Capítulo 120: Compartilhando Histórias
Antes mesmo de abrir os olhos, senti o calor reconfortante de uma lareira acesa. O cheiro de madeira queimada misturava-se ao aroma de comida, e o toque áspero do cobertor puído sobre meu corpo denunciava a precariedade do lugar. A dor de cabeça latejava, e meu corpo parecia feito de chumbo.
Esforcei-me para abrir os olhos e me deparei com Pandora me observando atentamente. Seus olhos verdes refletiam as chamas, e havia um sorriso aliviado em seu rosto, embora traços de preocupação ainda permanecessem. Ela segurava uma toalha molhada, provavelmente usada para abaixar minha febre.
— Bem-vindo ao mundo dos vivos. — Sua voz soou leve, mas carregava um fundo de alívio sincero.
Tentei sorrir de volta, mas só consegui soltar um grunhido rouco.
— Onde estamos? — perguntei, minha voz mais fraca do que esperava.
Olhei ao redor, tentando me situar. A casa era de pedra e alvenaria, espaçosa e sólida, embora claramente abandonada há algum tempo. Perto da lareira acesa, vi Claire, Joaquim, Marius e Alana dormindo no chão, enrolados em cobertas e tapetes improvisados como colchões. Uma panela de ferro estava pendurada sobre o fogo, e o cheiro da sopa borbulhando era forte e apetitoso, aquecendo o ambiente.
— Estamos em uma casa de uma propriedade menor — respondeu Pandora, ajeitando o cobertor sobre mim. — Parece que ninguém morava aqui há algum tempo. Com você e Alana caídos, achamos melhor encontrar abrigo. Era mais seguro do que ficar ao relento.
Assenti lentamente, tentando absorver as informações. O cansaço ainda pesava em meus ossos.
— Hass está lá fora — continuou ela —, procurando mantimentos e certificando-se de que não temos inimigos por perto.
Só então percebi que estava sem camisa, e Pandora notou meu desconforto.
— Você teve muita febre — explicou, com um sorriso de desculpas. — Transpirou tanto que a roupa ficou ensopada. Não podia te deixar assim.
— Entendi… — murmurei, sentindo o rosto esquentar de leve. — Obrigado.
— A gente tem que se cuidar, não é? — Pandora retrucou, tentando aliviar o clima. — Mas… o que aconteceu lá fora? Por que não fugimos ao ver os monstros atacando aquela praça? E aquela caveira horrenda que apareceu no final?
Antes que eu pudesse responder, percebi que os outros já estavam acordados, embora fingissem dormir. Claire disfarçava mal, mantendo os olhos semicerrados, e Marius resmungou algo inaudível. Até mesmo Alana se sentou, apertando o cobertor contra o corpo como se ele fosse sua única âncora na realidade.
Suspirei, sabendo que não havia mais como esconder a verdade. Olhei para Pandora e então para os outros, reunindo as forças que me restavam para começar a falar.
— Nossa história é muito mais antiga do que o Império conta… — comecei, medindo as palavras. — E nossa relação com a Névoa também.
Alana se ajeitou, seu olhar atento e vigilante. Percebi o quanto aquele assunto a tocava profundamente. Não era só curiosidade, havia algo mais ali.
— Há muito, muito tempo — continuei —, antes mesmo da fundação do Império, nosso mundo era diferente. Um único continente imenso, com oceanos separando terras distantes. Não havia névoa. Nenhuma barreira separando nossos reinos da escuridão.
Eles permaneciam em silêncio, atentos.
— Aconteceu que um grupo de aventureiros encontrou uma masmorra antiga e esquecida — expliquei. — Era um templo dedicado a um deus desconhecido. Quando invadiram aquele lugar, liberaram algo. Algo antigo, que não pertencia ao nosso mundo — uma força que transcende nossa compreensão. Essa coisa era a Névoa.
Pandora franziu o cenho, e Alana apertou os dedos ao redor do cobertor com tanta força que os nós de seus dedos ficaram brancos.
— A Névoa cresceu e começou a devorar tudo — prossegui. — Reinos, cidades, vilarejos… tudo foi engolido pela escuridão, enquanto os sobreviventes se agrupavam nos poucos bolsões de terra segura que restavam. Só que não entendíamos o que era a Névoa. Achávamos que fosse uma força mágica, uma maldição, e que poderia ser combatida com poder arcano.
Pandora me interrompeu, confusa:
— Mas, você disse achávamos… você não estava lá, não é?
— Não… e sim. É uma história longa, mas não é o mais importante agora.
Engoli em seco, tentando manter o foco.
— Dos aventureiros originais, só dois sobreviveram: Malena, a professora, e Mahteal, o aprendiz. Mais tarde, se tornaram amantes, amantes separados por suas convicções. Ambos lutaram contra a Névoa de todas as formas que puderam. No entanto, Mahteal tomou uma decisão desesperada, ele corrompeu seu núcleo de mana, tentando usar o poder da Névoa contra ela mesma. Foi assim que o miasma surgiu, e com ele os necros, os mortos que retornavam como abominações. Tanto Mahteal quanto os necros se tornaram criaturas permitidas pela névoa, e podiam explorar seus domínios, mas sem saber o custo disso.
Alana pareceu prender a respiração, e só então notei que Hass havia retornado, encostado no batente da porta, silencioso e atento.
— Isso dividiu os dois — continuei. — Malena não pôde perdoar a escolha de Mahteal, mas os dois continuaram estudando a Névoa, cada um ao seu modo. Descobrimos que a Névoa não é apenas uma maldição. Ela é um reino próprio, o domínio do Deus do Vazio, que deseja consumir toda vida e toda mana da existência.
— A Névoa… — murmurei — não é só uma barreira. Ela é uma ligação entre mundos, um tecido que conecta dimensões onde ela já se enraizou. Mundos já devorados, civilizações já apagadas.
Marius ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada, só ouvia.
— Mahteal e Malena, percebendo que não podiam vencer, decidiram ganhar tempo. Uniram tudo o que aprenderam ao longo de suas pesquisas, combinando mana e miasma em um equilíbrio perigoso, e gravaram runas protetoras nos corações das últimas terras humanas. Foi preciso mesclar os conhecimentos de ambos, o poder puro da mana e a essência corrompida do miasma, para criar um selo forte o suficiente para conter a Névoa.
Esses mausoléus, como o que defendemos naquela praça, são o que mantém a Névoa afastada. Não é uma vitória, mas uma trégua frágil, conquistada com sangue, sacrifício e um pacto sombrio entre forças opostas.
A tensão no ambiente era palpável. Alana estava imóvel, mas seus olhos estavam marejados, como se as palavras tivessem arrancado algo que ela guardava no fundo da alma.
— Só que o tempo passou — completei, sentindo o peso das lembranças se misturar com minha voz carregada de tristeza. — E o sacrifício deles foi esquecido. A Névoa se tornou um inimigo contido, enjaulado, um perigo que parecia remoto demais para preocupar os humanos. A luta de Malena e Mahteal se perdeu, suas pesquisas e descobertas deixadas de lado.
— Os necros sempre odiaram a Névoa, por influência de seu rei, Mahteal. Por que eles querem destruir os mausoléus aqui… isso me escapa completamente. Deve ser algum plano da Annabela. A rainha dos necros, Naksa, vive dentro dela, ela é filha da névoa.
Pandora engasgou ao ouvir aquilo. Seu rosto ficou pálido, e percebi que ela se lembrava do pesadelo que teve, da cena da anciã e da moça pálida — Naksa. Naquele momento, eu não sabia quem eram, mas a expressão de pavor em seu rosto não me passou despercebida.
Hass também ficou visivelmente desconfortável. Sabia da ligação de Annabela com o miasma e até podia pensar nela como uma feiticeira negra, mas jamais imaginara que ela fosse a própria rainha dos necros.
Fiquei em silêncio por um instante, permitindo que todos absorvessem o peso do que eu havia contado. O olhar de Pandora estava perdido, e os outros permaneciam introspectivos, digerindo cada palavra.
— Como você sabe de tudo isso? — indagou Alana, rompendo o silêncio, a voz hesitante e cheia de incredulidade. — Não está escrito em nenhum lugar, não existem registros… é impossível saber.
Os olhos dos outros brilharam com a mesma dúvida, refletindo a confusão que pairava no ambiente.
— Da mesma forma que Raksa vive em Annabela, Mahteal vive em mim — respondi, vendo a surpresa e o choque estampados nos rostos ao meu redor.
Antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa, Alana se levantou de súbito e correu em minha direção. Jogou-se contra meu peito, envolvendo-me com os braços em um abraço desesperado, e seu choro abafado fez meu coração apertar.
— Papai… — murmurou ela, com a voz quebrada pela dor.
Eu a envolvi com um braço, ainda atordoado. Não havia lembranças dela nas memórias de Mahteal. Talvez fosse melhor deixar as perguntas para depois.
O gesto dela trouxe um silêncio pesado e constrangedor, e percebi os olhares de Pandora e Claire sobre mim — um misto de surpresa e desconfiança que eu não sabia como desfazer.
— E o que fazemos agora? — perguntou Claire, quebrando o silêncio, embora seu olhar ainda me sondasse como se buscasse algum sinal de mentira.
Suspirei, sentindo o peso do cansaço se tornar insuportável novamente.
— Descansamos — respondi, exausto. — Depois, decidimos o que fazer com todas essas novas informações.
O calor da lareira continuava intenso, dançando na escuridão da casa, e por um breve momento, aquele ambiente acolhedor parecia suficiente para afastar o peso do destino que pairava sobre nós.
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