Capítulo 161: Um truque sujo
Acordei naquela manhã sentindo o peso do dia que se aproximava. Desci devagar para tomar o desjejum, sem fazer barulho. Nix ainda dormia profundamente, os cabelos espalhados pelo travesseiro, a expressão serena. Deixei que ela descansasse, provavelmente sonhando com algo mais leve do que a realidade que nos aguardava.
A casa estava silenciosa, envolta naquela calma quase solene que só existe nas primeiras horas do dia. Ouvi o som sutil de uma xícara batendo contra o pires, vindo da sala de refeições. Quando entrei no cômodo, encontrei Claire já acordada, sentada à mesa. Usava uma túnica preta de mago, bem ajustada ao corpo, com os cabelos presos em um coque firme e disciplinado. A xícara em sua mão tremia levemente, apesar da expressão determinada no rosto.
— Bom dia — murmurei, me aproximando e tocando de leve seu ombro antes de inclinar-me para lhe dar um beijo na testa. — Dormiu bem? Está ansiosa?
Ela pousou a xícara sobre o pires, soltou um suspiro pesado e, ao me encarar, a máscara de firmeza se desfez. Os olhos se encheram de lágrimas, e ela começou a chorar silenciosamente.
— Estou com tanto medo, meu amor — confessou em voz baixa, quase um sussurro. — E se eu fracassar? E se ela for melhor do que eu?
Abracei-a com força, envolvendo-a completamente.
— Ei… calma. Respirar é o primeiro passo. Chorar agora não vai mudar nada, e você sabe disso. Está nervosa, eu entendo, mas Zia não tem como te superar. Você treinou como nunca. E lembra que agora você tem um sol de mana dentro de si. É poder de sobra pra lidar com uma guerreira de… o quê? Quarto círculo? Isso é fichinha pra você. — Fiz uma pausa e sorri. — Lembra quando enterrou o Karlom na arena? Vai ser pior ainda com ela.
Ela riu entre as lágrimas, limpando os olhos com a manga.
— É porque você não viu o que eu fiz com o Marreta ontem… — disse, debochada. — O brutamontes me perseguiu pela arena inteira, gritando. E no fim, caiu sozinho, esgotado, sem mana nem força pra ficar de pé.
Rimos juntos. A imagem do meio-orc — um gigante do quinto círculo, orgulhoso e musculoso — desabando no chão enquanto Claire o derrubava com truques e agilidade era digna de ser lembrada.
— Agora, Pandora… — ela continuou, respirando fundo — ela me derrotou todas as vezes. Impressionante como ela se move, como antecipa tudo.
— Nem eu ganhei dela — falei, erguendo as mãos em rendição. — Mas foi antes, né? E agora ela também tem um sol de mana. Deve estar mais rápida, mais forte, mais letal. Uma treinadora perfeita pra você nesse momento.
Nesse instante, Pandora entrou na sala, com passos decididos, seguida de perto por Nix, que ainda bocejava.
— Dia. — cumprimentaram as duas ao mesmo tempo.
Nix foi direto até Claire, envolvendo-a em um abraço apertado.
— Preparada?
Claire respirou fundo e forçou um sorriso.
— Tanto quanto posso estar…
Terminamos de comer em silêncio, o clima levemente tenso, mas com uma energia estranhamente reconfortante. Logo nos aprontamos e partimos em direção à arena da universidade. Seria lá que o embate aconteceria. A lembrança do meu próprio duelo com Roderick passou pela minha mente como um relâmpago. Só podia torcer para que o desfecho fosse tão satisfatório quanto aquele havia sido.
À medida que nos aproximávamos, Claire ficava visivelmente mais nervosa. Os ombros estavam rígidos, e os olhos inquietos. Pandora percebeu.
— Não deixe que ela ganhe de você antes mesmo da luta começar — disse, sua voz firme como aço. — Use o medo ao seu favor. Ele te mantém atenta, te mantém viva. Mas não deixe que ele mande em você.
Diferente do meu duelo, que atraiu multidões, a arena agora estava praticamente vazia. Alguns curiosos ocupavam os primeiros bancos, mas o ambiente era sóbrio, quase cerimonial. Vi rostos familiares: a garota das tranças azuis, Milena, Elizabeth, Valis… e algumas das garotas que tinham apostado em Zia. Seus olhares curiosos iam de Claire a mim, analisando, julgando.
Nos posicionamos no lado reservado para os desafiados. Na arquibancada, avistei Cassiopeia, que acenei discretamente para que se aproximasse. Também estavam ali Lenora, alguns anciãos e os pais de Zia, com expressões fechadas.
Cass chegou, cumprimentou a todos com naturalidade e logo entrou no círculo de conversas com as garotas, tentando animar Claire. Mas era visível: ela estava cada vez mais pálida, quase esverdeada.
E então Zia entrou na arena.
Claire olhou na direção dela… e desabou. Correu até um canto e vomitou tudo o que tinha comido no café da manhã.
Dois serviçais se apressaram para limpar o chão. Uma delas se aproximou com um odre.
— Água, milady?
Claire assentiu, ainda pálida. Pegou o odre, limpou a boca com um lenço, depois deu um gole generoso, tentando recuperar o controle.
Na arena, Lenora e Carlos, o ancião da Casa Aníbal, tomaram seus lugares no centro. Sinal para que as duas participantes se aproximassem. Estava na hora das regras serem anunciadas. Estava na hora da luta começar.
Claire respirou fundo. Olhou para mim brevemente. Seus olhos estavam arregalados, mas havia algo lá dentro. Algo além do medo. Algo que crescia.
— Bem, é isso… — murmurou ela, antes de caminhar até o centro da arena.
De onde eu estava, eu mal piscava.
A tensão no ar era densa, insuportável. Claire e Zia se encaravam no centro da arena como se o mundo todo se resumisse àquele momento. Claire estava séria, centrada, mas seus dedos tremiam levemente. Zia, ao contrário, sorria com desprezo. O tipo de sorriso que alguém exibe antes de esmagar um inseto.
Lenora deu o sinal.
Zia avançou de imediato, um salto poderoso, espada levantada, como um raio de carne e osso. Claire ergueu o braço, rápida, e um escudo translúcido apareceu diante dela. O impacto da lâmina contra a barreira mágica reverberou na arena. Claire deslizou para trás alguns metros, a sola das botas levantando poeira.
— Começou… — murmurei.
Antes que Zia atacasse de novo, Claire ergueu a mão e disparou uma série de mísseis mágicos. Três deles atingiram Zia no flanco, fazendo a guerreira cambalear, mas ela não parou. Usava mana para reforçar o corpo, e seus movimentos ficavam mais rápidos, mais pesados.
Claire recuava, guiando a luta com inteligência. Criava pilares de pedra como cobertura, congelava partes do chão para atrapalhar a movimentação da prima, invocava espinhos do solo para forçar Zia a mudar de direção.
A cada passo, a diferença entre elas ficava mais clara.
Claire estava em outro patamar. Seus feitiços fluíam com precisão, as reservas de mana pareciam inesgotáveis. Um míssil certeiro quebrou parte da ombreira de Zia, que rosnou, girou a espada e lançou uma onda de mana concentrada. Claire se protegeu com outra barreira, mas foi arremessada de lado.
Ela se levantou, os olhos faiscando.
— Isso é por anos de humilhação! — gritou, conjurando uma sequência de espinhos que se ergueram sob os pés de Zia.
Zia berrou de dor ao ser atingida, mas em seguida envolveu o corpo em uma aura de mana violácea, dissipando os espinhos com pura força bruta. Avançou, golpeando. Claire recuou, desviando com agilidade surpreendente. Invocou uma armadilha elemental, e uma rajada de vento atirou Zia longe, como um boneco de palha.
— Claire está acabando com ela… — ouvi Nix murmurar, atrás de mim.
Claire caminhava na direção da prima, agora ferida e ofegante.
— É assim que se sente, Zia? Ser esmagada por alguém que você achava ser inútil?
Outro míssil. Outro ataque de área. Zia tentava resistir, mas Claire não deixava espaço. Ela jogava com o terreno, com o alcance, com o tempo. Cada feitiço era cirúrgico, cada armadilha, cruel. Claire podia ter vencido ali mesmo. Mas resolveu aplicar uma lição na prima arrogante.
Ela queria que Zia sentisse. O peso dos anos sendo tratada como uma mera decoração. Alguém que nunca tinha merecido o destaque.
E então, algo muito estranho aconteceu.
Claire tropeçou. Um feitiço escapou dos dedos, malformado. A cor da sua aura oscilou. Senti a energia dentro do seu sol de mana vacilando.
— Claire…? — sussurrei.
Ela piscou, confusa. Tentou conjurar de novo. Outro tropeço. O rosto dela estava pálido, o suor escorrendo, os olhos desfocados.
Zia não perdeu tempo.
Avançou com um rugido, a espada banhada em mana. A lâmina passou pela defesa de Claire e atingiu o ombro dela com força. Claire gritou, cambaleou, caiu de joelhos. O público prendeu a respiração.
Claire tentou se erguer. Outro feitiço. E de novo… falhou.
Zia chutou a barriga dela, fazendo-a rolar pela areia. Claire tossia, tentando respirar. Parecia algum veneno com a habilidade de interromper mana, e ele estava dominando o corpo de Claire. O golpe final viria logo.
Foi aí que gritei:
— Claire! O sol! Concentre-se no seu sol de mana!
Ela ergueu os olhos, ofuscados. Mas ouviu.
Claire fechou os olhos. E ali, no meio do caos, respirou fundo.
A mudança foi imediata. Uma aura dourada envolveu seu corpo como o nascer de um novo dia. Não era mais a mana contida em círculos. Era o sol em seu interior, ardendo como uma segunda alma.
Zia hesitou. Claire se levantou.
Com um gesto, selou a arena em uma cúpula de energia. Os espectadores ficaram mudos.
Claire deslizou no ar, um feitiço novo nas mãos. Luz condensada. Quando Zia atacou, Claire se moveu como um raio e invocou uma lança de mana pura que atravessou o campo.
A lâmina de Zia rachou. A armadura se partiu.
Claire levantou as mãos. Uma sequência de mísseis surgiu ao redor dela como pétalas em uma flor mágica.
— Isso é pelo que você fez comigo esses anos todos, e pelo que tentou tirar de mim…
Os mísseis dispararam todos ao mesmo tempo. Zia foi jogada para trás, caindo de costas, inconsciente.
Claire ficou de pé por um instante, vitoriosa.
Depois, desabou.
Corri antes mesmo dela cair no chão.
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