Capítulo 214 - Manual da Má Realeza
O navio negro cortava os mares com a lentidão de quem sabe de sua elevada posição. No entanto, não voava, não por enquanto, pois Ana aproveitava a solidão temporária das águas turvas como se fosse um artigo de luxo. Ela não era fã de pausas do tipo, mas também não era burra. Sabia que o tempo livre entre os problemas era tão importante quanto o tempo dentro dos próprios problemas, e muitas vezes mais raro.
Os mascarados, os quais ocupavam menos da metade dos cem quartos disponíveis, andavam pelo convés com a resignação de figurantes bem treinados. Aqueles que estavam ali pareciam entender que o momento não era de fazer barulho. Os poucos sons que vinham dos corredores metálicos — passos abafados, cordas sendo ajustadas, um assovio ocasional — pareciam ter sido aceitos pelo navio, como parte do próprio casco.
Até o porão estava calado. Os prisioneiros, três dúzias ou pouco mais, haviam parado de protestar dias atrás. No início, havia gritos — sempre há. Depois, vieram as ameaças, depois os apelos. Em seguida, as promessas vazias de que tudo aquilo tinha um motivo. Por fim, apenas o som da digestão tentando se lembrar como funcionava.
Depois de alguns turnos de silêncio, fome e incerteza, fizeram o que quase todo mundo faz no mar: desistiram com dignidade. Ou algo próximo disso. Porque gritar só faz sentido quando alguém escuta. E ninguém mais escutava. Nem mesmo o navio.
Alguns deles, agora, sentados contra barris secos e cordas esquecidas, se arrependiam de não estarem com seus brincos. Eram coisas pequenas, às vezes de prata, às vezes de ouro, ou de qualquer coisa que parecesse valiosa o suficiente para convencer um coveiro bêbado a cavar um buraco raso numa terra que não perguntava de onde você veio.
Era um costume antigo. Alguns diziam que era superstição; outros, um lembrete constante de que o mar não faz devoluções. Mas, de qualquer forma, carregavam um peso quase sagrado entre marinheiros: a ideia de que, se morressem longe de casa — o que era sempre a aposta segura —, ao menos teriam como pagar por um enterro decente.
Serviam como seguro. Como testamento. Como desculpa.
Ignorando tais convidados, na proa, onde o vento batia com honestidade e o céu não disfarçava nada, Ana e Niala dividiam uma garrafa de rum morno. O tipo de bebida que não melhora com o tempo, mas que ainda assim parecia melhor do que conversar sóbrias.
— Um brinde à maldita liberdade — comentou a rainha de múltiplos braços, após virar um gole que provavelmente seria proibido em dez países e dois planetas.
O líquido escorregou garganta abaixo com a delicadeza de uma navalha pouco afiada. Ana torceu o rosto em resposta — não ao comentário, mas à coragem da criatura. Não respondeu de imediato. Deixou o comentário flutuar entre elas como o gosto da bebida — agressivo no início, mas inútil depois do terceiro gole.
— Isso aí parece gasolina vencida. E não da boa.
— E tem gasolina “da boa”?
— Até que tem…
A capitã se ajeitou e pegou a garrafa com certa cerimônia, como se fosse um artefato sagrado de uma religião inventada ali mesmo, nascida do tédio, sustentada por sarcasmo e um senso de propósito que nunca chegou a existir. A doutrina era simples: ninguém sabia o que estava fazendo, mas pelo menos estavam fazendo bêbados.
— Se queima, serve. — Niala estalou a língua e recostou os seis ombros como se pudesse afundar no próprio sarcasmo. — Às vezes eu fico pensando… será que estamos no inferno?
— De onde veio isso?
— De tudo — murmurou, apontando para o além com um gesto largo dos braços.
Ana se apoiou na amurada, dando mais um pequeno gole.
— Nah. Não é o inferno. Tem muita brisa e pouca punição. Tirando sua companhia, claro.
— Isso foi xenofobia. Já disse que minha presença é um presente genético.
— Um erro de cálculo da evolução.
— Uma dádiva. — Niala se virou bruscamente, quase tropeçando na própria perna. — Você devia se sentir honrada por dividir espaço com uma majestade aracnídea.
— Já dividi espaço com cadáveres que cheiravam melhor.
A antiga rainha franziu o cenho, pronta para retrucar, mas parou. Cheirou-se e franziu o nariz com pressa. Fedia, mas dada a dificuldade de manter-se limpa no Sol caribenho, era compreensível. Ambas riram, não porque a piada era boa, mas porque o álcool deixa tudo meio ridículo mesmo. E pelo motivo de que rir era mais fácil do que conversar com seriedade.
Quando o silêncio ameaçou voltar, brindaram mais uma vez — um último gole, canecas imaginárias, um “tim-tim” encenado que terminou com os punhos se chocando desajeitados. A garrafa já dava sinais de fim, e o céu parecia começar a tombar de leve. Culpa do álcool. Ou do mundo. Difícil dizer.
Foi então que uma das longas pernas de Niala se esticou sem qualquer pudor e tomou novamente a garrafa da mão de Ana com sutileza preguiçosa. Ana a deixou levar. Sabia reconhecer quando estava lidando com uma bêbada mais decidida do que ela.
— Ladra.
Mas Niala, virando o líquido em sua boca, já não ouviu. Com um leve ronco, caiu de bruços, largada como uma oferenda à deusa da ressaca.
Ana, agora realmente sozinha, suspirou.
O mar cansava. Não de forma ativa, mas como cansa uma conversa longa demais, ou um pensamento que gira em círculos. Ele era constante, e essa constância desgastava. Aquele vai e vem de água salgada, sempre lá, sempre azul demais ou cinza demais ou qualquer cor que o céu decidisse vomitar, era um lembrete de que a vida era basicamente isso: flutuar, esperar, e fingir que direção é o mesmo que destino.
Apoiou os braços na grade fria do barco. O metal não oferecia conforto, mas pelo menos não tentava fingir que era aconchegante. Era direto. Honesto. Duro. Ela respeitava isso.
À sua esquerda, a rainha inseto roncava em tons cada vez mais variados — uma sinfonia involuntária de chiados, estalos e um zumbido grave que lembrava um motor antigo tentando pegar. Era difícil acreditar que aquela criatura já havia sido o centro nervoso de Myrmeceum. Com sua mente expandida sobre milhares de corrompidos, não precisava dar ordens: bastava querer. Eles sentiam. Reagiam. Obedeciam. Um organismo coletivo, denso e interligado, onde Niala era mais que um comando — era instinto encarnado. Cérebro. Deusa. Certeza.
Já Ana… bem. Ana não tinha sido uma rainha real. Tinha título, é verdade. Tinha seguidores, muros, até uma bandeira. Mas não era o tipo de realeza que crescia junto com o povo. Foi mais como alguém que esbarrou no trono enquanto tropeçava num campo de refugiados e decidiu que, já que estava ali, podia muito bem fazer alguma coisa. E fez. Algumas coisas boas. Outras que preferia esquecer. E outras que já tinha esquecido por pura necessidade.
Hoje, olhando de fora, se arrependia da leviandade com que lidou com aquilo tudo. Não porque achava que podia ter feito melhor — mas porque tinha começado achando que nada daquilo importava. Tratou Insídia como um projeto pessoal temporário, um experimento onde testava limites em vez de construir um lar. Brincava de reinar como quem brinca com uma faca muito afiada: a empunhava com firmeza, mas sempre com a sensação de que ia cortar algo que não devia.
Aqueles mascarados que a seguiam, aquele povo despedaçado por dentro… eles mereciam mais. Claro, talvez até tenham sido felizes, mesmo que por engano. Talvez tenham encontrado algum consolo naquela falsa ordem improvisada, naquela muralha de ferro, pedra e madeira. Talvez o medo de Ana tenha funcionado como proteção. Ou talvez não. Talvez tenham se apegado a ela do mesmo modo que um marinheiro se apega ao casco: porque não tem opção melhor no meio da tempestade.
— Ei. — A voz veio baixa, de um ser que ainda não decidira se estava sonhando ou só com preguiça de abrir os olhos. — Se continuar pensando desse jeito, vai acabar se afogando antes de abrirmos a próxima garrafa.
Ana olhou de relance. Niala mantinha os olhos fechados, mas, em certo nível, estava desperta.
— Só tô revisando minhas falhas como governante.
— E vai fazer isso até quando? Vai publicar uma coletânea?
— Talvez. “Cem formas de governar mal sem ser deposta”.
— Você só não foi deposta porque ninguém queria o trabalho.
— E você só foi aceita porque mandava matar quem discordava.
— Ordem por extinção é um modelo eficaz.
Ana sorriu, sem pressa.
A brisa continuava. O mar, indiferente. E ali, entre duas ex-rainhas, havia um espaço estranho onde o arrependimento não virava confissão e a culpa era, de alguma forma, compartilhada.
Elas não tinham sido boas líderes, mas tinham sido líderes. E, de alguma forma, isso ainda as colocava à frente de muita gente. Ou atrás. Dependendo do ponto de vista.
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Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…
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