Capítulo 100 - Mesa de caça
Prédio do Senado – Washington, D.C.
O salão de conferências do senado tinha uma temperatura muito baixa para o verão lá fora. A luz do fim da tarde era filtrada pelas paredes envidraçadas, tingindo o ambiente de uma tonalidade dourada, em uma espécie de vitrine na qual todos os semblantes faziam parte da exposição. O carpete, de tom escuro de vinho, era espesso e abafava os passos. A mesa oval de madeira polida refletia o brilho dos lustres acima.
Darcy fez sua entrada com postura ereta e ombros puxados para trás sob o paletó preto, que lhe caía como uma armadura. Suas madeixas estavam presas em um coque que deixava o rosto livre de distrações. Seu olhar impassível atravessava a sala. Não havia motivo para pressa. Sabia o que a esperava. Sua presença não era para debater ou colaborar. A convocação era um cerco disfarçado de cortesia institucional.
Os senadores ocupavam suas cadeiras ao redor da mesa com a mesma disposição de sempre. Com papéis nas mãos, alguns disfarçavam o tédio; os outros a observavam por um interesse que não nasceu da curiosidade, mas do prazer em ver alguém sob pressão. Sorria um deles com os lábios, não com os olhos — um homem de paletó cinza e postura curvada, certamente acostumado com a vitória por desgaste. Darcy o encarou por um segundo a mais do que o necessário somente para que ficasse claro qual era a sua percepção.
Aquele jogo era familiar ao seu olhar. Crescera cercada por pessoas de um lado que usavam o silêncio a seu favor e de outro que se escudavam na autoridade. A diferença estava no fato de que, ali, as armas recebiam os nomes de protocolo e retórica. Tudo era mais limpo, mas não menos sujo.
A mulher caminhou até a cadeira reservada ao seu lado e se sentou antes mesmo de esperar pela permissão. Apesar da tensão, suas mãos, cruzadas sobre a mesa, não tremiam. Esse era o seu papel dali em diante diante das acusações veladas, perguntas enviesadas e insinuações disfarçadas de preocupação pública. Apesar disso, uma certeza nos olhos dela fazia com que parecesse que era justamente ela quem os julgava.
O ranger das dobradiças sobrepôs-se ao zumbido constante do ar-condicionado. O presidente da comissão, um homem rechonchudo de barba bem feita por cujos olhos não transparecia o mesmo sorriso da boca, adiantou-se na cadeira. A placa de latão à sua frente era um reflexo arrogante da instituição: Senador William Rowley — Comitê de Segurança Nacional e Assuntos Internos.
— Senhora vice-líder Darcy R. LaRoux — começou ele —, agradecemos sua presença. Sabemos que sua agenda é movimentada, considerando os acontecimentos recentes.
Seu queixo permaneceu erguido, sem permitir qualquer tipo de interpretação.
— O que vocês querem saber não está na minha agenda.
Rowley sorriu e deslizou uma folha para frente.
— Sabemos que a operação em Hill City terminou com saldo de mais de 100 mortos e uma cidade inteira reduzida a cinzas. O que você pode nos dizer sobre isso… que ainda não tenha sido convenientemente omitido?
Darcy manteve os olhos fixos no homem. Não era difícil reconhecer a armadilha escondida por trás daquela pergunta que não esperava uma resposta, sua única finalidade era forçá-la a se contradizer.
— Tudo que podia ser divulgado está no relatório oficial. Se há algo que os senhores acham que não foi informado, talvez devêssemos discutir a origem desses rumores, e não a veracidade deles.
O senador ao lado, um sujeito de cabelo escuros alisado com gel e olhos castanhos, interrompeu com desdém:
— Vamos parar com os jogos. Recebemos documentos anônimos que contradizem partes do seu relatório. São registros de alguma coisa mantida viva por sua equipe. Isso soa familiar?
O salão ficou ainda quieto. Chegou a dar para ouvir o som do ar sendo segurado pelos assessores.
Darcy piscou devagar. Aquilo era novo. Revisou mentalmente a missão, o encerramento, os selos. Nenhuma menção à contenção biológica em andamento. Nenhuma criatura estava sendo mantida viva… ao menos por um.
— Se esse material de fato existe, então a questão aqui não é o que eu sabia, mas quem estava operando por fora da cadeia de comando. E quem tinha acesso privilegiado à minha missão, sem o meu conhecimento.
Ela os olhou um a um. Todos estavam atentos, com as sobrancelhas franzidas. Embora outros fingissem neutralidade, a inquietação estava estampada em seus olhos.
— Isso é uma violação gravíssima de protocolo se alguém estiver mantendo qualquer coisa viva na U.E.C. E, se aconteceu durante a minha missão sem o meu conhecimento, ou alguém dentro da agência me passou a perna, alguma pessoa aqui dentro está querendo colocar a culpa em mim.
Um dos senadores mais jovens, de terno muito bem alinhado para alguém que claramente tentava se provar, inclinou-se sobre o microfone. Seu tom de voz fino trazia um sarcasmo mal disfarçado:
— Vice-líder, a senhora está, em essência, alegando que sua equipe foi infiltrada ou manipulada. Isso, francamente, beira a negligência institucional. A U.E.C. não é uma casa de fraternidade. O Congresso liberou milhões de dólares em orçamento justamente para evitar brechas como essa.
Com o olhar atento neste, Darcy fez um leve movimento com a cabeça. Todas as suas palavras eram como anzóis, num mar de tubarões no qual ela sabia nadar.
— Com todo respeito, senador Kessler, o Congresso liberou milhões de dólares para conter ameaças que o senhor não quer admitir que existem. O que estamos fazendo lá fora não é guerra por contrato, e mesmo com orçamento, armas e gente treinada, nem sempre dá pra prever quando uma sombra resolve atravessar a porta dos fundos.
William deslizou o dedo pela tela do tablet que tinha à sua frente.
— Darcy, há um trecho nesse vazamento que nos chamou atenção. Uma entrada de áudio de 16 segundos. Fala sobre um ente em transição sendo mantido em observação. Quer dizer… se isso for real, então alguém da sua equipe, ou da sua cúpula, sabia, sim.
Sem uma resposta à altura, ela fechou os olhos por um instante. Ao abri-los novamente, suas palavras já estavam escolhidas.
— Se essa gravação for autêntica, então eu também quero saber quem estava monitorando essa transição, e com que autorização. Porque não saiu da minha mesa, nem do Arthur.
— Tem como provar isso? — insistiu Kessler.
— Tem uma cadeia de comando, e nenhuma delas é subalterna. Só há duas possibilidades: ou alguém vazou aquilo para plantar evidências, o que é muito improvável, ou a pessoa tem poder demais para ser investigada. Em qualquer dos casos, a pergunta que devemos fazer não é se eu falhei. Precisamos nos perguntar se a agência inteira já foi comprometida por dentro.
Um assessor mais ao fundo engoliu seco, fazendo a cadeira ranger. A senadora Booth, do Missouri, apoiou as mãos sobre a mesa.
— É difícil acreditar que alguém com sua patente e experiência não soubesse da existência de uma possível anomalia viva sob custódia. A senhora tem autonomia tática, assina autorizações de campo, passa por três breves salas de segurança antes de qualquer mobilização, e agora, depois de uma missão com mortos e um relatório impreciso, aparece aqui e diz não era comigo?
A sabotagem interna era disfarçada de incompetência, e não era a primeira vez que isso acontecia. Depois de respirar fundo, Darcy permitiu que o silêncio pairasse por um segundo.
— Autonomia certamente não é sinônimo de onisciência. As decisões que faço são baseadas nas informações que me são fornecidas. Operar fora dos canais formais não é autonomia, são conspirações.
Kessler entrelaçou os dedos, forçando um sorriso tenso.
— Então agora é teoria conspiratória? De novo essa narrativa?
— Chame como quiser. A última vez que alguém descartou uma narrativa dessas, o Capitólio foi invadido por maluco com chapéu de pele e lança na mão. Desacreditar teorias só porque são incômodas é o que ferra esse país desde o século passado. Eu não vim aqui defender boato. Vim apontar lacunas. E pelo que vejo… essa sala tá cheia delas.
Um murmúrio baixo cruzou os cantos da sala. O William bateu o anel de sinete contra a mesa de madeira escura e interveio:
— Tá insinuando que tem gente dentro da agência sabotando as próprias missões, vice-diretora?
Darcy girou lentamente o rosto para encará-lo.
— Não estou insinuando, senador. Estou dizendo que existe alguém com acesso a dados sigilosos, à movimentação de campo e aos nossos registros logísticos. E que esse alguém, por algum motivo, quis que essa anomalia viva fosse associada a mim. O problema não é eu ter falhado. O problema é que alguém quer que pareça que eu falhei.
Booth se remexeu na cadeira.
— Mas você não trouxe provas. Nenhum nome. Nenhum documento.
— Claro que não. Quem tem isso são vocês. Foram vocês que receberam o vazamento. Eu tô aqui tentando entender o que vocês sabem e por que esconderam da diretoria até agora.
Uma pausa se seguiu. Kessler trocou um olhar com o assessor ao seu lado. Booth levou um tempo para responder. As coisas mudaram aos poucos. Darcy poderia não ter vencido a aposta, todavia, se caísse agora, levaria metade daquela sala junto.
O som ritmado dos dedos do senador no tampo da mesa soava como um relógio prestes a explodir. Eram pessoas que não gritavam nem perdiam o controle, somente sabiam exatamente como moldar as palavras até transformá-las em algemas.
— A senhora está afirmando, diante de representantes eleitos, que existe sabotagem interna na U.E.C. e que nós, ao recebermos esse vazamento, estamos sendo usados como instrumento de difamação. Isso é grave.
Ao inspirar fundo, o peito de Darcy se inflava por baixo do paletó escuro. Se recuasse agora, daria ao comitê tudo o que eles queriam e mostraria fraqueza, insegurança e culpa. Sendo assim, fez o que sempre fazia quando se sentia acuada: avançou.
— Grave é isso ter sido escondido da minha equipe e grave é um grupo de senadores estar mais preocupado com política de gabinete do que com a segurança nacional. E sim, senhores, eu afirmo exatamente isso. Porque se vocês não estão sendo usados, estão colaborando. Honestamente, não sei o que é pior.
Dois assessores cochichavam algo num tablet. Um dos senadores apertou os olhos, visivelmente incomodado. Booth, no entanto, apenas inclinou a cabeça para o lado.
— Cuidado com sua linguagem, senhora. Isso aqui não é a sua base da U.E.C. Você não está entre os seus agentes. Isso é o Senado dos Estados Unidos.
Mantinha os ombros relaxados e o queixo erguido. Não se intimidou ao ouvir aquela frase. Tudo o que ela sentia era tédio.
— Desculpe a grosseria, senadora, mas eu lido com aberrações desde antes de vocês saberem o que era a sigla U.E.C. Então não. Eu não tô aqui pra bajular homem engravatado com ego frágil. Tô aqui porque alguma coisa tá se infiltrando na nossa estrutura, e o que quer que seja, passou pelos seus olhos sem levantar alarme.
Booth abriu a boca para falar, mas foi interrompido por William, o qual, até então, permanecera calado.
— Caso o que está dizendo seja verdade, chegou a hora de rever os protocolos de segurança interna. Do contrário, estaremos diante de uma administradora irresponsável, disposta a desviar a atenção de suas próprias falhas operacionais.
Darcy o encarou por um instante. O momento de virar a chave havia chegado.
— A operação foi minha. Os mortos são da minha própria conta. Os resultados, bons ou ruins, dependem de mim. Com a possível infiltração da U.E.C., a responsabilidade é de todos. E isso inclui vocês.
Kessler cruzou os braços lentamente.
— Está nos desafiando?
— Não, senhor. Tô avisando. E se eu tô errada, podem me tirar do cargo amanhã. Mas se eu estiver certa, e a gente não fizer nada, o próximo a cair não vai ser um líder. Vai ser o país.
E um silêncio deprimente se abateu sobre a sala. Não o mutismo de quem foi vencido, em vez disso, o de quem percebeu o perigo iminente. Darcy segurava o olhar de Kessler em meio aos outros senadores buscando amparo na burocracia, desviando os olhos para seus tablets ou para o vazio.
William tamborilou os dedos sobre a madeira escura da bancada.
— A senhora parece… excessivamente à vontade defendendo a integridade de sua agência. — Cruzou os dedos diante do queixo. — Isso não lhe soa imprudente? Ou, no mínimo… suspeito?
O olhar de Darcy não se desviou. Como o vidro do Capitólio em uma manhã de inverno, seus olhos eram capazes de sustentar o impasse até que o adversário afundasse em sua própria pose.
— O que é imprudente, senador, é continuar agindo como se todos estivéssemos jogando do mesmo lado. Ignorar que a imagem da U.E.C. está destruída, mesmo com o país inteiro assistindo ao seu desmoronamento em tempo real só pode ser imprudência.
William cruzou os braços, de maxilar travado. Kessler suspirou baixo. Os demais cochichavam entre si na falsa discrição costumeira antes de uma situação ruim acontecer.
Já era de conhecimento de Darcy a sua própria conclusão. Ao se levantar, porém, virou-se para o microfone mais uma vez, com a mão pousada sobre a mesa em um gesto final.
— Me chamaram aqui achando que me encurralariam. Quero lembrá-los de que, quando o problema aparece, não são vocês que estão de plantão na linha de frente. Somos nós. Uma bomba prestes a explodir não será desarmada dentro dessa sala.
Deu as costas antes que a primeira resposta pudesse nascer. O salto de seus sapatos ressoou no piso encerado da câmara, seco e resoluto. Com o fechamento da porta, o que restou foi uma quietude maior do que todas as falas daquela sessão.
A cada passo que dava para fora daquele prédio, uma tensão era progressivamente liberada da encenação que teve que fazer, palavra por palavra, resposta por resposta. O mesmo incômodo da queimação ao engolir o orgulho para não dar uma resposta fora de hora. Doía da mesma forma toda vez que precisava lembrar algum engravatado de que, na ponta da lança, era o sangue dela escorrendo, não o deles.
O ar afora era pesado, típico de Washington. Carros passavam e buzinas reverberavam em alguma esquina distante. Seguiu até a lateral do prédio por onde o SUV preto estacionado na sombra de uma árvore seca a esperava.
Conforme caminhava, retirou o sobretudo e dobrou as mangas da camisa branca até os cotovelos. O calor do asfalto subia, ainda que não fosse isso que o incomodava. O que o irritava era a clareza do que acabara de presenciar.
A agência estava muito perto de cair. Restou um triz. Isso tudo por causa de um vazamento malicioso.
Darcy encostou no capô do carro e fechou os olhos, respirando fundo.
A tragédia em Boston ainda era uma ferida aberta. Um massacre que não deveria ter passado despercebido pela agência. Entretanto, lançaram um relatório incompleto, pinçado e suficientemente distorcido para gerar pânico político e distração pública. O rosto do suposto responsável caiu na imprensa como um meteoro de informações sem contexto e confirmação. Um nome, uma foto e a fúria da opinião pública.
O problema não foi apenas o erro. O problema maior foi que alguém quis que a agência errasse. Desejou que ela parecesse incompetente.
A U.E.C. nunca foi perfeita, nem poderia ser. Nenhuma organização que lida com o sobrenatural e com o horror em sua forma mais pura poderia. Ao contrário do que se imaginava, não foi um ataque externo que quase destruiu a base. Uma pessoa conhecia o ponto fraco e sabia que bastava soltar a corda moral para a coisa toda começar a ruir.
Ela passou a mão pelo rosto, tensa.
“Mas não vai ser por cima de mim.”
Darcy entrou no carro e fechou a porta com um baque seco sobre os sons de Washington. Abriu o porta-luvas e retirou uma caixa amarrotada de Marlboro. O maço estava ligeiramente torto, com as bordas amolecidas pelo tempo e um pequeno rasgo na lateral.
Pegou um cigarro, encaixou-o entre os lábios e o acendeu com o isqueiro prateado guardado no mesmo lugar. Sua face foi iluminada pela brasa momentaneamente. Deu a primeira tragada devagar para saborear tanto a nicotina quanto o tão esperado sossego. Soltou a fumaça pela narina tendo o para-brisa como foco.
Ela encostou a cabeça no encosto e inspirou fundo. O mundo inteiro sumiu por aquele momento até que decidiu pegar o celular no bolso da calça e ligou para ele.
— Finalmente. Alguma notícia? — perguntou Arthur.
— Quase soltaram o caso do Krynt. Não foi direto, mas tava lá. Um vazamento pequeno, só pra testar a temperatura da água.
— Tá brincando. Tava em algum documento oficial?
— Não. Foi uma insinuação. Alguém do comitê sabia demais sobre detalhes que não foram nem protocolados no relatório principal. Isso veio de dentro. — Esfregou os olhos com os dedos manchados de nicotina. — Você precisa segurar as pontas aí dentro, Arthur. Cortar acesso, revirar os setores de informação, não sei. Mas tem alguém alimentando essa gente, e eles querem ver a gente exposta. O caso do Krynt é uma bomba-relógio, e tão tentando ativar o detonador.
— Tá. Merda, eu resolvo isso. Mas e você? Vai voltar pra cá?
Darcy olhou para o maço de cigarros apoiado em sua perna. Com a tampa aberta, era possível ver outros nove cigarros. Um pequeno papel dobrado estava no fundo da caixa, uma lembrança da qual se esquecera. Lembrava-se apenas de que aquele pedaço de papel, rabiscado por mãos do passado, atuava como uma seta apontando para um lugar que evitava há anos.
— Não. Ainda não. Preciso passar num lugar antes.
— O quê? Que lugar?
— Não interessa.
— Ah… tá bom Só me avisa quando chegar.
Desligou a ligação sem despedidas.
Lançou o celular no banco do passageiro, deu mais uma tragada e, por fim, girou a chave na ignição. O motor ronronou como uma fera acordando. Enquanto Darcy tomava o rumo das ruas que levavam a algum lugar, a cidade de Washington desaparecia no retrovisor.
E, por algum motivo, precisava estar justamente lá neste momento. Se as sombras estavam subindo, isso significava que também vinham das fundações sobre as quais sua própria história se erguia.
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