Capítulo 181: A torre (17) fim
Antes que eu percebesse, Lock já havia trocado novamente os cristais. A imagem se transformou mais uma vez diante de nós. Eu não tinha ideia de quantos dias haviam se passado entre uma gravação e outra. Não havia qualquer menção a datas, a passagem do tempo parecia indistinta, como se a própria memória da torre estivesse tentando esquecer o que veio depois.
Malena apareceu de novo. Dessa vez, visivelmente abatida. Seu rosto estava mais pálido do que antes, os olhos cansados, como se não dormisse há dias. O cenho franzido, os lábios crispados, e os cabelos ruivos, normalmente soltos ou em tranças elaboradas, estavam presos num coque simples e apertado, deixando seu pescoço fino e vulnerável à mostra. Me peguei soltando um suspiro involuntário. Ela estava linda, ainda assim, mas havia algo nela que doía. Um tipo de beleza que vinha da exaustão e da coragem em continuar mesmo assim.
Ela se aproximou da tela como quem carrega um fardo invisível nos ombros.
— A situação com Mahteal está pior do que eu pensava — começou, a voz baixa, quase um desabafo. — Ele está alucinando com frequência. Seu cérebro foi afetado profundamente pelo miasma. Não é uma energia feita para humanos, nunca foi. Ele está quebrando por dentro.
Ela desviou o olhar por um instante, como se estivesse tentando encontrar uma explicação que ainda não existia. Depois ergueu novamente os olhos e continuou, mais firme:
— Mas consegui entender muitas coisas desde a nossa última colaboração. Ele revelou segredos… informações que à primeira vista pareciam devaneios, absurdos criados por uma mente em colapso. Mas depois, comparando com meus próprios estudos, eles começaram a fazer sentido. Coisas que… corroboram minhas teorias sobre as dimensões. A névoa não é apenas um fenômeno mágico ou climático. Ela é um espaço entre mundos. Um intervalo entre realidades. E, segundo Mahteal, ela tem um dono. Um Deus. Um ser que representa o vazio em si.
Ela passou as mãos pelos cabelos com os dois braços ao mesmo tempo, como se quisesse arrancar a tensão do couro cabeludo à força.
— Parece loucura. Mas… começo a acreditar.
O vídeo mudou. Agora estávamos dentro do observatório da torre. O teto era uma imensa abóbada de vidro, através da qual se via um céu estrelado que eu não reconhecia. Não era o céu da nossa terra. Talvez nem fosse um céu deste mundo. Sob aquela abóbada cósmica, no centro de uma rede complexa de círculos mágicos entrelaçados, Mahteal estava amarrado. Preso por cintos reforçados, com olhos fundos e a respiração pesada. Malena estava ao seu lado. Chorava em silêncio.
— Ele está dentro de mim, minha querida — murmurava Mahteal, a voz rouca como a de alguém que passou tempo demais conversando com sombras. — O avatar do Deus… habita em mim. Eu não sei mais o que fiz ou deixei de fazer. Ele se infiltra nos meus pensamentos, sabota meus atos. Desde que o miasma entrou em mim, ele veio junto. Talvez ele seja o miasma. Ou tenha nascido com ele.
Malena se ajoelhou, tocando a mão dele com uma delicadeza que parecia antiga, íntima, quase ritualística.
— Coloquei todo o meu grupo para investigar as informações que você nos trouxe, meu querido — respondeu ela com suavidade. — Eles estão verificando cada uma das suas palavras, cruzando com os registros, as fontes antigas, tudo. Enquanto isso… estou tentando descobrir uma forma de tirar ele de dentro de você. De libertar você disso. Eu prometo.
A cena se apagou e recomeçou com Malena sozinha, sentada diante do mesmo dispositivo de gravação. Estava visivelmente mais exausta. As olheiras haviam aprofundado, sua voz estava rouca. Ela ficou em silêncio por um longo momento, olhando para a tela como quem hesita entre continuar ou desligar tudo.
— Fiz e refiz os testes — disse, enfim, com a voz embargada. — Não há nenhuma entidade detectável dentro de Mahteal. Nenhuma presença que eu consiga identificar. Não há avatar, nem espírito, nem essência alheia. O que há… é uma dissociação severa. Muito severa. Ele criou um outro dentro de si, uma versão fragmentada, para lidar com o que teve que fazer como rei dos necros. A culpa, o miasma, o horror… tudo isso o partiu ao meio. E agora ele acredita, com todas as forças que lhe restam, que há um deus morando na sua alma.
Ela apoiou os cotovelos na mesa e cobriu o rosto com as mãos.
— Já tentei tudo. Magia mental não funciona. Encantamentos de purificação não têm efeito. Ele construiu isso dentro do próprio núcleo… e para desfazer isso, preciso mexer com a alma dele. Só a necromancia alcança esse nível. Só ela tem ferramentas para separar personalidades, resgatar fragmentos perdidos da consciência. Mas para isso… para isso eu vou ter que usar o miasma.
Ela se levantou num rompante e gritou para a sala vazia, batendo os punhos na mesa com força:
— Ele vai me obrigar a estudar necromancia. A usar o miasma. Essa porcaria maldita que contamina tudo que toca. Como vou fazer isso sem me perder também? Como?
Ela bufou de frustração, os olhos marejados de raiva.
— Que desgraça… que maldição absurda… por que logo eu?
A imagem se apagou, e o brilho esverdeado do cristal que iluminava a sala foi substituído por uma penumbra estranha, abafada, como se até o ar tivesse ficado mais pesado. Me peguei olhando para o nada, sem enxergar de verdade o que estava à frente. As últimas palavras de Malena ecoavam em mim com uma força que não consegui ignorar. Eram um choque, uma ruptura profunda em algo que eu sempre tomara como absoluto. Como se uma muralha antiga, feita de certezas, tivesse rachado por dentro.
— …Mas o Deus do Vazio é real — murmurou Lock, com um tom mais de espanto do que afirmação. — Ela mesma disse isso…
Ele já se movia, silencioso e automático, pronto para trocar o cristal e inserir o próximo. Outro fragmento de memória. Outra cena que talvez eu ainda não estivesse preparado para ver. Estendi o braço e segurei o dele antes que pudesse continuar. Minha mão agarrou seu pulso com firmeza.
— Tem como vermos isso fora daqui? — perguntei, tentando manter a calma na voz, mas ela vacilava. — É… coisa demais pra digerir de uma vez.
Ele virou o rosto, surpreso com a pergunta, e já se preparava para responder algo técnico, como sempre fazia.
— Até tem, mas, por que…?
— É importante pra mim — interrompi. — Preciso… respirar um pouco antes de continuar. Não posso fingir que tudo isso é só informação. Não é só conhecimento. É pessoal. Muito mais do que eu achei que seria.
Por um instante, Lock apenas me encarou, o olhar distante, como se estivesse tentando calcular a profundidade do que eu tinha dito. Em seguida, assentiu com a cabeça devagar e começou a guardar os cristais no estojo de proteção, um por um, com o cuidado de quem sabe que está mexendo com fragmentos de algo frágil e valioso.
— Tudo bem, Lior — disse com gentileza incomum na voz. — Uma máquina dessas não é difícil de construir. Posso construir uma dessas no meu laboratório.
Fez uma pausa, fechando o estojo com um clique metálico suave. Então, com a mesma naturalidade com que alguém fala sobre o tempo:
— Já juntei tudo que queria aqui. Você está pronto?
Respirei fundo. Havia uma tensão em meu peito que não parecia só física, era como se o próprio peso da revelação me impedisse de ficar de pé com leveza. Mas assenti. Eu estava pronto, ou pelo menos disposto a fingir que estava.
Deixamos o laboratório e descemos de volta pelos corredores da torre, as paredes de pedra fria e silenciosa refletindo a luz mágica das luminárias espalhadas pelos cantos. A sensação era de atravessar um sonho denso. Ou um pesadelo que ainda não mostrara sua pior parte. Nada parecia real. Tudo estava levemente deslocado, como se eu andasse num lugar feito de lembranças antigas e distorcidas.
Quando percebi, estávamos de volta à masmorra, onde aquela aventura tinja começado. Aquele lugar úmido e mal iluminado que parecia ter ficado tão distante, mesmo que só algumas horas tivessem se passado.
— Lior… — a voz de Lock me alcançou pelas costas, carregando uma dúvida simples, mas urgente. — Onde é a saída da passagem secreta por onde entramos?
Não respondi de imediato. Apenas comecei a caminhar, deixando que o corpo se movesse por instinto, guiado mais pela memória do que pela razão. Meus pés lembravam o caminho mesmo que minha mente ainda estivesse atolada no caos daquelas revelações. Cada curva da parede, cada desnível no chão de pedra, cada marca na rocha me guiava como se estivesse em transe.
Alguns minutos depois, estávamos do lado de fora. Era hora de retornar, e trazia comigo muito mais que tinha imaginado ser possível.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.