Índice de Capítulo

    Abri os olhos. Minha visão ainda estava embaçada, a mente um turbilhão de ecos e lembranças. O primeiro detalhe que registrei foi o calor de algo macio sob meu rosto, a respiração lenta e constante logo abaixo de mim. Então percebi que meu corpo estava debruçado sobre Pandora. Minha cabeça repousava suavemente entre seus seios, e, para minha vergonha absoluta, eu tinha até babado um pouco.

    Seus dois olhos verdes, intensos e curiosos, me encaravam de perto.

    Acordei de verdade na mesma hora, o constrangimento me atingindo como um golpe. Me ergui rápido demais, quase tropeçando nos próprios pés, e enxuguei o queixo com as costas da mão numa tentativa patética de disfarçar.

    — Que bom que acordou — murmurei, sem pensar, apenas para preencher o silêncio desconfortável.

    Pandora se ergueu também, sentando-se na beira da cama e se virando para mim. Seus olhos continuavam fixos nos meus, mas dessa vez havia algo diferente neles. Algo mais profundo.

    — Você veio me salvar, não é? — Sua voz era suave, mas carregava um peso imenso. — Lembro de tudo agora. De coisas que eu tinha me forçado a esquecer. E lembro de sentir você ao meu lado.

    Ela se inclinou para frente, lentamente, sem hesitação. Pude sentir a proximidade, o calor de seu corpo, o cheiro de sua respiração.

    Então seus lábios tocaram os meus.

    Foi um beijo calmo, hesitante, como se ela estivesse testando uma lembrança, um sentimento enterrado. Meu corpo congelou, minha mente lutando entre retribuir, recuar ou simplesmente deixar acontecer. No fim, não fiz nada disso. Apenas fiquei ali, preso naquele momento.

    Quando Pandora se afastou, seus olhos ainda estavam nos meus.

    — Obrigada por vir atrás de mim. — Seu sussurro mal rompeu o espaço entre nós. Seus lábios tinham um gosto agridoce, e aquele sabor permaneceu comigo. Então, sua expressão mudou, ganhando um toque de malícia. — Mas não pense que isso muda alguma coisa entre a gente, viu? Não pretendo entrar pra nenhum harém.

    O comentário me atingiu como um balde de água fria.

    Meu coração parou por um instante. Me lembrei de Nix. De Selune.

    E, como se um dique houvesse rompido dentro de mim, todas as lembranças vieram de uma vez. Um fluxo de informações, memórias, emoções e sensações irrompeu sem controle. A dor foi imediata, brutal. Levei as mãos à cabeça, um gemido involuntário escapando dos meus lábios.

    — Lior?! O que aconteceu?

    A voz de Pandora estava alarmada, mas eu não conseguia responder. O mundo à minha volta se tornou um borrão, os sons abafados, como se eu estivesse submerso em um oceano de pensamentos fragmentados. Meu corpo vacilou, e meus joelhos cederam.

    A última coisa que vi antes de colapsar no chão foi Pandora se lançar em minha direção, apenas para ser repelida por uma redoma de mana que surgiu ao meu redor. Seus braços foram jogados para trás, e vi suas mãos ficarem vermelhas com o impacto.

    — Vou buscar ajuda! — Sua voz tinha uma urgência crua, e então ouvi seus passos apressados saindo da enfermaria.

    O tempo perdeu o significado. Minha mente oscilava entre a lucidez e a insanidade, entre memórias e consciência presente. A dor era constante, como se algo dentro de mim estivesse se partindo e sendo reconstruído ao mesmo tempo. Por mais de dez horas fiquei preso nesse estado, indefeso contra as mudanças que se desenrolavam dentro de mim.

    Mesmo assim, Pandora ficou comigo.

    Ouvi Hass tentando convencê-la a sair dali. Claire também. Mas então, entre um lapso de consciência e outro, vi Pandora encará-lo com frieza e dizer:

    — Me lembrei de tudo.

    Seu tom não deixava espaço para discussão.

    No final, foi Claire quem percebeu a primeira mudança. Estava acabando.

    — Lior…

    Minha redoma de mana desapareceu de repente, como se jamais tivesse existido. O peso que pressionava meu corpo se dissipou.

    Quando me ergui, percebi que algo estava errado. Em algum momento, minha roupa se desfez, revelando minha nudez. Claire desviou o olhar imediatamente, suas bochechas corando, enquanto Pandora, sem hesitação, pegou um lençol e me entregou.

    Me enrolei nele rapidamente, mas minha mente já estava longe.

    Algo em mim havia mudado. Meu núcleo de mana havia se expandido de forma incompreensível, pulsando com uma força nova, mais vasta e profunda do que jamais senti. O que antes era pedra dentro de mim, um fardo rígido e estrangeiro, agora fluía como parte do meu ser, integrado de maneira tão natural que parecia ter estado ali desde sempre. O corpo estranho que carreguei por tanto tempo já não existia. Agora, eu estava completo.

    Era uma sensação ao mesmo tempo estranha e familiar, como se finalmente tivesse encontrado algo que sempre me faltou, mas que nunca soube nomear. Uma ausência que eu nunca percebi até o momento em que deixou de existir. Como se, pela primeira vez, eu estivesse verdadeiramente inteiro.

    Outra mudança que senti é que não senti meus círculos ao redor do meu núcleo. Meus círculos tinham se dissolvidos e agora brilhavam no meu oceano de mana, na forma de um sol resplandecente. Eu não saberia dizer que nível eu estava, mas sabia que estava bem mais forte que antes.

    E, pela primeira vez desde que tudo começara, não havia mais corrupção dentro de mim.

    Miasma não fazia mais parte do meu organismo.

    A percepção veio como um choque: minha conexão com Philip e Shade… havia sumido. Era como se nunca tivesse existido.

    E então, Selune.

    Uma pontada afiada atingiu meu peito, como se alguém houvesse arrancado algo vital de dentro de mim.

    O peso da ausência dela, e de Nix, esmagou meu peito de um jeito que eu não estava preparado para lidar. A dor era surda, latejante, um vazio que se espalhava pelo meu peito como uma rachadura impossível de conter. Selune… só de pensar nela, minha respiração vacilava.

    A possibilidade de tê-la perdido, pior ainda, de tê-la transformado em minha inimiga, me rasgava a alma. Meu coração pesava como chumbo, e uma angústia amarga subia pela minha garganta, sufocante. Eu não sabia o que fazer.

    Eu rezava, não sabia para quem, não sabia se adiantaria, mas rezava. Para que houvesse um jeito. Para que eu pudesse ajudá-la. Para que, de alguma forma, ela ainda estivesse ali, ainda fosse ela quando a encontrasse.

    — O que aconteceu com você? — Pandora quebrou o silêncio. — Sei que você é cheio de segredos e surpresas, mas isso… nunca vi nada assim.

    Pisquei, trazendo-me de volta ao presente. Ainda havia pessoas ao redor. Ainda havia coisas a serem feitas.

    — Depois lhe conto tudo. — Minha voz saiu rouca, mas firme. Olhei ao redor, e Pandora entendeu. Não era hora para isso.

    Respirei fundo e me virei para os outros.

    — Vamos voltar para junto dos outros.

    A cidade lá fora precisava ser verificada. O que quer que tivesse acontecido enquanto estive desacordado, precisava saber.

    E acima de tudo…

    Eu precisava ver Dante.

    Precisava retificar um erro.

    Ao me mover em direção à arena, notei o lençol enrolado ao meu redor, o tecido áspero e ligeiramente úmido contra a minha pele. A sensação me trouxe de volta à realidade — eu estava nu. Ainda assim, a necessidade básica de vestimenta me fez pigarrear, tentando afastar a sensação de estranhamento.

    — Preciso de roupas novas.

    Pandora e Claire trocaram olhares e riram. Pandora cruzou os braços e arqueou uma sobrancelha.

    — Isso é uma novidade. Achei que gostasse de desfilar por aí assim.

    — Prefiro manter um pouco de dignidade.

    — Ah, claro. Depois de babar em mim enquanto dormia, dignidade é prioridade.

    Meu rosto ficou quente. Claire soltou um riso abafado, enquanto eu apenas suspirava e resolvia ignorar o comentário.

    Quando cheguei à arena, Hass me interceptou. Seu rosto estava mais sério do que o normal, mas havia algo diferente em seu olhar, gratidão e uma espécie de alívio contido.

    — Obrigado por trazê-la de volta.

    Seu tom era grave, mas sincero.

    — Fiz isso por ela, não por você.

    Hass soltou um suspiro, mas assentiu.

    — Mesmo assim, agradeço. Se precisar de algo, pode me pedir.

    Deixei a resposta no ar. Ainda não confiava nele, mas podia usá-lo para o que estava por vir.

    Meus olhos se voltaram para Dante. Ele estava ali, parado, observando-me, mas algo estava errado. Seu olhar… Ele me via, mas não me reconhecia. Como se eu fosse um estranho.

    Meu peito apertou. Eu sabia o que estava errado com ele, e era minha culpa.

    Virei para Hass, minha expressão se fechando.

    — Sei de uma maneira de você me retribuir. Precisamos pará-la. 
     
    Ele franziu a testa. 

    — O que você quer dizer? 

    Não respondi de imediato. Meus olhos ainda estavam presos em Dante. Me aproximei de onde ele estava, então, estalei os dedos. 

    Dante gritou. 

    Ele segurou a cabeça com ambas as mãos, seu corpo se contorcendo como se estivesse sendo rasgado por dentro. Claire correu para ele, mas parou ao ver algo emergindo. 

    Aproximando minha mão de sua orelha, vi a criatura saindo. Um verme negro, viscoso, deslizou para fora, deixando um rastro oleoso e fétido. Suas mandíbulas se abriram e fecharam, como se estivesse em agonia. 

    Dante desmaiou no mesmo instante. 

    Claire olhava para ele, depois para mim, depois para o verme que se contorcia na minha mão, seu rosto pálido, a boca entreaberta, sem palavras. 

    — Ele vai ficar bem. — Minha voz soou firme, apesar da situação. — Vai voltar a ser um pau-mandado do seu tio, Claire, mas vai ficar bem. 

    Hass que me acompanhava, levou seus olhos escuros na criatura em minha palma. Eu a ergui levemente, enfatizando o que queria dizer. 

    — Precisamos pará-la. Você deve isso a Pandora. 

    Vi a compreensão tomar conta de seu rosto. O maxilar travou, e seus punhos se fecharam até os nós dos dedos ficarem brancos. 

    — Ela é perigosa. 

    Eu sei como lidar com ela.

    Hass me lançou um olhar carregado de ceticismo. Não acreditava que eu entendia completamente o que estava dizendo, ou talvez achasse que eu estava me precipitando. 

    — Não por conta de poder. Ela é ardilosa, e uma jogadora perigosa. Seus tentáculos estão onde você menos espera. — A voz dele carregava um peso que fazia a advertência parecer ainda mais iminente.

    Eu assenti, reconhecendo a gravidade das palavras dele. Mas não podia me dar ao luxo de hesitar, de recuar agora. A missão era clara, e a única opção era seguir em frente.

    — O movimento dela não conta com nosso contra-ataque — enfatizei, meu tom mais firme. — Nossa sorte é que o Imperador não está aqui. Podemos agir sem medo de ir contra o Império.

    Ele me olhou e abriu um sorriso, achando graça como se só ele soubesse o significado de uma piada.

    — Mas ela também não está aqui — ele continuou. — Está com o Imperador, nas ruínas que encontraram. 

    Ruínas? 

    Fui pego de surpresa. Eu não sabia de ruína alguma. Até então, eu achava que o afastamento das figuras mais poderosas da capital era um estratagema para atacar os jovens que ficaram para trás. Mas a situação era mais complexa do que eu julgava. 

    — Droga. — Murmurei, sentindo a frustração crescer dentro de mim enquanto minha mente começava a traçar possibilidades. — Independentemente do que ela esteja planejando, precisamos frustrar seus planos. Seja o que for, não podemos deixar que aconteça.

    Hass hesitou por um momento, depois assentiu. 

    — Por Pandora. Depois disso, não lhe devo mais nada. 

    Assenti, aceitando seu preço. 

    O jogo tinha mudado. Eu iria impedir a invasão e frustrar os planos de Annabela. Não iríamos confrontá-la, mas eu atrapalharia seus planos.

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