Capítulo 169: A torre (5)
Descemos no centro da sala do trono, ainda sob o impacto do tremor de pouco. A rainha, sentada, mantinha uma expressão controlada, mas suas feições endurecidas revelavam a dor que tentava ocultar.
Era uma figura imponente. Esguia, de orelhas pontudas, cabelos negros que reluziam como obsidiana. Sua pele era clara, quase translúcida, e sua idade parecia indecifrável, velha como o mundo ou jovem como o amanhecer. Mas havia nobreza em cada gesto, em cada linha do rosto.
A guerreira que me escoltara pousou um joelho no chão, reverente.
— Minha rainha.
— Levante-se, minha filha. — A voz da rainha era firme, musical. — Esse é o intruso? Por que não o eliminou?
— Ele disse que é amigo do mestre Lockmead. Que veio salvá-lo. Aparentemente… não tem nada a ver com o ataque.
Os olhos da rainha me desnudaram, senti que ela queria desvendar meus segredos.
— Aproxime-se, forasteiro. Explique essa história. Rápido, por favor. Cada minuto nos esgota. Este reino… pode não sobreviver.
Dei um passo à frente. Me concentrei, canalizando minha mana. O sol de mana brilhou forte em meu próprio núcleo, pulsando com intensidade. Mentalmente, segui o fluxo até o núcleo de Lock, estabelecendo um elo. Minha mana era diferente da dele, mais densa, mais quente, mas quando inundou o ambiente, a rainha sentiu. Fechou os olhos, respirou fundo, e permitiu que minha energia entrasse no palácio.
As paredes brilharam, como se respirassem. O cristal vivo absorveu minha mana e estabilizou-se. A vibração cessou. O tremor se acalmou. Pelo menos por enquanto.
Mas eu sentia. Estava quase no limite. O que quer que estivesse drenando Lock, drenava também tudo à sua volta. A fome de mana era absurda.
— Obrigada, estranho — disse a rainha, agora mais serena. — Mas, por favor, nos conte porque está aqui.
Contei tudo. Desde a exploração da torre antiga, o cristal esverdeado, a consciência mágica que sugou Lock. Expliquei como entrei através dele, como fui parar no seu núcleo, e me deparei com essa cidade viva dentro de seu oceano de mana.
Ela me ouviu com atenção, sem interromper, apenas acenando levemente com a cabeça em momentos-chave.
— Lock… sempre deixa a curiosidade e a cobiça irem à frente da segurança. — Sua voz soava triste, como quem repete uma lição conhecida. — Mas a segurança dele é a nossa também. Nossas representações vivem nele. Se ele cair, caímos todos.
Fez uma breve pausa, então se apresentou:
— Sou Titania, rainha das fadas.
— Lior — respondi, com um leve aceno de cabeça.
Ela se virou para as guardas.
— Mina, vá com ele. Auxilie-o no que for preciso.
— Mas mãe… — protestou a guerreira, a mesma que havia tentado me cortar ao meio minutos antes.
— Faça o que eu digo — cortou Titania, com um tom que não permitia réplica. — Lior já nos ajudou. É nossa obrigação ajudá-lo também. Ajudá-lo é salvar este reino.
Mina fechou a boca, visivelmente contrariada.
— Claro, minha rainha — respondeu.
Titania se voltou para mim.
— Por favor, Lior. Faça o que precisa ser feito. Mina te guiará. Tens liberdade para ir onde quiser em meu reino.
— Obrigado. Precisamos partir imediatamente. Vou seguir o fio de mana de Lock. Quanto antes resolvermos isso, melhor.
As guerreiras assentiram, e Titania apenas fechou os olhos como em prece silenciosa.
Ergui voo novamente, saindo pelo vitral por onde tinha entrado. Mina veio atrás, silenciosa. Seu rosto fechado.
Subi acima da cidade. O céu era límpido, o sol de mana ainda brilhava alto, lançando reflexos dourados nas construções. Me concentrei, vasculhando o espaço mágico à minha volta, até que finalmente o encontrei, um fio sutil, quase invisível, de mana que ligava Lock ao que restava de sua essência.
Olhei para Mina.
— Achei. Vamos?
Ela assentiu em silêncio.
Voamos juntos. A cidade logo ficou para trás, com suas casas e ruas, suas praças e postes de luz mágica. Abaixo, o oceano de mana se estendia em todas as direções, uma imensidão líquida e vibrante, refletindo o brilho do sol interior. A cidade de Lock se erguia sobre uma pilastra colossal que brotava das águas. Era como se estivesse suspensa no meio do nada.
Sobrevoamos o oceano por um tempo que pareceu longo demais. Ansiedade distorce o tempo. Mina cerrava os dentes, cada vez mais tensa.
A luz foi diminuindo conforme avançávamos. As cores do céu se apagaram gradualmente, até restar apenas a penumbra.
— Estamos saindo do oceano de Lock… — murmurou Mina, hesitante. — Não posso continuar.
Estendi minha mão.
— Vai poder, se estiver ancorada a mim.
Ela hesitou, mas então estendeu a mão. Quando nossos dedos se tocaram, senti a ligação se formar. Um fio novo entrelaçando nossos núcleos.
— Não solta minha mão, tá bom? — falei, apertando com firmeza. — Vamos entrar no fluxo de Lock. Pode ser desorientador.
Ela apenas assentiu, os olhos determinados.
E mergulhamos.
Fomos puxados por um túnel escuro, em alta velocidade. Pontos de luz passavam ao nosso redor como estrelas cadentes. A escuridão se tornava cada vez mais tingida de vermelho. O ar parecia vibrar, carregado de tensão mágica.
— Se prepare. Estamos chegando.
O puxão cessou de repente.
Uma explosão de luz vermelha nos engoliu.
Estávamos em uma sala circular. O chão era liso como vidro. E ali, no centro, um colosso rubro se erguia, um gigante de energia pura, com mais de cinco metros, sem rosto ou forma definida. Apenas força bruta. Apenas fúria.
Lock corria em círculos ao redor da criatura. As vestes em farrapos, o rosto suado, as pernas falhando. Cada passo mais lento. Cada esquiva por um fio. O colosso avançava com golpes pesados, cada um sugando mana com o impacto.
Ao nos ver, Lock abriu um sorriso torto, desbotado.
— Me ajudem… tô no fim. Cada ataque dele me suga mais…
Mina já puxava a espada.
Fechei os olhos. Senti a mana correr pelas veias.
Mina avançou num giro veloz, e a lâmina brilhou num traço dourado ao atingir o flanco do gigante. Um corte limpo, que pareceu passar por névoa densa. A criatura estremeceu, mas não recuou. Virou-se para ela com um rugido mudo, sem boca, sem olhos, apenas a massa vermelha vibrando com raiva.
Aproveitei a brecha. Ativei meu sol de mana. Concentrei tudo nas mãos, formando lanças e as disparei, uma a uma, mirando as junções nos ombros. As explosões foram certeiras. O colosso oscilou, a forma vacilando por segundos. Magia parecia surtir mais efeito que aço.
Com nossos ataques, ele tirou o foco de Lock, que cambaleou. Corri até ele, enquanto Mina mantinha a atenção da criatura. Segurei-o pelo braço, apoiando-o.
— Respira. Tô aqui.
Ele assentiu, arfando. A pele dele já quase não brilhava. Estava se apagando.
— É uma manifestação de contenção… — murmurou. — Criada pra proteger e impedir a fuga da consciência. Se me pega, me drena até o fim.
Um grito abafado de Mina. O colosso atacou com um braço em forma de chicote e a lançou contra a parede. Ela caiu, mas rolou no chão e já se erguia, cambaleando, espada firme nas mãos.
— Ela não vai aguentar muito mais… — murmurei. — Temos que agir logo.
Algo chamou minha atenção no centro da criatura. Um brilho, era pequeno, vivo. Como uma miniatura do próprio colosso, escondida ali dentro.
— Lock… como derrotamos isso?
— É um sistema de defesa… só para quando é destruído ou quando o núcleo se apaga. Mas não vai apagar sozinho, tá cheio com a minha energia. É consciente, e está com medo.
O colosso rugiu outra vez, e um pulso de energia varreu a sala. O chão rachou. Fui jogado longe. Bati com força. Senti o gosto do sangue na boca.
Mina correu pela lateral, tentando distrair. Saltava, girava, atacava. Fazia pequenos cortes. Mas era como sangrar um oceano com a ponta de uma agulha.
Me levantei, trincando os dentes. Lock caiu de joelhos.
— Temos que esgotar toda a energia dele, mas ele absorveu muita da minha… — ofegou. — A outra opção seria isolar o núcleo… mas não sei como.
— Eu vou tentar. Do jeito difícil.
Concentrei minha mana num ponto só. Doeu como se uma garra me puxasse por dentro. Mas era isso ou morrer ali.
Corri. Num impulso, saltei sobre o colosso. Ele me viu, levantou seu braço. Mina gritou, para me alertar.
Toquei o peito da criatura. O golpe veio ao mesmo tempo. Fui lançado para trás, o mundo girando. Mas minha mana ficou, fincada no ponto onde acertei, começou a se espalhar.
E então, tudo parou.
Minha mana invadia o interior do colosso. Mas eu não deixava que ela fosse absorvida. Trincava os dentes, firme. A mana rodeou a pequena forma no centro. Me forcei a cortar a conexão entre ela e o gigante.
O vermelho oscilou. Como tinta diluída na água. Manchas douradas surgiram. A forma tremeu. Vibrou. Gritou sem som. E explodiu.
Um clarão. Depois, o silêncio.
Quando abri os olhos, estávamos de volta ao oceano de mana de Lock. Em cima de um espigão de pedra. Ele estava de pé, quase inteiro. A forma dele mais sólida. O brilho voltando.
Mina tossia, sentada. Lock a amparava.
E ali, perto da borda, flutuava um ponto verde, pulsando.
Me aproximei, devagar.
Era pequeno. Do tamanho da palma da mão. Uma criatura feita de luz, encolhida em posição fetal. Membros curtos. Sem rosto. Mas viva. Respirava num ritmo calmo.
Estava em hibernação. Como se, agora que o perigo passara, finalmente pudesse descansar.
— Esse… é o núcleo? — Mina perguntou, com a voz rouca.
— É. — Lock se aproximou, devagar. — A consciência artificial que estava presa naquele fragmento. Um pedaço de magia viva. Estava assustada… se defendendo como podia.
— E agora?
— Agora… ela é min… nossa.
Ele estendeu a mão, envolveu a criatura com sua mana. E ela desapareceu dentro dele.
Ficamos em silêncio por um tempo. Apenas respirando.
Então Mina, impaciente, quebrou o momento:
— Vamos voltar pro palácio?
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