Capítulo 191: Preconceito
Estendi minha mão para Calmon e o ajudei a se levantar. Seus dedos estavam firmes, mas o aperto trazia algo mais do que força física — era o início de um reconhecimento.
— Desculpe, Lorde Lior — murmurou ele, coçando a nuca, visivelmente sem graça. — Você é pra valer… achei que estivesse apenas surfando a fama, que era mais aparência do que prática.
— Não precisa se preocupar com isso — respondi, com um meio sorriso. — Eu entendo perfeitamente. Se estivesse no seu lugar, talvez também teria minhas reservas. Não é fácil confiar só com base em histórias.
Ele me olhou por um segundo, depois assentiu, com algo mais próximo de respeito nos olhos.
— Sem ressentimentos, então? — perguntou.
— Nenhum — garanti, sincero. — Pelo contrário. Prefiro quando as dúvidas são resolvidas com clareza.
Satisfeito, Calmon se virou para o ancião Viras e declarou, com a voz erguida o suficiente para todos ouvirem:
— Não tenho mais nenhuma reserva contra Lior.
Ao lado, Lenora e Viras trocaram olhares e murmuraram, quase ao mesmo tempo:
— Esses jovens…
Havia uma pitada de exasperação ali, mas também de alívio. Eles sabiam que esse tipo de desentendimento era inevitável quando poder e orgulho se misturavam. O importante era que o obstáculo tinha sido superado.
Voltamos para o interior da casa. As tapeçarias e o perfume de flores voltaram a nos cercar. Sentamos, e então selamos o acordo. Em dez dias, eu e minha equipe partiríamos para a nova ilha. Iríamos acompanhados de um destacamento da Casa Argos. Durante a missão, a segurança e a expansão do perímetro ficariam sob minha responsabilidade direta. O grupo da Casa nos auxiliaria, principalmente com a parte estrutural e logística do assentamento.
Ficou claro que, no campo, eu teria autoridade. E isso estava escrito no papel.
Depois de tudo resolvido, me despedi um por um. Nix e Claire ainda estavam ocupadas com Sybela e mais duas criadas, todas envolvidas com tecidos, flores e amostras de decoração. Ao me verem partir, acenaram com um brilho nos olhos, visivelmente empolgadas com os preparativos do casamento.
Mas antes de sair, fui até Lenora. Ela me olhou com expectativa, como se já soubesse que algo viria.
— Pandora vai comigo — disse, de forma direta. Não dei tempo para reação. Me virei e saltei, elevando-me no ar, voando para longe antes que ela pudesse retrucar.
A brisa fria da altitude cortou meu rosto, mas serviu para limpar os pensamentos. A verdade é que eu não sabia se ela tentaria impedir Pandora de ir, mas não queria dar espaço para isso. Pandora decidia por si mesma.
Com o restante do dia pela frente e as pendências mais urgentes finalmente resolvidas, decidi que era hora de retornar ao Palácio. Havia trabalho acumulado no laboratório de Lock, e fazia tempo, tempo demais, desde minha última visita à sessão de treinos dos magos. A sensação era como se eu estivesse afastado há séculos daquela rotina, mesmo que tivessem se passado apenas alguns dias.
E, no fundo, talvez fosse justamente isso que eu precisava naquele momento: um pouco de rotina. Ou pelo menos algo que se parecesse com isso. Um fio de normalidade em meio ao caos.
Cheguei ao Palácio sem pressa, caminhando pelos corredores já familiares. Fui direto para o laboratório, mas ao abrir a porta percebi que Lock ainda estava ocupado com os engenheiros de mana do Império. A sala estava cheia de murmúrios técnicos, pranchetas, dispositivos abertos, feixes de mana pulsando no ar.
Fiz de conta que não tinha visto nada, ou ninguém. Fechei a porta com a mesma leveza com que a abrira e dei meia-volta, desviando do agito técnico e indo na direção do pátio de treinos.
Lá fora, o sol filtrava-se entre as colunas altas do pátio, lançando sombras diagonais e intermitentes sobre o chão de pedra irregular. A luz dourada dançava nas placas de pedra quente, mas o que realmente me chamou a atenção foi o som. Não era o ruído habitual de treinos coordenados ou feitiços controlados. Havia explosões. Gritos. O estrondo abafado de impactos pesados. Algo fora do padrão.
Curioso, caminhei até mais perto da área de treino, me mantendo ainda à sombra das colunas.
Estranhei a cena logo de cara. Os treinos normalmente eram organizados com clareza. Guerreiros de um lado, magos do outro. Cada grupo com seu tipo de instrução, sua postura, sua hierarquia. Mas agora estavam todos juntos, misturados, reunidos em um grande círculo. No centro da roda, um mago por vez era colocado. Os demais, guerreiros, o cercavam como predadores em torno de uma presa.
Do lado, observei o instrutor grandalhão dos guerreiros, com seus braços cruzados e um sorriso satisfeito no rosto. Estava se divertindo. Já Gus, o instrutor dos magos, parecia deslocado e envergonhado. Os olhos baixos, os ombros encolhidos. Era evidente que não concordava com o que estava acontecendo, mas também não ousava intervir.
No instante em que o instrutor bradou um comando, os guerreiros ao redor do mago avançaram de uma só vez, como uma maré de aço e músculo. O mago do centro, um rapaz franzino de cabelos cacheados, empalideceu no mesmo instante. Em vez de reagir, sequer tentou conjurar algo. Fechou-se em uma defesa apressada, quase instintiva, como um animal acuado. Em segundos foi derrubado, sua túnica de treino arrastada pela grama e suja de terra. Caiu de lado, arquejando, enquanto um filete de sangue lhe escapava do canto da boca.
As risadas dos guerreiros ecoaram pelo pátio. Para eles era uma brincadeira, um teste de força, quase um esporte. Para os magos, uma humilhação. Era evidente. Vi alguns com os olhos baixos, outros tentando não assistir, torcendo para não serem os próximos.
Aquilo não era apenas um método de treino, era um condicionamento.
Eu já havia ouvido falar desse tipo de prática. A própria Claire era prova viva disso. A família de Zia a havia condicionado desde pequena, sutilmente, ou nem tanto, minando sua autoconfiança, fazendo com que duvidasse do próprio valor. Sempre a tratavam como uma auxiliar, um reforço tático, nunca como alguém capaz de brilhar por si. Um cachorrinho fiel ao lado da guerreira prodígio, e nada mais. Era assim que queriam que ela se visse. Que ela aceitasse esse papel sem questionar.
Esse tipo de comportamento não era exceção. Era a regra.
O preconceito estava enraizado na cultura do Império. Os magos eram vistos, com frequência, não como estudiosos, sábios ou forças autônomas, mas como ferramentas vivas. Extensões mágicas do braço armado dos guerreiros. Recursos. Canais de mana para reforçar tropas. Ninguém se preocupava em entender a verdadeira natureza da magia, sua complexidade, suas ramificações filosóficas e existenciais, sua ligação com o mundo, com o espírito, com o tempo. Esse conhecimento havia se perdido em algum ponto, enterrado junto com as eras antigas.
E o pior de tudo era que os próprios magos, em muitos casos, acabavam acreditando nisso. Interiorizavam a visão do mundo que os oprimia. Carregavam a culpa, o sentimento de inadequação. Acreditavam ser menores, secundários. Tristes ecos de um passado mais grandioso.
Nada me revoltava mais do que isso.
— Isso parece ser bem divertido — falei alto, deixando minha voz cortar o som das risadas e chamar a atenção geral para mim.
Os dois instrutores se viraram quase ao mesmo tempo. O grandalhão fechou a cara, imediatamente hostil, como se eu estivesse estragando sua festa particular. Gus, por outro lado, sorriu com alívio. Seu corpo relaxou como se tivesse ganhado reforço.
— Lior! — disse Gus, com entusiasmo. — Chegou na hora certa.
Acho que, de fato, tinha chegado mesmo.
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