Capítulo 114: Primeiro vislumbre do desastre
Após nos reunirmos, partimos pela única saída desobstruída: a passagem secreta do falso bar. Um a um, atravessamos o corredor estreito e úmido, emergindo finalmente para as ruas devastadas.
O ar da madrugada ainda era frio, mas o céu começava a mudar. Os primeiros raios do sol tingiam o horizonte com tons de laranja e rosa, refletindo-se nas nuvens carregadas de fumaça negra que se erguiam de vários pontos da cidade. A mistura de podridão, sangue e fuligem impregnava o ar, tornando a simples respiração uma experiência sufocante. O silêncio era estranho, quebrado apenas pelo estalar distante de madeira queimando, o som ocasional de algo desmoronando e, ao longe, gritos isolados que se perdiam na vastidão das ruas vazias.
Marreta foi o primeiro a falar, sua voz grave cortando o silêncio.
— O bar é o lugar mais perto. Devemos começar por lá.
Ele não olhava para ninguém em particular, mas sua expressão era dura. Notava-se a preocupação com a jovem garçonete.
Assenti. Ele tinha razão. Não fazia sentido atravessar a cidade para depois voltar.
— Primeiro, o bar — confirmei, voltando-me para o grupo. — Precisamos entender como essas criaturas escolhem seus alvos. Quem elas atacaram primeiro? Onde se concentram? O que estão tentando alcançar? Quanto mais soubermos, melhor.
— Depois, minha casa — murmurou Claire, quase para si mesma.
Joaquim, que até então apenas nos observava, se manifestou em seguida:
— Depois, a minha.
Cruzei os braços, refletindo por um instante.
— Depois, minha casa, quero ver como Jorjen está — acrescentei, pensando nos vermes em seus cérebros. — E quero ir até a casa dos Vulkaris. Tenho um pressentimento de que lá é um dos principais alvos dessa invasão.
A menção aos Vulkaris fez alguns trocarem olhares, mas ninguém contestou.
— E André? — indagou Joaquim, quebrando o silêncio.
— Passaremos lá também — afirmei, minha mente voltando à imagem dos crânios em sua casa. Se aqueles eram sinais de algo mais profundo, André podia ser um alvo provável. — E, por fim, o Palácio Imperial.
Todos assentiram. O itinerário estava definido: o bar, a casa de Claire, depois a de Joaquim, seguida pela mansão de Jorjen, a casa dos Vulkaris, André e, por último, o Palácio. Mas sabíamos que isso poderia mudar a qualquer momento. Se algo chamasse nossa atenção pelo caminho, teríamos que nos adaptar.
Dei uma última olhada para o céu nascente, sentindo o peso da jornada à nossa frente. O dia prometia ser longo — e repleto de perigos.
Então, sem mais demora, partimos rumo ao bar.
A rua estava vazia, e o silêncio pesava sobre nós como uma sentença. Encontramos poucos mortos errantes no caminho até o bar. Aqueles que vieram em nossa direção foram facilmente despachados. Sem o fator surpresa e sem estarem em grande número, não representavam um verdadeiro desafio.
Minha preocupação, no entanto, não era com os errantes dispersos, mas com a possibilidade de atrair uma horda maior, ou pior, uma das criaturas mais poderosas que vagavam por aquelas ruas devastadas.
De longe, avistei a fachada do bar. A velha placa de madeira com o javali entalhado jazia caída e quebrada ao meio, um símbolo da guerra que tinha acontecido ali. As portas e janelas estavam fechadas, barricadas por dentro. No entanto, a maior ameaça estava logo à frente: uma multidão de mortos-vivos se aglomerava diante da entrada.
Os mais próximos se jogavam contra a porta, batendo seus corpos apodrecidos contra a madeira em uma tentativa irracional de derrubá-la. Outros, afastados da entrada, apenas perambulavam, como se tivessem esquecido o motivo de estarem ali.
Fiz um sinal para os outros, levando um dedo aos lábios. Eram muitos. Teríamos que pegá-los de surpresa.
Foi nesse momento que uma ideia surgiu na minha mente, era um lampejo fruto do conhecimento herdado de Mahteal. Minha mente ainda não havia assimilado completamente seu legado, mas, ao contrário dos ensinamentos que recebia do Avatar do Vazio, aquelas informações estavam ali, acessíveis, prontas para serem utilizadas. Bastava me concentrar em um problema, e a resposta emergia quase por instinto, algo que eu ainda não compreendia totalmente.
Levantei a mão e invoquei uma esfera de fogo. O calor pulsava no ar ao redor dela. Imediatamente, minha mente começou a calcular. Eu precisava de poder suficiente para eliminar todos os zumbis sem danificar o prédio. Senti minha mana fluir, respondendo ao chamado, uma quantidade colossal de energia sendo moldada à minha vontade.
As runas dançavam em minha mente, combinando-se, desfazendo-se e se reorganizando. Eu escrevia e reescrevia os selos em minha consciência, procurando a configuração perfeita para a execução do feitiço. E tudo isso acontecia de forma instintiva, como se minha mente estivesse operando em múltiplas camadas ao mesmo tempo.
Uma sensação estranha e poderosa tomou conta de mim. Era algo que nunca havia experimentado antes.
Liberei a magia.
A bola de fogo disparou em direção à horda e explodiu em um clarão incandescente. A onda de calor nos atingiu como uma rajada de vento de um forno aberto.
Os mortos-vivos queimaram instantaneamente. Suas peles ressequidas estalaram e derreteram, seus ossos se tornaram cinzas antes mesmo de atingirem o chão. Os poucos que conseguiram escapar da explosão foram rapidamente abatidos por meus companheiros.
Quando o fogo começou a se espalhar pelo chão, estalei os dedos. A chama se extinguiu no mesmo instante, como se nunca tivesse existido.
Silêncio.
Olhei ao redor. O prédio estava intacto. Nem uma única lasca de madeira queimada.
Meus companheiros me observavam. Hass, Pandora e Claire principalmente. Eles sabiam o quão complexo era aquele tipo de magia, sabiam que, em teoria, meu nível não deveria permitir algo assim.
Mas ninguém fez perguntas. Não ali.
Nem eu mesmo compreendia a profundidade da mudança que havia ocorrido dentro de mim. Quando tudo isso acabasse, eu precisaria de tempo para meditar, para entender os conhecimentos que herdara do antigo feiticeiro.
O estrondo da explosão ainda parecia ecoar nos becos próximos quando Marreta disparou até a porta do bar. Ele socou a madeira com força.
—Abram! Sou eu, Marreta! — sua voz retumbou no silêncio. — Viemos salvar vocês!
Lá dentro, ouvimos passos apressados. Depois, o ruído de ferrolhos sendo retirados.
A porta se abriu.
Do outro lado, dois olhos azuis escuros encararam Marreta, arregalados de incredulidade. Era a garçonete. Por um segundo, ela ficou paralisada. Então, sem conseguir segurar as emoções, soltou um choro angustiado e se jogou nos braços dele.
— Você veio.
A voz dela saiu embargada, trêmula, carregada de alívio e desespero.
Marreta a segurou firme, como se quisesse garantir que ela estava realmente ali, viva.
Atrás da garçonete, outras figuras começaram a emergir da penumbra do bar. Olhos cansados, rostos marcados pelo medo e pela exaustão. Sobreviventes.
Pessoas que tinham se agarrado à última centelha de esperança.
Foi então que meus olhos encontraram os dela.
Alana.
A garota menestrel que eu não esperava ver ali.
No instante em que nos reconhecemos, falamos juntos.
— Você?!
Um silêncio pesado pairou entre nós. Mas não foi o choque do reencontro que me prendeu a atenção.
Havia algo errado com ela.
Instintivamente, senti uma aura dispersa de miasma ao redor de seu corpo. Forte demais para ser apenas resquício do ambiente, mas ao mesmo tempo pequena demais para que ela fosse uma das marionetes de Annabela.
Minha atenção redobrou.
Observei-a com mais cuidado. Seu corpo parecia… inerte. Não no sentido físico, mas na energia que deveria fluir por ele. Nenhuma mana circulava por suas veias.
Isso era estranho.
Muito estranho.
O que era ela?
— O que você fez com meu alaúde, ladrão?! — disparou ela de repente, cruzando os braços e me lançando um olhar acusador.
Seu tom foi tão inesperado que precisei de um segundo para processar.
— É assim que você trata quem te salvou? Não uma, mas duas vezes? — retruquei, arqueando uma sobrancelha.
Ela fez um biquinho de desagrado, mas não respondeu de imediato.
— Cadê ele? — insistiu, estreitando os olhos.
— Está guardado. Calma.
Ela bufou, como se isso fosse um insulto.
Eu ainda a observava com atenção. Do fundo da mente surgiu uma palavra: homúnculo.
As pessoas nos cercaram, me tirando de meus pensamentos, cheias de perguntas, olhos ávidos por respostas.
— O que está acontecendo lá fora?
— Como vocês chegaram aqui?
— A cidade… está perdida?
O murmúrio foi crescendo, se transformando em uma balbúrdia preocupante.
Comecei a notar movimentos na rua. Os mortos errantes mais distantes estavam começando a se virar em nossa direção, atraídos pelo barulho.
Droga.
Levantei a mão.
— Vamos voltar para dentro.
Meus amigos concordaram, e Marreta foi o primeiro a pegar a garçonete pelo braço e puxá-la para dentro, enquanto os outros sobreviventes hesitavam, ainda confusos.
— Agora! — acrescentei, com firmeza.
A multidão hesitou, mas aos poucos começou a se mover. Pandora e Claire tomaram a dianteira, ajudando os mais lentos. Assim que todos entraram, Marreta e Hass trancaram a porta atrás de nós.
O silêncio no bar era tenso.
As pessoas olhavam para nós com uma mistura de medo e esperança.
Eu suspirei, cruzando os braços.
— Antes de tudo, quantos vocês são? E há algum ferido?
A garçonete foi a primeira a falar:
— Dezessete, contando com a gente. Dois estão feridos, ambos sem muita gravidade. Na hora da bagunça, conseguimos nos trancar aqui.
Boa notícia.
Dei um breve aceno e olhei para meus amigos. Teríamos que decidir o que fazer com eles.
Não podíamos simplesmente deixá-los para trás. Mas levá-los conosco também seria arriscado.
Olhei para Alana. Ela ainda me encarava, como se estivesse tentando decifrar algo.
E eu também.
Afinal, o que ela tinha a ver com Annabela e tudo aquilo?
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