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    Deixei o Palácio para trás, carregando mais do que honrarias, levava comigo o peso de olhos demais observando cada passo. 

    No caminho de volta à mansão, fui cumprimentado incontáveis vezes. Guardas batiam continência, nobres me acenavam com a cabeça, civis sorriam ou cochichavam. Era estranho. O anonimato, que antes fora meu escudo, agora era só uma memória. Fiz uma nota mental de que dali em diante, cada gesto em público precisaria ser calculado. Não poderia mais errar como antes.
     
    Alana caminhava ao meu lado, quieta, pensativa, os olhos voltados ao chão.
     
    — Papai… por que se revelou pra aquela mulher odiosa?
     
    A pergunta me pegou no meio de meus próprios pensamentos. Hesitei. A verdade era que eu nem sabia ao certo. Uma parte de mim queria confrontá-la, queria que ela soubesse que alguém estava à altura dela. Outra parte… talvez só estivesse cansado de se esconder. Cocei a cabeça, tentando organizar as ideias.

    — Sabe que sou Lior, não Mahteal, né? — Brinquei.
     
    Ela sorriu, mas seus olhos estavam sérios.

    — Não me importo. Recebeu tudo dele. A memória, conhecimentos, a força… é o mais perto que posso chegar dele. E você é uma boa pessoa — salientou.

    Se agarrou ao meu braço com força, como se aquele momento pudesse escorregar entre os dedos.
     
    — Pra aquela mulher, jamais voltarei — completou, com uma leve risada amarga.
     
    Limpei a garganta, tomando fôlego para a resposta verdadeira.
     
    — Me revelei por dois motivos. Primeiro, eu não sei como Esther e Naksa dividem o corpo de Annabela. Até agora, tudo pareceu girar em torno dos planos da Esther. Se eu forçar uma rachadura, pode ser útil. Mesmo que perca o elemento surpresa. Imagine ambas lutando internamente.
     
    Chutei uma pedrinha da estrada, observando seu ricochetear no caminho de pedra.
     
    — E o segundo motivo… — continuei — é porque queria que ela soubesse. Que alguém sabe. Que alguém está vendo. Estou cansado dessa sensação de estar sempre um passo atrás. Quero que saibam que há consequências. Mesmo que, por enquanto, elas ainda estejam só no horizonte.
     
    Alana não respondeu. Apenas andou mais perto, silenciosa.
     
    — E tem mais. Não sei até onde vai o envolvimento do Imperador. Por enquanto, só vejo Annabela puxando as cordas. Mas se pressionarmos, se deixarmos que o medo cresça nos bastidores, eles vão se mexer. E quando fizerem isso, com certeza, deixarão mais pontas soltas.

    Suspirei.

    — e não quero repetir meu erro. Na invasão todos estavam despreparados porque retive toda informação comigo, pretendo contar pra minha mãe. E, talvez… pra Lenora também.

    — Não gosto dela, dessa Lenora. Ela quer usar você também. Cuidado, papai.

    — Eu sei… — murmurei, exausto. — Quando achei que finalmente estaria livre das intrigas, percebi que só fui jogado no centro do tabuleiro.
     
    E eu estava frustrado. A verdade era essa. Tinha a mente de Mahteal, seus segredos, mas não seu poder. Não ainda, precisava ampliar meu núcleo. Estava muito mais forte que antes, sem dúvida. Mas ainda estava dentro das regras. Ainda tinha que jogar o jogo deles. E mais do que isso, eu tinha pessoas a proteger.
     
    A mansão surgiu diante de nós, imponente, mas acolhedora. Claire e Nix já tinham transferido nossas coisas para a residência principal. Como novo chefe da Casa, não fazia mais sentido ficar escondido numa das alas auxiliares. Claire se mudara para o quarto ao lado do meu. Discrição e proximidade, equilibradas como tudo que ela fazia.
     
    Assim que entrei, o cheiro de casa me atingiu, madeira polida, tecidos limpos, flores recém-colhidas. Mas o que realmente me atingiu foi a exaustão. O corpo carregava os resquícios do combate, da tensão. E o espírito… bom, esse já não sabia mais o que carregava. O fardo de tudo que viria pela frente ainda pulsava em mim, como uma ferida recém-aberta.
     
    Fui recebido por Nix, Claire, Niana e Alana. Cercado por elas, senti por um momento que o mundo inteiro poderia parar ali. Mas não era assim que as coisas funcionavam.
     
    — O que aconteceu no Palácio, depois que saímos? — Nix perguntou.
     
    — Vou tomar um banho e depois conto. E não vou esconder nada. Estamos em família agora. Quero a opinião de vocês nos próximos passos.
     
    Todas assentiram. Até Niana. Havia algo reconfortante em ver aquele pequeno gesto dela.
     
    Depois de um banho quente e merecido, desci à sala de estar. Reuni todas. Me certifiquei de que não havia ouvidos indesejados por perto. E então, contei. Tudo. Desde o começo. As peças que cada uma conhecia se uniram como um quebra-cabeça. Era hora de todas estarem na mesma página.
     
    E então, revelei meus planos:
     
    — Pretendo investigar o templo descoberto. Talvez haja algo lá que me ajude a recuperar Selune. Também quero atrapalhar os planos de Annabela e Juliani. Se Pandora quiser, vou apoiá-la. Eles têm que pagar por tudo. E quero treinar Claire. Ajudá-la a evoluir seu núcleo, e juntos, estabelecer novas diretrizes para o ensino de magia.
     
    — Ou seja, se enfiar ainda mais nas intrigas do Império — brincou Alana, com um sorrisinho.
     
    — Pois é…
     
    Me virei para Claire, mais sério.
     
    — O que acha de compartilhar o que sabemos com Lenora?
     
    Ela cruzou os braços, pensativa.
     
    — Honestamente? Não sei. Sem provas, seriam apenas palavras. Poderia se virar contra você.
     
    — Tenho os registros da venda de escravos. E Pandora. A história do que aconteceu com a família dela. Temos a estranha coincidência de Valis e Elizabeth saberem o ritual para enfraquecer os necros.
     
    — Mesmo assim, ainda é frágil. Tudo parece… fantasioso demais. Eu precisaria sondar Lenora. Ver se ela nutre alguma antipatia por Annabela. Muitos no Império não gostam dela, mas se for o contrário… E sobre Valis e Elizabeth, você precisaria revelar que Alana também é um homúnculo. O que acha que aconteceria?
     
    Assenti, compreendendo, não seria nada bom.
     
    — Use a desculpa do nosso casamento. Tente se aproximar. Veja o que pode descobrir.
     
    Ela assentiu, sem hesitar.
     
    — E quanto ao templo — continuei —, com essa história de Círculo Interno, talvez consiga ser designado pra ajudar lá. Se não, encontrarei outro caminho.
     
    As garotas me observavam em silêncio. Nenhuma me chamou de louco. Nenhuma tentou me dissuadir. A confiança silenciosa que emanava delas me deu algo raro: paz.
     
    Ali, naquela sala, cercado por elas, eu soube — não estava mais sozinho. E isso… isso fazia toda a diferença.
     
    Me levantei e encarei cada uma.
     
    — Quanto ao meu poder — concluí, o tom mais sério — vou precisar de pedras de mana. Muitas. E preciso meditar todos os dias, por algumas horas. Não dá mais pra postergar.
     
    Claire franziu o cenho, cobrindo a boca com a ponta dos dedos, num gesto inconsciente de dúvida.
     
    — Mas… ninguém sabe como transferir mana diretamente de pedras pro núcleo. Isso é considerado impossível.
     
    — Não é impossível — retruquei, com calma. — Só foi esquecido. Ou melhor, deliberadamente apagado. 
     
    Todas ficaram em silêncio, absorvendo aquilo.
     
    — Pretendo modificar seu núcleo o suficiente para que consiga absorver mana diretamente das pedras — falei, voltando-me para Claire. — E não só o seu. Pretendo que todas vocês evoluam seus núcleos. Juntas.
     
    Nix arqueou uma sobrancelha, surpresa. Alana arregalou os olhos, mas sorriu, como se achasse empolgante. Niana pareceu confusa, mas prestava atenção em cada palavra.
     
    — Quanto mais fortes vocês se tornarem, mais difícil será usarem vocês contra mim. E eu me recuso a ver qualquer uma de vocês virar peão nas mãos deles.
     
    Deixei a última frase no ar por um momento.
     
    — Os treinos começam amanhã.
     
    — Você vai virar nosso mestre severo agora? — Nix provocou, tentando aliviar a tensão.
     
    — Sim. Sem folga. Sem reclamação. E se quiserem me vencer numa luta, essa é a hora de tentar.
     
    — Isso soa quase como um desafio… — Claire murmurou, os olhos acesos de interesse.
     
    — É. E é. — sorri.
     
    Amanhã, o mundo ainda estaria quebrado. Os inimigos ainda estariam tramando. Mas hoje, por uma noite, nós tínhamos esperança. Um plano. E um ao outro.
     
    E talvez… isso fosse o suficiente para começar a virar o jogo.

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