Índice de Capítulo

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    — Preparem os canhões!

    A voz de Ana cortou o convés como uma pedra arremessada num lago de aço. Mascarados se moveram de imediato — alguns com precisão militar, outros com a graça de quem havia aprendido na prática que hesitação custa mais caro que erro. As armas pendiam das cinturas, firmes, antigas, não tão funcionais em suas mãos, mas ainda intimidantes o suficiente. O tipo de coisa que dava certo desde que o usuário estivesse mais determinado que o inimigo.

    No horizonte, três navios. Pequenos, esguios, velas já ajustadas ao vento com uma perfeição quase… metódica. Sloops, Ana reconheceu. Casco raso, rápidos em curva, baixos o suficiente para navegar por recifes ou canais apertados, mas frágeis demais para suportar um bombardeio prolongado. Eram embarcações de ataque, de escaramuça. Bons para assaltar mercantes ou escapar com o que conseguissem agarrar. Não eram, definitivamente, navios de guerra. E, especialmente, não eram páreos para o Collectio — pelo menos não sem um ataque surpresa.

    Ainda assim, algo na aproximação deles incomodava. A velocidade era contida, como se soubessem exatamente até onde podiam se exibir sem virar alvo. E a sincronia… bem, navios assim não se mexiam com aquele sincronismo a menos que tivessem ensaiado. Mas não havia sinais de tripulação nos conveses. Nenhum grito, nenhuma sombra em movimento. Apenas três figuras solitárias postadas no leme — todas no mesmo navio — como estátuas eretas sob o sol.

    Ana entrecerrou os olhos, surpresa. O boato se mostrou real. O impulso inicial foi recuar — preparar-se melhor, avaliar com mais calma. Mas a hesitação durou pouco. Como tudo nela ultimamente.

    — Acha que realmente veremos fantasmas naqueles navios? — perguntou Niala atrás dela em uma voz preguiçosa.

    Um sorriso torto nasceu no rosto de Ana, e balançou a cabeça em uma negativa leve. Ela não era cética. Ou talvez fosse, mas de um jeito específico, afinal, não tinha conhecimento amplo o suficiente para garantir que tais seres não existissem neste estranho mundo.

    Não viu com seus próprios olhos mortos se levantarem e voltarem a lutar ao seu lado? Então, tecnicamente, “fantasmas” não pareciam um salto tão grande, mas ainda eram mais um conceito do que algo tangível, e sua mente confusa pela falta de mana se recusava a se curvar perante tais ideias.

    A curiosidade, claro, também era parcialmente responsável por não recuar perante a ousadia estranha. Se fossem fantasmas, será que gritariam ao serem rasgados? Se não sangrassem, poderiam afundar? Se não morressem, ao menos perderiam a graça?

    Ela precisava saber.

    — Baixem o ritmo — ordenou, já voltando ao timão com a mão pesada. — Diminuam as velas. Quero ver até onde vão antes de nos tocar.

    A estrutura do Collectio gemeu levemente em resposta, como quem também queria entender o que estava por vir. Os mascarados obedeceram em silêncio. Então Ana se virou, já firme em seu lugar, e passou o comando como quem passa a faca afiada.

    — Niala — disse, virando apenas o suficiente para vê-la no canto do olho. — Agora tá na sua mão.

    A mulher aracnídea ergueu os olhos devagar. E sorriu como quem acaba de acordar de um sonho estranho para descobrir que o pesadelo é mais interessante.

    Com um gesto de concordância vagamente teatral, Niala pousou uma de suas pernas alongadas sobre o volante. Não era necessário, claro. O Collectio não precisava de toques simbólicos para se mover. Nem os piratas de Ana. Se quisesse, nem a própria Ana. Mas ainda o fez. A proa seguiu cortando as ondas como uma afirmação. Uma marcha absurda contra navios absurdos.

    Ana, por sua vez,  se abaixou com certa negligência para recuperar sua arma negra, encostada como um pedaço esquecido de passado no chão do convés. Já fazia um bom tempo que não a usava, não viu a necessidade. Talvez não fosse necessário agora também. Duas pistolas rúnicas presas ao coldre completavam o quadro. Ornamentais demais para o momento, mas ainda imponentes. Mesmo com a mana escassa, intimidavam — o suficiente para dar a primeira impressão certa, ou a última errada.

    Respirou fundo. Não pela necessidade de oxigênio, mas por protocolo emocional. Estava prestes a colidir com três navios fantasmas que se moviam como bailarinos endiabrados, e aquele parecia um bom momento para reorganizar os pensamentos.

     Estimava que o impacto aconteceria em menos de um minuto, e esperava ter sorte. Um bom avanço seria suficiente para partir o primeiro em dois. A primeira leva de disparos talvez afundasse o segundo, e, caso contrário, talvez a segunda funcionasse. Não tinha munição para uma terceira, mas quem precisava de pólvora quando se carregava um navio que comia mana como uma viúva faminta e músculos impregnados de energia reversa?

    Não reclamaria de lutar um pouco. Talvez até se ferir de leve não fosse tão ruim, o ardor dos machucados e o gosto do próprio sangue lhe fizeram falta nas últimas semanas. Era uma ideia confortável.

    “Talvez sobre tempo para conhecer o famoso mercado depois.”

    Uma reflexão válida, visto a facilidade com que encontraram seu objetivo, mas que durou somente até ser rasgado pelo primeiro espasmo cardíaco.

    O órgão, antes disciplinado, começou a bater fora do compasso — um tambor ensandecido, ensaiando fuga. Era uma dor estranha, aguda, localizada demais para ser ignorada, mas ampla demais para ser diagnosticada. Parecia que algo dentro dela queria sair. Não escapar. Sair.

    Houve um momento. Um espaço curto entre dois pensamentos. E naquele intervalo, Ana sentiu algo que não esperava: felicidade. Irracional, quase infantil. Mas logo depois veio tristeza. Depois culpa. E então todas juntas, atropelando-se numa sucessão confusa e abrupta que fez seus olhos lacrimejarem antes que ela se desse conta. Ela chorava. E não sabia por quê.

    Apoiou-se na espada como se ela fosse uma bengala para o emocional. O corpo ameaçou ceder. Não cedeu. Ainda assim, os joelhos fraquejaram. Então ela os socou. Com força. Um punho cerrado contra os próprios ossos, só para lembrar quem estava no comando. Sentiria a dor mais tarde. Agora, precisava de lucidez.

    Ergueu-se. Devagar. Como quem retoma o papel depois de sair de cena. Respirou fundo de novo, dessa vez como um ritual de volta à realidade.

    E então olhou.

    — Porra…

    A palavra escapou como se carregasse a tarefa ingrata de traduzir o inexplicável.

    Como não havia visto antes?

    Diante dela, envolvendo os três navios com a mesma naturalidade de algas num naufrágio, uma massa negra se movia. Fios. Centenas — talvez milhares — de linhas finas, negras, vivas. Como vermes. Como nervos. Como algo que jamais deveria ter existido.
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    Ficaremos sem imagens por um tempo, mas logo volto a postar!

    Estou meio sem tempo e não estão saindo resultados bons…

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