranho que o miasma fosse tratado como algo separado da mana. — Sua voz soou baixa, quase como um pensamento escapando. — Mana é a essência de tudo. O fogo, o ar, a terra, a eletricidade… cada elemento, cada força, tudo vem dela. Então por que a morte seria diferente? E não é, sabia? Nem Malena sabia isso.

    Ele pausou, o olhar perdido em alguma lembrança distante.

    — Talvez porque não é a morte. — Seus olhos se voltaram para mim, intensos. — Talvez seja o vazio. O nada, o oposto da mana.

    As palavras pairaram no ar como uma revelação incômoda. Eu quase podia senti-las se infiltrando em minha mente, tentando se encaixar nas lacunas da minha compreensão.

    Mas então Mahteal sacudiu a cabeça e sorriu.

    — Bah, estou divagando… Vou tentar explicar do começo.

    Ele se ajeitou, cruzando os braços, e seu semblante se tornou mais sério.

    — Quando meus amigos e eu liberamos a Névoa, não sabíamos o que ela era. Nem hoje tenho uma certeza absoluta. Mas sei que a Névoa… é o reino do Vazio.
    Minha respiração ficou presa na garganta.

    — O reino do Vazio?

    — Sim. — Mahteal assentiu. — Governado pelo Deus do Vazio, cujo sonho é engolir toda a realidade. A Névoa é sua manifestação física, espalhando-se como um veneno, isolando todas as dimensões umas das outras… e ao mesmo tempo, conectando-as.
    Um calafrio percorreu minha espinha.

    — Você quer dizer que…

    — Que as ilhas onde vocês vivem podem pertencer a uma mesma dimensão… ou a mundos completamente distintos, separados por realidades diferentes. A Névoa está sempre mudando. Às vezes, ela engole ilhas inteiras. Outras vezes, regurgita novas terras, desconhecidas e estranhas.

    Mahteal fez uma pausa, como se estivesse se preparando para um assunto mais pesado.

    — Mas onde vocês vivem, há uma barreira. Uma restrição.

    — Restrição?

    — Sim. Um método antigo. Eu e Malena o desenvolvemos. Por isso a Névoa não consome mais e mais de nossas terras. Pelo menos, nas ilhas principais, onde espalhamos matrizes e círculos mágicos.
    Malena outra vez. Seu nome carregava um peso imenso na voz de Mahteal.

    — A maioria das pessoas não compreende a verdadeira natureza da Névoa. — Mahteal desviou o olhar, como se enxergasse algo além daquele plano, além do que qualquer um poderia perceber. — Mas Malena e eu sabíamos.

    Ele fez uma pausa, respirando fundo antes de continuar.

    — Foi por isso que ela me selou aqui, junto ao Avatar do Vazio. — Seu tom carregava um peso imensurável, uma lembrança amarga de um sacrifício feito há muito tempo. — Nossa escolha foi remover o inimigo do tabuleiro, ao menos por um tempo. Não para vencê-lo… mas para dar ao mundo uma chance de lutar.

    Minha mente se embaralhou.

    — Você… aceitou ser selado?

    — Foi um sacrifício consciente. Eu sabia que era necessário. — Ele suspirou. — E depois disso… Malena desapareceu. Nunca soube o porquê.

    Fiquei em silêncio. O peso de tudo aquilo era esmagador.

    Mahteal, no entanto, prosseguiu.

    — Para enfrentar a Névoa, corrompi meu núcleo de mana. Na época, acreditei que era a única saída. Mas hoje… sei que foi um erro. Ou talvez não. Sem essa escolha, eu nunca teria compreendido o que sei agora, sobre a Névoa, sobre o Vazio… sobre o verdadeiro inimigo que enfrentamos.

    Seu olhar se tornou sombrio.

    — Malena tinha razão. Não foi miasma que contaminou meu núcleo… mas um fragmento do Avatar do Vazio. Ele se enraizou dentro de mim… sussurrando, guiando, moldando minhas decisões sem que eu percebesse.

    Seu verdadeiro desejo nunca foi apenas me corromper. Ele queria que eu falhasse.

    Minha mente girava.

    — Mas… e os ensinamentos que recebi? O conhecimento que me foi passado? Ele dizia que eram lições de Mahteal. Até mesmo Drael… ou aquela mulher pálida, que vi nos sonhos de Pandora…

    Mahteal balançou a cabeça lentamente.

    — Saiba que nunca lhe ensinei nada. O que estou fazendo agora é a primeira e única vez.

    Engoli em seco.

    — Então… tudo o que aprendi…

    — Foram os ensinamentos do Avatar do Vazio. Ele quis moldá-lo em um receptáculo perfeito. — Sua voz se tornou mais grave. — Quis destruir o que Malena e eu protegemos. Quis devorar seu mundo.

    Um arrepio percorreu meu corpo.
    Mahteal tremeluziu.

    O tempo dele estava se esgotando.

    — Nosso tempo está mais curto do que eu esperava. — Ele me fitou com intensidade. — Preciso saber. Por que o Avatar não está completo? O que aconteceu?

    Engoli em seco.

    — Eu… criei uma sombra. Shade. No início, ele era apenas um corvo, mas evoluiu… e então, Selune…

    Ao dizer o nome dela, um frio atravessou meu peito. Minha mente girou em desespero.

    Será que eu… havia dividido o Avatar do Vazio com ela?
    Shade havia insistido tanto…

    Antes que minha confusão se transformasse em pânico, Mahteal interveio.

    — Com o conhecimento que possuo agora, sei que existem maneiras de purificar um núcleo. Quando o Avatar se fundiu a você, Lior, e finalmente se separou de mim… consegui purificar o meu.

    Meus olhos se arregalaram.

    — Então…

    — Você poderá purificar o dela também. Mas terá que exorcizar ou destruir o Avatar que reside dentro dela.
    Senti meu estômago revirar.

    — Você está dizendo que…

    Mahteal assentiu.

    — Eles são a mesma entidade, Lior. O que um sabe, o outro também sabe. Shade e Selune… serão o habitáculo dele, serão seus piores inimigos.

    As palavras dele eram como navalhas.

    Selune… minha aliada… minha noiva querida…
    Shade… minha própria criação…

    — E eu terei que… enfrentá-los?

    — Sim.

    Meu peito se apertou. Mas Mahteal não me deu tempo para hesitar.

    Seu corpo começou a se desfazer, cintilando como poeira estelar.

    — O tempo está se esgotando. Ele vai fugir… para Shade ou Selune. O que posso fazer agora é enfraquecê-lo o máximo possível, para que não retorne com toda a sua força.

    Minha mente fervia com perguntas, mas eu sabia que não havia mais tempo.

    Mahteal sorriu pela última vez.

    — Antes que eu vá… preciso lhe dizer algumas coisas.
    Seu olhar brilhou.

    — Seu corpo… finalmente atingirá todo o potencial que Drael imaginou.

    Um choque percorreu minhas veias.

    — E sua amiga, Pandora… — Ele sorriu. — Retirei a magia que a prendia.

    O ar pareceu ficar mais denso ao meu redor.
    Mahteal já estava desaparecendo, sua voz se tornando um eco distante.

    — Você se tornará muito, muito poderoso, Lior. Mas seus inimigos também crescerão em força. Não alcançará o poder que tive no auge… esse último trecho do caminho, você precisa trilhar sozinho.

    Mahteal fez uma pausa, seu olhar se perdeu por um instante.

    — Encontre Malena, se ela ainda estiver viva. Muitas das coisas que agora lhe passo são frutos de uma eternidade preso aqui, reflexões solitárias, conclusões às quais cheguei tarde demais. Nunca tive a chance de dividi-las com ela… talvez você tenha.

    Seu último conselho pairou no ar como uma prece.

    — Lembre-se sempre das suas prioridades.

    E então, ele se foi.

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