Capítulo 193: Mulherengo injustiçado
Quando cheguei em casa, encontrei Nix e Claire já de volta. As outras garotas também estavam reunidas, e acabamos todos sentando à mesa de jantar. Era a primeira refeição com o grupo completo desde que eu tinha retornado da torre. E, por alguma razão que eu não saberia explicar direito, isso fez aquele momento ganhar um peso especial.
A refeição em si foi agradável, mais leve do que o habitual. Nix e Claire tomaram a frente da conversa, contando detalhes animados sobre o dia que tiveram. Descreveram as escolhas para o casamento com entusiasmo: os tecidos, as flores, os pratos possíveis. Claire parecia especialmente empolgada com os detalhes cerimoniais, enquanto Nix focava nos bastidores e nos absurdos cometidos por Sybela com sua meticulosidade quase doentia.
Pandora, Alana e Niana tinham ficado em casa e passado boa parte do dia treinando. Pandora contou alguns avanços que observara nos exercícios de mana, e Alana comentou timidamente sobre as aulas. Niana, por sua vez, disse que estava ficando inquieta com a rotina, algo que eu já tinha percebido no olhar inquieto dela.
Eu compartilhei também sobre o meu dia, desde a conversa com os magos no pátio de treinos até o duelo com Lorde Calmon. As reações foram diversas, de espanto a gargalhadas, mas o clima à mesa era confortável. Familiar, até.
Foi quando Pandora, sem qualquer aviso, soltou:
— Decidi que vou com você.
Todo mundo ficou em silêncio por um segundo. Ela me olhou de forma decidida.
— Vai ser bom participar dessa missão. Se eu ficar, vou acabar remoendo tudo sobre o dia em que Lenora resolver abrir o jogo sobre quem eu sou. Só de pensar que ela vai revelar que sou filha do Arturus já me dá dor de estômago.
— Vão aonde juntos? — perguntaram Nix e Claire quase ao mesmo tempo. As duas com sorrisos amplos, desconfiados, como se soubessem exatamente o que aquilo significava, ou como poderia ser mal interpretado. Só de ver os rostinhos iluminados por aquela malícia leve, me engasguei com a água que tomava.
Enquanto eu tossia tentando recuperar a dignidade, Pandora aproveitou a deixa e, com um sorriso afiado, respondeu como quem joga óleo no fogo:
— Vamos passar vários dias juntinhos, em uma missão. Ele não contou nada para vocês?
— Relaxa, mana — cortou Niana com naturalidade, se ajeitando na cadeira — eu estarei junto. Vou ficar de olho nesse mulherengo.
— Sei… — murmurou Nix, sem nem disfarçar a ironia.
— Ei! — exclamei, levantando um pouco a voz, meio indignado — não sou mulherengo!
Foi nesse momento que algo estranho aconteceu. Todas elas, todas mesmo, incluindo Alana, que raramente se envolvia nesse tipo de troca, pararam de mastigar, de se mover ou de sorrir. Viraram-se lentamente para mim, com expressões entre o ceticismo e a acusação silenciosa.
Me encararam por um segundo eterno.
Engoli seco.
Estavam claramente formando um tribunal mudo ali, julgando minha alma. Como se cada uma delas tivesse uma lista de casos anteriores que poderiam ser usados contra mim, se quisessem.
Talvez não fosse o melhor momento para argumentar.
Depois do jantar, tomei meu banho e fui direto para o quarto. Me sentei à escrivaninha, já com uma pilha de papéis à minha frente. Precisava montar um roteiro básico para as aulas que começariam no dia seguinte. A tarefa exigia concentração, mas era difícil mantê-la. O ambiente do quarto estava especialmente acolhedor. Nix e Claire estavam sentadas na cama, conversando em voz baixa, trocando confidências entre risos contidos. Era evidente o quanto os preparativos para o casamento as tinham aproximado ainda mais. Ver aquilo me deixava sinceramente contente. Não havia ciúmes, apenas alívio e gratidão. A cumplicidade entre elas reforçava a sensação de que aquilo tudo, por mais complexo que fosse, poderia mesmo dar certo.
Eu rabiscava algumas ideias sobre estrutura mágica de defesa e condutividade de mana, tentando escolher por onde começar a formação dos alunos. Foi então que a voz de Nix me tirou do foco:
— Lior, você saiu em um encontro comigo, teve outro com Selune, e até agora não convidou a Claire pra nada. Não é justo com a pobrezinha.
Levantei os olhos devagar. A expressão dela era séria, mas havia um brilho divertido nos olhos. Ri baixinho, percebendo a armadilha.
— Sabe que você tem razão… — murmurei, apoiando a pena sobre o tinteiro. — Eu não tive nenhuma oportunidade real de ficar a sós com você, Claire. Acho que precisamos mesmo de um tempo juntos. Você é mais reservada, mais discreta… e a verdade é que estamos quase sempre os três juntos. Nunca te dei um momento só seu.
Claire já estava corando quando comecei a falar. Quando terminei a frase, parecia uma fruta madura, vermelha até as orelhas. Ela enfiou parte do rosto atrás do travesseiro de Nix, como se quisesse se esconder.
— Você aceita sair comigo amanhã à noite, Claire? — perguntei, com suavidade, tentando não deixá-la ainda mais constrangida.
A resposta veio abafada.
— Aceito…
— O quê? — brinquei, levando uma das mãos ao ouvido. — Não consegui ouvir.
— Eu aceito! — repetiu ela, a voz aguda e quase ofegante, ainda escondida.
Nix gargalhou e se levantou de um pulo. Caminhou até Claire, pegando-a pela mão e puxando-a com entusiasmo.
— Vem! Vamos escolher uma roupa pra amanhã. Você precisa estar linda. Vou te contar tudo sobre ele… segredinhos e manias. Vamos deixar esse aí com esses papéis chatos e cuidar do que importa — disse Nix, puxando Claire para fora do quarto sem me dar tempo nem de fingir protesto.
As duas sumiram pelo corredor, rindo e cochichando, e fiquei ali, sozinho no quarto, sorrindo feito um idiota. Ainda segurava a pena entre os dedos, mas já não pensava mais nas anotações espalhadas à minha frente. Nunca, em toda a minha vida, imaginei viver uma situação como essa. O tipo de harmonia que eu presenciava agora era algo que me parecia impossível na infância.
Meu pai teve várias mulheres, uma coisa comum dentro da Casa Vulkaris, mas cada uma delas vivia em uma ala separada da propriedade. Suas vidas raramente se cruzavam, e quando o faziam, geralmente resultava em tensão, disputas veladas ou até brigas diretas. Cresci dentro daquele ambiente cheio de regras, aparências e rivalidades.
As esposas de meu pai não apenas se digladiavam por influência e favores, como instigavam os filhos a fazerem o mesmo. Era uma guerra silenciosa, por vezes ruidosa, onde carinho era moeda, e a atenção dele, um prêmio a ser conquistado. Nada daquilo parecia saudável, e por muito tempo, achei que era o único modelo possível de convivência entre múltiplos vínculos.
E agora… ali estava eu, com Nix e Claire, duas mulheres que se respeitavam, se apoiavam, riam juntas, e que dividiam espaço e planos sem disputas. Era outro mundo, completamente diferente do que eu conhecia. E apesar de tudo o que vivi, de todas as cicatrizes que herdei daquela criação, aquilo me mostrava que a história podia ser escrita de outro jeito. Que a escolha era minha.
Sorri outra vez, mais calmo, e voltei a olhar para os papéis. Ainda tinha muito a ensinar, muito a proteger e muito a viver.
E pela primeira vez em muito tempo, me senti em paz.
Esperava de todo o coração que as coisas continuassem assim: leves, cúmplices, sinceras… mesmo depois de anos de casamento.
Voltei ao trabalho e finalizei os preparativos para as aulas. Estava tudo organizado, ou ao menos o suficiente para o primeiro dia. Ao me deitar, a sensação que me preenchia era de gratidão. Apesar de tudo que tinha acontecido comigo as batalhas, as perdas, as pressões e responsabilidades, eu me sentia incrivelmente sortudo.
Só havia uma sombra, uma ausência constante: Selune. Ainda estava perdida, em algum lugar, esperando por mim. Mas havia algo, uma espécie de intuição silenciosa, nascida do sonho que tive… algo me dizia que o reencontro não estava longe.
Com esse pensamento, fechei os olhos.
E adormeci.
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