Índice de Capítulo

    Eu devia estar soltando fumaça de tanta raiva. Meu sangue fervia, e talvez por isso mesmo Hass tenha mudado de assunto ao perceber Nix e Niana atrás de mim. Ele as observou com atenção, seu olhar carregado de estranhamento.

    — Essa é minha noiva, Nix, e esta é Niana, sua irmã. Chegaram há pouco.

    O cenho dele franziu, um reflexo involuntário de surpresa. Nobres não costumavam se casar com não humanos. A notícia, pelo visto, não tinha passado despercebida pelos corredores da cidade. 

    — Você é peculiar, como ouvi dizer — comentou, avaliando-me. 

    Eu lhe lancei um olhar desafiador. 

    — Você não viu nada. 

    Antes que o clima pudesse se alongar em olhares desconfiados e julgamentos silenciosos, Niana ergueu as orelhas, alerta. Seus olhos brilharam, e ela virou a cabeça na direção de um som distante.

    Passos. 

    Múltiplos passos, compassados, coordenados. 

    Poucos segundos depois, Pandora surgiu à frente de um grupo, avançando pelo portão junto a Rosa. O Matadouro inteiro os acompanhava. Eles pareciam deslocados, quase caricatos em meio àquele cenário de guerra, com suas vestimentas extravagantes e suas personalidades teatrais, mas qualquer um que os subestimasse acabaria morto antes de terminar a risada. Eram guerreiros valentes, competentes e absolutamente letais. 

    No meio da multidão, Gérard se destacou. Ele vinha apressado, seu braço esquerdo reduzido a um coto envolto em faixas. Seus olhos estavam marejados. Atrás dele, Domina o seguia de perto, atenta. 

    Ele parou um passo à minha frente. A expressão no rosto era um misto de alívio, dor e algo mais profundo, algo que talvez ele mesmo não conseguisse nomear.

    Então, sem hesitar, ele se lançou para frente e me abraçou com força.

    — Primo! 

    De início, fui pego de surpresa, mas retribuí. O garoto nunca tivera grande apreço por mim, sempre me seguira a contragosto, mas a experiência de quase morte tinha mudado algo fundamental nele. 

    Quando me soltou, virou-se para Nix e a abraçou com a mesma intensidade. 

    — Prima! — exclamou. — Me desculpe pelos meus modos de antes. 

    Sem graça, a raposinha apenas deu alguns tapinhas em suas costas, desconfortável com a súbita demonstração de afeto. 

    Ele a soltou, respirou fundo e, ainda com os olhos brilhando de emoção, olhou para mim. 

    — Vamos levá-los à ruína, não vamos? Vamos fazer eles pagarem por tudo isso? 

    Ele não fazia ideia de quem eram os verdadeiros culpados, mas, como Hass dissera, não era a hora de revelar o que sabíamos. 

    — Sim — respondi simplesmente. — Vamos fazê-los se arrepender de terem colocado seus pés malditos em terras humanas. 

    Gérard sorriu. Virou-se para Domina e seguiu com os outros guerreiros, procurando um lugar para se instalar. 

    Pandora e Rosa permaneceram ao meu lado. 

    — Um bom lugar para nos reunirmos — comentou Rosa, observando a estrutura ao redor. — Estratégico. 

    Assenti. 

    — Você sabe o que está em jogo aqui, não? Você e Hass são os mais experientes. Quero que suba com ele, avalie a situação. Ele vai te explicar os detalhes. Precisamos saber a melhor maneira de atacar sem nos expormos demais. Não quero baixas desnecessárias do nosso lado. 

    Ela me encarou por um instante, avaliando-me com aquele olhar afiado de guerreira veterana. 

    — Você amadureceu, Lior — disse, enfim. — Vou subir com ele e ver nossa situação. 

    Sem mais delongas, lançou um olhar para Hass e seguiu para dentro da torre. 

    Pandora fez menção de sair, mas estendi a mão e a segurei pelo pulso. 

    — Espere. 

    Ela me encarou, desconfiada. 

    Então, sem rodeios, contei-lhe o que Hass tinha me revelado sobre os soldados e suas ordens. Ela ouviu em silêncio, o rosto impassível, mas seus dedos tamborilavam contra a coxa, um sinal claro de que sua mente fervilhava. Seu rosto, crispou de raiva.

    — Vai deixá-los fazer o que querem? — perguntei. — Ainda pretende ignorar o seu direito ao trono? Você é a única que pode atrapalhar os planos dela. 

    O rosto de Pandora azedou de imediato. 

    — Não quero mexer com essas coisas. 

    Ela se moveu inquieta, abrindo e fechando as mãos, os lábios se comprimindo em uma linha tensa. Abriu a boca, prestes a disparar um xingamento, mas o engoliu antes que pudesse se formar. Bufou, impaciente. 

    — Mas você tem certa razão. Preciso me vingar de alguma forma… Ela foi responsável pela morte de toda minha família. 

    Coçou a cabeça, frustrada, e pisou forte no chão, como se quisesse me acertar. 

    — Droga, Lior! Agora tenho que fazer algo a respeito, não é? Agora que me lembrei de tudo… 

    Olhei para ela, sabendo que acabara de acender um pavio que talvez fosse melhor ter deixado apagado. Pandora não era o tipo de pessoa que entrava em um jogo sem fazer barulho. O que ela estava prestes a desencadear dentro do Império poderia ser irreversível. 

    Mas, ao mesmo tempo, parte de mim mal podia esperar para ver o estrago. 

    Ela então se voltou para Nix e Niana, um sorriso imenso se abrindo em seu rosto. 

    — Estou muito feliz por ter conseguido salvar sua irmã, pequena. Minhas orações estavam com vocês. Depois que partiu e deixou esse traste sozinho… 

    Ela se abaixou ligeiramente, fazendo uma concha com as mãos ao redor da boca e cochichando no ouvido de Nix. 

    — Ele até deu em cima de mim. O safado me roubou um beijo… 

    Nix arqueou uma sobrancelha e sorriu de lado. 

    — É a cara dele mesmo. 

    — Ei! O que é isso?! — exclamei, indignado. 

    Pandora gargalhou, se afastando antes que eu pudesse retrucar.

    E, por um instante, no meio do caos e das incertezas, senti que ainda havia espaço para um pouco de leveza. Mesmo que fosse passageira. Mas a hora da batalha se aproximava, e a realidade logo se impôs novamente.

    Foi então que me lembrei: de todos que haviam partido em busca de reforços, Claire e Joaquim ainda não tinham retornado. Pior ainda, não haviam dado notícias.

    Uma pontada de preocupação me atingiu. Concentrei-me, fechando os olhos e buscando a conexão mental com Claire. Envolvi minha mente na frequência sutil da nossa ligação e enviei uma mensagem.

    “Claire, como estão as coisas aí do seu lado?”

    Silêncio.

    Tentei novamente. Nada.

    O canal mental ainda existia, o que significava que ela estava viva, mas a falta de resposta me inquietou. Algo estava errado.

    Minha mente foi até Joaquim. Se Claire não podia responder, talvez ele pudesse. Respirei fundo e enviei outra mensagem.

    “Joaquim, como estão as coisas aí? Tentei falar com Claire e não consegui…”

    Segundos se arrastaram em uma espera que pareceu infinita. Finalmente, a resposta veio, carregada de urgência e tensão.

    “Dante chegou aqui antes da gente. Contou que você usou artes proibidas nele e alterou sua mente. Disse isso aos tios de Claire. E pior, também contou que ela arriscou a vida no Matadouro. Eles entraram em pânico. Prenderam Claire num quarto selado com isolamento mágico até que um inquisidor da Igreja da Retribuição chegue para examiná-la. Querem garantir que ela não esteja corrompida. Tentaram me prender também, mas consegui escapar. Eles não acreditaram na história dos mausoléus e se recusam a ajudar. Além disso, estão entrincheirados e decidiram que, quando tudo acabar, vão te denunciar.”

    Uma onda de raiva me atravessou, seguida por uma sensação de impotência. Claro que isso tinha que acontecer agora. Como se já não tivéssemos problemas o suficiente, agora Claire estava presa por minha causa, e Dante, o desgraçado, estava espalhando veneno.

    Mas eu não podia me dar ao luxo de perder tempo remoendo isso. Não agora. Apenas mais uma coisa na lista de coisas que eram minha culpa.

    Minha mente foi direto para uma alternativa. André, do grupo dos Javalis. Precisávamos de mais aliados, e ele poderia ser um contato útil. Se Joaquim ainda estivesse livre, poderia ser meu embaixador.

    Enviei outra mensagem a ele.

    “Não há nada que possamos fazer por Claire agora, Joaquim. Saia daí enquanto pode. Volte para cá. Mas antes, passe na mansão de André. Conte tudo aos pais dele. Eles meio que me devem uma, então talvez nos ouçam. Precisamos de toda a ajuda possível. Quanto mais, melhor.”

    Demorou alguns segundos antes da resposta vir.

    “Entendido, Lior. Assim que falar com eles, volto a chamar.”

    “Vai lá. Estou esperando.”

    Abri os olhos, ainda sentindo a tensão queimando em meu peito. Minha mente trabalhava rápido, tentando encontrar soluções antes que mais problemas surgissem. Nix, que observava minha expressão desde o início, inclinou-se levemente para frente, preocupada.

    — O que houve, amor? — Sua voz era suave, mas carregada de seriedade.

    Eu exalei, passando a mão pelos cabelos antes de responder, com a mandíbula travada.

    — Claire está encrencada. Por minha causa.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota