Índice de Capítulo

    — Você… — sua voz reverberou. — Antes, eu tinha dúvidas. Agora tenho certeza.

    Ele parou no ar, flutuando diante de mim, os olhos vermelhos queimando com intensidade.

    — Não adianta mais se disfarçar — disse ele, a voz ecoando como se saísse de um túmulo —. Você está mais fraco, em outra pele, mas eu reconheceria meu Rei, Mahteal, em qualquer forma. Por que está contra os planos de nossa Rainha?

    Fiquei atordoado por um momento. O reconhecimento não era apenas uma suspeita; o lich estava convencido. Isso poderia ser perigoso, ou extremamente útil, se eu soubesse jogar com as palavras.

    — Como descobriu? — perguntei, dando peso à minha voz. — Estive preso por muito tempo. Perdido… esquecido. Mas agora, retorno. Os planos de Naksa foram contaminados. Há uma humana dividindo a carne com ela.

    Khotesys inclinou levemente a cabeça, em um gesto de reverência.

    — Descobri porque, se me permite, meu senhor, sempre fui seu admirador. Aprendi minhas primeiras magias diretamente de vossa presença, nas câmaras da Necrópole. Não sei se me recorda… Sou Khotesys.

    Sim, eu me lembrava. Um dos pupilos de Malena, ambicioso, brilhante, e se corrompeu sozinho. Como eu também, um dia. Ele tinha escolhido me seguir para dentro da névoa.

    — Me perdoe, meu rei, mas… não posso desobedecer às ordens da Rainha.

    — Mesmo que seu rei lhe dê novas ordens? — perguntei, deixando que a autoridade transparecesse, com o peso de uma coroa invisível.

    Ele hesitou. Pequeno gesto, mas suficiente para revelar sua dúvida. Pressionei.

    — Quais são, exatamente, suas ordens, Khotesys?

    — Liderar a invasão… causar mortes, semear o medo… eliminar grande parte da nova geração de nobres — respondeu com frieza. — Há alvos específicos. Além disso, destruir pelo menos um ou dois dos selos que protegem a cidade da névoa. E o mais importante: enfrentar Valis… e perder para ele.

    Franzi o cenho.

    — A maioria desses objetivos já foi alcançada. Mas não posso permitir que Valis receba os louros por sua derrota. Isso contraria completamente meus planos.

    — Senhor… não sei como conciliar ordens tão divergentes. A da Rainha e a do Rei têm o mesmo peso para nós.

    — E quanto ao custo em vidas? Acha isso aceitável? Humanos e Necros se destroem mutuamente, enquanto o verdadeiro inimigo, o Vazio, se fortalece. Vocês sabem disso. Os Necros e os humanos são importantes para mim.

    Khotesys bateu seu maxilar, como uma risada macabra.

    — Com todo respeito, meu rei, as baixas são apenas do lado humano. Os Colossos, as aberrações, as sombras… todos construtos gerados pela Rainha. Apenas eu, aqui, sou um Necro verdadeiro. E mesmo que me destruam, minha filactéria está segura em Retsus. Eu voltarei.

    — Pois eu lhe proíbo de perder para Valis — declarei, com firmeza. — Na verdade, preciso que o machuque pra valer, o deixe marcado e aleijado. Isso é uma ordem direta do seu rei. Os desígnios de Naksa foram cumpridos em grande parte. Deixe a ira dela comigo. Enquanto isso, vamos entreter nossos espectadores. Ordene que o combate no flanco seja suavizado. Não quero mais perdas entre os meus aliados.

    Khotesys hesitou, mas enfim assentiu com respeito.

    — Será feito, meu senhor.

    Lancei um olhar ao campo de batalha. Como esperado, a intensidade no flanco começava a diminuir. A ausência de pressão permitia que os meus guerreiros e gladiadores se reagrupassem. Minha proteção mágica inicial ainda se sustentava sobre eles, garantindo-lhes uma vantagem.

    Mas o centro, onde estavam os homens do Império… o centro era outra história.

    Ali, a luta era desesperadora. Os humanos resistiam por puro instinto, desorganizados, prestes a ruir. Até que Valis e seu grupo surgiram como uma lança luminosa em meio à escuridão. Tomaram a dianteira do combate com precisão e brutalidade. Lutavam como um só corpo, como se partilhassem da mesma mente. Valis e Elizabeth, especialmente, moviam-se em perfeita sincronia, aço, mana e decisão.

    No céu, Khotesys e eu encenávamos nossa batalha.

    Trocávamos feitiços e rajadas de energia, relâmpagos que explodiam em luz e cor, ziguezagueando entre nossos corpos. Raios de mana azul e vermelho se chocavam acima do campo de guerra, fazendo os olhares se voltarem para nós. Era isso que eu queria. Que vissem. Que soubessem.

    Khotesys era uma presença aterradora. Sua força, inegável. E se eu o enfrentava, e resistia, isso diria muito sobre mim. Minha reputação floresceria ali, naquela dança aérea.

    Enquanto isso, o jogo político avançava. Os necros, os humanos… todos eram peças.

    E eu, enfim, começava a ser um jogador.

    Minha raiva queimava como brasa viva, alimentada por frustração e impotência. O desejo de destruir Khotesys e varrer os Necros do campo de batalha era quase incontrolável. Mas ele, como tantos outros, apenas obedecia ordens. Os verdadeiros culpados dessa tragédia eram o Imperador Juliani e Annabela. Fria e meticulosamente, sacrificavam uma cidade inteira, homens, mulheres, crianças, por um plano doentio de poder e domínio. Aqueles dois, sim, eram imperdoáveis. Seus instrumentos, Valis e Elizabeth, por mais reluzentes que parecessem, também teriam sua hora. Eles pagariam. Por cada morte, por cada lágrima derramada, por cada pedaço de inocência arrancado à força deste mundo. Essa era minha promessa.

    Me voltei para Khotesys, que pairava diante de mim, a muitos metros do solo, aguardando minhas instruções como um servo leal.

    — Chegou a hora. Acerte-me com tudo o que tiver. Faça parecer real, dramático. Quero que seja um espetáculo — disse. — Esperarei até você atingir Valis. Quando ele estiver vulnerável, eu entrarei em cena… e te destruirei. Entendeu?

    Khotesys assentiu com reverência.

    — Sua vontade é minha ordem, Vossa Alteza.

    — E mais uma coisa… Naksa não pode saber da minha volta. Não ainda.

    Ele ergueu as mãos ossudas, e nelas começou a condensar uma esfera de miasma negro, pulsante, como se absorvesse a própria luz ao redor. A energia corrompida ganhava forma e peso, zunindo como mil lamentos em uníssono. Então ele a lançou contra mim com um grito de guerra gutural. A esfera cortou o ar, deixando um rastro de sombras em seu caminho.

    Levantei uma barreira de mana cristalizada, apenas para colapsá-la no momento certo. A explosão foi violenta, dirigida para cima, para criar um clarão espetacular, mas sem machucar ninguém ao redor. O impacto me arremessou para trás como uma folha ao vento. Usei o momento para formar uma segunda barreira, transparente, e suavizar a queda. Ainda assim, atingi o solo com força suficiente para criar uma cratera, levantando terra e detritos em todas as direções. Me mantive imóvel, como se desacordado.

    Através da poeira que ainda pairava no ar, vi Khotesys voar com velocidade relampejante até onde Valis fazia sua ofensiva. O garoto estava com sua espada em punho, avançando entre as fileiras de mortos como se fosse o próprio herói de uma lenda. Elizabeth lhe dava suporte mágico — aumento de força, velocidade, resistência. Juntos, formavam um balé letal, de precisão quase perfeita. Quando o lich se aproximou, percebi o brilho malicioso nos olhos de ambos. Eles o aguardavam.

    Khotesys testou Valis primeiro, disparando um raio concentrado de energia profana. O garoto girou o corpo com elegância e o bloqueou com sua espada, infundida em mana. Confiante, contra-atacou com um golpe em arco, esperando que o ataque fosse decisivo. Mas o lich apenas levantou a mão e deteve a lâmina com os dedos, como se o golpe fosse nada além de uma brisa. O sorriso confiante de Valis desapareceu. Elizabeth arregalou os olhos.

    Khotesys revidou com um soco seco. O punho ossudo encontrou o rosto de Valis com força bruta. Mesmo à distância, imaginei o som horrível de ossos se partindo.

    O lich levantou a mão, agora tingida por uma luz negra ainda mais intensa. Era o fim. Elizabeth gritou, desesperada, e foi nesse momento que agi.

    Atravessando o campo em velocidade absurda, deixei para trás um rastro de mana azulada e poeira. Cheguei no instante exato em que a mão de Khotesys colidia novamente com o rosto de Valis, deixando uma marca mágica que queimava até o osso. Valis ainda respirava, mas mal.

    Elizabeth tentou avançar, mas estava paralisada, olhando em vão seu aliado ser marcado pela magia profana do lich.

    Com fúria, investi. Meu punho, envolto em camadas de mana condensada, atingiu o crânio do lich com a força de uma estrela em colapso. Ele voou como um projétil, colidindo com um dos maiores colossos em campo. O impacto foi tão violento que o lich atravessou a criatura, rasgando armadura e carne podre, saindo do outro lado. O colosso estremeceu, perdeu o equilíbrio e tombou para sempre.

    Antes que Khotesys pudesse se levantar, eu já estava sobre ele. E deixei minha raiva falar. Lancei rajadas de energia em sequência, cada uma delas abrindo crateras ao seu redor, despedaçando ossos, estilhaçando o que restava de seu corpo. Era mais do que uma luta. Era catarse. Era punição.

    Quando terminei, minha mana estava quase exaurida. Onde antes havia um lich imponente, agora restava apenas um crânio rachado em meio a uma cratera fumegante.

    O exército dos mortos, sem seu líder, hesitou. E então, como se um fio invisível tivesse sido cortado, colapsou. As criaturas tombaram, sem vontade própria, como marionetes com as cordas partidas.

    Soldados e magos me olhavam, entre o temor e o assombro. Eu, a figura que caiu dos céus e destruiu o comandante do inimigo com um só golpe.

    Me aproximei de Elizabeth. Ela chorava silenciosamente, o rosto sujo de sangue e fuligem, agora sulcado por lágrimas que limpavam a dor. Valis estava em seus braços, inconsciente, o corpo inerte como uma boneca de pano.

    Estendi a mão sobre ele e concentrei o que restava da minha energia.

    — Ele vai viver… — murmurei.

    Luz azulada envolveu o corpo de Valis. Era uma cura poderosa, suficiente para estabilizá-lo, mesmo que não o recuperasse por completo. Elizabeth me olhou com um misto de surpresa e gratidão muda.

    Sem dizer mais nada, alcei voo novamente. Meu lugar era entre meus aliados. Ainda havia muito por fazer.

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