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    Achamos a escada que levava ao próximo andar, embora “achar” fosse um termo generoso. A torre mais parecia um labirinto do que qualquer estrutura lógica. Era como se o espaço ali dentro estivesse em guerra com a própria forma, corredores se curvavam sutilmente, portas levavam a locais que não deveriam existir, e a noção de direção parecia escorrer entre os dedos sempre que tentávamos organizar os mapas mentais do caminho.

    Depois de algum tempo caminhando, chegamos a um grande hall. O teto, alto e em arcos, ainda conservava parte da imponência de outrora, mas era claro que havia tido algum problema ali. Havia corredores por todos os lados, como artérias de um corpo desmembrado, conduzindo a salas de aula, antigos laboratórios, estufas quebradas, dormitórios e espaços de convivência que mais pareciam agora cenários de uma catástrofe congelada no tempo.

    Tudo ali carregava um misto estranho de abandono e violência.

    Marcas de sangue seco, tão velho que se confundia com ferrugem, salpicavam chão e paredes. Livros estavam espalhados como se tivessem sido largados às pressas, alguns com páginas rasgadas, outros molhados e já carcomidos por umidade e tempo. Roupas escolares em farrapos, mantas infantis, utensílios mágicos quebrados, móveis caídos, pratos ainda com restos petrificados de comida.

    Havia salas que pareciam ter sido barricadas por dentro, com móveis empilhados contra as portas. Outras, pelo contrário, estavam escancaradas, com as portas arrebentadas como se algo as tivesse estourado de fora para dentro.

    Mas o mais estranho, o mais inquietante, era a ausência completa de corpos.

    — O que será que aconteceu aqui? — perguntou Lock, a voz baixa, quase como se não quisesse perturbar o ambiente.

    Eu não sabia. Mas mesmo assim, respondi.

    — Não tenho certeza… mas deve haver rastros. Evidências. Histórias partidas que podem nos mostrar o que ocorreu. Não vai ser difícil montar o quebra-cabeça. Difícil vai ser querer ver o quadro inteiro quando ele estiver pronto.

    Lock assentiu, sua expressão se fechando num misto de ansiedade e foco. A curiosidade dele, sempre faminta, agora parecia faminta e em guarda.

    Começamos a vasculhar sala por sala. As paredes contavam fragmentos. Uma inscrição numa lousa, um desenho infantil feito com giz mágico, um feitiço incompleto escrito à pressa. Em alguns lugares, conseguimos reunir pedaços mais nítidos. Uma página de diário amassada. Um aviso de evacuação não finalizado. Riscos no chão formando símbolos de proteção. Pelo que conseguimos entender, os estudantes e professores estavam em seus afazeres cotidianos quando a ameaça chegou.

    Do segundo ao quinto pavimento, a situação era praticamente a mesma. Aquela região devia ter sido o coração da torre: onde os alunos estudavam, viviam, treinavam, riam, comiam, brigavam, sonhavam. Agora era uma casca queimada, um reflexo triste de um cotidiano interrompido.

    Lock ainda colhia o que podia. Alguns instrumentos mágicos chamavam sua atenção, mesmo quebrados. Ele os examinava com olhos quase paternos, como se estivessem feridos. Depois de rápidos testes, os guardava na bolsa encantada com o cuidado de quem recolhe relíquias de um templo esquecido.

    Foi num dormitório modesto, dividido por quatro beliches, que encontrei um pequeno diário de capa azul. Ele estava aberto, caído entre uma prateleira tombada e uma mala rasgada.

    Folheei devagar. As últimas páginas estavam gastas, quase apagadas. Voltei o caderno até encontrar um trecho mais claro. O início do fim estava ali.

    20-05-2733

    “Os necros chegaram. Cercaram a torre. Dizem que querem o rei de volta. Que rei? Ninguém sabe. Nem os professores. Lady Malena disse que vai negociar. Espero que eles voltem pro buraco de onde vieram.”

    22-05-2733

    “As defesas da torre aguentam… por enquanto. Mas cada vez que uma das magias de cerco acerta as paredes, parece que o chão treme dentro do meu corpo. Sinto os ossos vibrando. Sinto medo.”

    24-05-2733

    “Os professores estão inquietos. Alguns escondem o nervosismo, outros nem tentam. Lady Malena se trancou no topo da torre. Ninguém mais fala com ela. Os necros continuam a atacar. Ouço as portas principais gemendo à noite.”

    25-05-2733 (manhã)

    “Selaram as escadas. Estamos presos no bloco escolar. Dizem que é por segurança. Alguns professores montaram acampamento conosco. Tentam manter as aulas. Fazem de conta que tudo está bem. Ninguém acredita.”

    25-05-2733 (noite)

    “Lutamos hoje. Dentro da torre. Os professores ajustaram os espelhos para nos proteger. Montaram armadilhas no sexto andar. Ouvi um grito que não parecia humano.”

    27-05-2733

    “Muitos morreram. Não sei mais quantos somos. Trancamos o andar inteiro. Esperamos. Esperamos. Ainda acreditamos que Lady Malena vai nos salvar.”

    Fechei o diário devagar. O silêncio da torre pareceu mais pesado depois daquelas palavras. Quase como se estivesse escutando, ou lembrando.

    — Alguém tentou registrar tudo até o fim — falei, sem encarar Lock.

    — Isso foi o fim — ele respondeu. — Pelo menos pra eles.

    Não soubemos o nome da garota que escreveu o diário. Mas seus registros ecoaram conosco. Seus últimos dias ainda estavam impregnados nas paredes, nas rachaduras dos corredores, nas poças de tinta seca. Aquela torre, em algum momento, foi um lar. Um abrigo. E depois, uma prisão.

    E agora, era apenas ruína.

    Mas ainda havia mais andares. E, de algum modo, a sensação de que o pior ainda não tinha sido revelado.

    Subimos as escadas em silêncio.

    O quinto andar parecia já ter deixado cicatrizes em nós dois. Não conversamos. Lock apenas ajeitou melhor a alça da bolsa no ombro, e eu mantive os olhos atentos aos degraus, como se esperar o pior me preparasse para ele.

    O sexto andar não era como os outros.

    Assim que empurramos a porta, sentimos. A atmosfera mudou. O ar ali dentro estava mais denso, como se cada partícula carregasse peso. Era como andar dentro de um sussurro abafado, ou de um santuário profanado. A luz das tochas mágicas não alcançava muito adiante, e onde alcançava, tremeluzia, como se algo invisível respirasse ao redor delas.

    — Eles prepararam armadilhas aqui — murmurei, como se repetir as palavras do diário fosse nos proteger.

    — Contra o quê? — Lock perguntou, quase sem voz. — Contra o que estavam lutando?

    — lutaram contra necros. Mas me preocupo com o que ficou perdido aqui.

    Avançamos devagar. Logo percebemos que o sexto andar não seguia a lógica dos anteriores. Corredores se repetiam. Portas levavam a si mesmas. Havia lugares onde víamos nossa própria silhueta atravessando um corredor adiante, até percebermos que não era nosso reflexo, nem nosso espelho.

    Runas antigas pulsavam nas paredes. Algumas acesas, outras falhas. De quando em quando, sentíamos um arrepio e sabíamos: havíamos passado por uma linha de proteção ainda ativa.

    Quando viramos uma esquina e saímos próximos de onde tínhamos entrado lock me olhou, sério.

    — não adianta — falou ele — estamos presos em uma armadilha de teleporte.

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