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    Debaixo do limiar da porta, a criatura surgiu em silêncio, como se estivesse esperando o momento certo para entrar em cena.

    Era alta, quase três metros, talvez mais. As pernas, embora magras, eram firmes, musculosas como as de um predador que não precisava correr, mas que, quando o fazia, não deixava escapatória. O tronco era largo, coberto por uma pele acinzentada, marcada por sulcos fundos como se tivesse sido moldado em pedra corroída. Os braços, compridos demais para qualquer simetria humana, pendiam quase até o chão, arrastando uma corrente grossa de ferro. Na ponta dela, uma esfera metálica do tamanho de uma melancia riscando o solo e emitindo aquele som arrastado e pesado.

    — Quer a boa ou a má notícia primeiro? — perguntou Lock, de algum ponto atrás de mim.

    — Tanto faz. — Dei um passo à frente, os olhos fixos na criatura. — Tira a gente daqui.

    — Bem… as notícias são sobre isso mesmo. Aparentemente, a runa que ativamos era de mão única. Não achei nenhuma outra que leve pra fora.

    A criatura começava a girar a corrente sobre a cabeça. Os olhos, pequenos e brilhantes, me fixavam com uma malícia primitiva, quase satisfeita, como se soubesse que teria o que caçar.

    A mana fluía densa dentro de mim. Meus sentidos estavam todos focados: escuta, visão, instinto. A espada de mana cristalizada tomava forma mais firme em minha mão, os traços arcanos vibrando com luz própria.

    Antes mesmo de cruzar os cinco metros que nos separavam, a esfera presa à corrente veio girando num arco preciso na minha direção. Mergulhei no chão, sentindo o deslocamento de ar passar rente ao topo da minha cabeça. Rolei para o lado, de volta à posição. Precisava encurtar a distância. Aquele alcance absurdo era a vantagem dele, e a única forma de vencê-lo era neutralizar isso.

    — E qual é a boa notícia? — perguntei, com os dentes cerrados.

    — Essa era a boa notícia… — disse Lock, com uma voz envergonhada. — A má é que… eu suponho que criaturas vão sair daquela estrutura no centro da sala até que a gente morra… ou mate todas.

    — Maravilha… — grunhi. — Lock, você é o azar em forma de gente. Faz o seguinte: procura outras runas, analisa essa construção, as portas, tudo. Eu não vou ficar esperando aparecer um monstro que a gente realmente não consegue enfrentar.

    Enquanto gritava, continuei desviando da corrente giratória, que passava cada vez mais perto. Em um momento, arranhou meu ombro de raspão, deixando uma ardência aguda. Logo em seguida, a criatura avançou com as garras. Bloqueei o ataque com a espada de mana, mas algo me incomodou: ao colidir com as unhas da criatura, minha lâmina tremeu, como se tivesse sido bloqueada por aço verdadeiro. A estrutura mágica não se desfez, mas senti a resistência do impacto.

    Algo estava errado.

    Minha mente girava com a adrenalina. A teoria era simples, talvez paranoica, mas fazia sentido. A sala… ela aprendia. Observava. A criatura anterior foi morta com uma lâmina de mana. Agora, enviava um inimigo cujas garras anulavam essa vantagem. Um teste crescente. Como um ritual de provação ou um mecanismo automático de defesa.

    — Atrai ele pro canto! — gritou Lock. — Vou analisar melhor a estrutura do centro!

    Obedeci sem responder. Comecei a provocar a criatura com cortes curtos, recuando, levando-a para a lateral da sala. Ela me seguia, sem desviar os olhos, com passos que misturavam brutalidade e precisão. Não era burra, mas também não parecia exatamente inteligente. Tinha uma missão. Um instinto. E ele dizia: me destruir.

    A cada desvio, a cada avanço falso, eu sentia o cansaço começar a pesar. Nada absurdo ainda, mas era cedo pra isso. Tínhamos acabado de começar, e se minha teoria estivesse certa, aquilo era só o segundo andar de um degrau cruel.

    Então, como se o universo quisesse confirmar meu medo, tomei um golpe de raspão da bola de ferro. Fui lançado alguns metros para trás. Bati contra o chão com força, o ar sendo arrancado dos pulmões. Demorei um segundo para me levantar, e nesse segundo percebi que, se fosse uma criatura mais rápida, eu estaria morto.

    — Achei! — gritou Lock. — Tem algo aqui… parece uma runa enterrada. Um padrão diferente. Vou ativar.

    — Esper… — tentei alertar.

    Tarde demais.

    A runa brilhou sob a sala com uma luz verde incandescente e, antes que minha boca formasse a próxima palavra, o mundo inteiro se virou do avesso. Meu estômago subiu até a garganta, a espada sumiu da minha mão por um instante, e a gravidade parecia não saber mais qual lado era o chão.

    Lock, além de curioso e azarado, era impulsivo.

    E, infelizmente, estava comigo.

    Quando o mundo parou de girar, caímos com força no chão. A umidade me atingiu primeiro, depois o cheiro, podre, mofado, como carne velha deixada em pedra fria por tempo demais. O som da corrente metálica sendo arrastada confirmou que o monstro havia vindo conosco.

    Estávamos num poço fundo. As paredes de pedra estavam cobertas por limo escuro, escorrendo água em filetes. A luz era quase nenhuma, apenas o brilho fraco de algumas algas fosforescentes grudadas em fissuras nos blocos de pedra.

    O monstro rugiu e avançou sem hesitar, como se nada houvesse mudado.

    Lutei com o que restava da minha força, estava cansado e já tinja deixado aquilo se arrastar por tempo demais, a escuridão não me impedia porque meus olhos estavam cheios de magia. A mana brilhou em minhas mãos, e invoquei uma segunda lâmina, desta vez moldada para perfurar. Combinando velocidade e precisão, atravessei a defesa da criatura e acertei o coração, ou o que quer que funcionasse como tal.

    Ela tombou com um grunhido abafado, e a corrente caiu no chão, pesada, como se todo o peso da sala se recolhesse com ela.

    Tomei fôlego, olhei para cima. A luz era escassa, mas havia uma abertura no alto do poço. Ativei a levitação, subindo com cuidado pelas bordas escorregadias levando Lock comigo Quando alcancei o topo, o que vi me fez congelar por um segundo.

    — Onde estamos…? — murmurei, surpreso.

    Estendia-se diante de mim uma fileira interminável de poços escavados no solo rochoso. Cada um deles com criaturas distintas, algumas reptilianas, outras com asas ou múltiplos membros. Alguns estavam vazios. Outros gradeados. Havia nestes criaturas voadoras, as grades impedindo sua fuga. Mais adiante, o teto era uma grade mágica, contendo tudo. Acima, um brilho suave denunciava que aquilo fazia parte de um sistema, algum tipo de instalação esquecida.

    Lock caiu no chão, resmungando.

    — Isso foi uma péssima ideia. — Limpou o rosto enlameado. — Mas… uau.

    — É a fonte das criaturas — falei, sem tirar os olhos dos poços — Um tipo de zoológico. Ou masmorra viva.

    Nosso olhar correu pelas margens da sala subterrânea. Era vasta, organizada por setores. Alguns dos poços estavam numerados com símbolos que lembravam registros arcanos. Outros tinham marcas de runas antigas apagadas pela umidade.

    Caminhamos com cuidado, atentos. Passamos por criaturas que nos ignoravam por completo, bestas gigantescas que pareciam cegas, surdas. Algumas nem se moviam, como se estivessem em estado de espera. Havia algo errado ali. Um silêncio artificial.

    Foi quando Lock apontou para o que parecia uma plataforma de controle. Um console de pedra e metal, com partes embutidas no chão. Cristais estavam conectados a ela, uns opacos, outros ainda com leve brilho.

    — Aqui. — Ele se abaixou e examinou os cristais com rapidez. — Esses são cristais de coordenação dimensional. Este… — tocou em um com feixes dourados — …é da torre. Este outro… — apontou para um cristal mais pálido, levemente trincado — …nos trouxe pra cá. Isso confirma o que eu suspeitava. Esse lugar era uma área de contenção de espécimes. E estava conectada à torre via teleporte seletivo.

    — E por que não me lembro disso? — murmurei. Havia uma dor incômoda em minha mente, como se algo quisesse emergir e não pudesse. — Isso não estava nas memórias de Mahteal.

    Lock ergueu o olhar, sério.

    — Talvez porque não fosse parte do que ele queria lembrar.

    Fiquei em silêncio. Aquilo era… um lado de Malena que eu não conhecia. Um lugar onde criaturas eram mantidas, estudadas, isoladas. Um laboratório, uma prisão. Ou ambos. E ainda estava funcionando, mesmo após a queda da torre. Os autômatos cegos, as runas ativas, o sistema de teleporte. Tudo seguia operando com uma lógica fria, ininterrupta. Como se ninguém tivesse informado a esse lugar que o tempo tinha passado.

    Lock ajustou os cristais, com cuidado.

    — Consigo nos levar de volta. Só preciso alinhar as frequências.

    Fiz guarda enquanto ele ativava o mecanismo. Não houve luz intensa, nem som ensurdecedor, apenas uma vibração estranha no chão, como se a realidade estivesse sendo redesenhada ao nosso redor.

    E então, em um segundo, o cheiro pútrido desapareceu. O poço, os monstros, as paredes escorrendo limo. Tudo se desfez.

    Estávamos de volta à torre.

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