1989.

    Em algum ponto remoto do vasto universo, onde apenas asteroides vagavam sem rumo e estrelas cintilavam no grande vazio, um fenômeno estranho ocorreu.

    Por um instante, formou-se o que parecia ser o nascimento de um buraco negro; uma fenda devoradora de luz e matéria se abriu silenciosamente no nada. No entanto, ao contrário do que era esperado, ela não absorveu o que havia ao redor.

    Em vez disso, expeliu algumas esferas em chamas.

    Logo após emergirem, foram envolvidas por um manto de escuridão que se fundiu ao próprio tecido do espaço. Tornaram-se invisíveis a olhos comuns, camufladas na vastidão. Ainda assim, para quem observasse com atenção absoluta, seria possível perceber a sutil distorção ao redor delas, ondulações delicadas que denunciavam sua presença oculta.

    As esferas aceleraram repentinamente, disparando em alta velocidade em uma direção específica, como se soubessem exatamente para onde ir. Cerca de uma hora depois, chegaram ao seu destino.

    Era impossível dizer onde ficava aquele lugar, pois uma barreira densa de energia azulada em formas de chamas ocultava tudo em seu interior. Ainda assim, nada impediu que atravessassem as camadas em vários pontos diferentes.

    Mesmo causando uma grande ondulação no ambiente, o evento passou despercebido por qualquer ser deste universo.


    Planeta Terra, 2025.

    Um homem encarava a paisagem pela janela do nono andar da sede da maior empresa tecnológica da cidade, a Tcam. O colosso de vidro e aço refletia os primeiros raios de sol de um horizonte carmesim.

    “Ei, ei… KAI!!!” A voz alterada trovejou no ambiente, arrancando o rapaz de seus pensamentos.

    “Você não estava me escutando?”

    Kai virou o rosto em direção à voz e encontrou seu amigo o encarando com a expressão séria de sempre.

    “Não!” respondeu, dando um leve gesto com os ombros. “Você tinha falado alguma coisa?” perguntou, com um olhar desorientado.

    “O que está acontecendo?” questionou Will, semicerrando os olhos. “Você costuma ser bem focado no serviço, mas hoje está muito distraído.”

    “Não é nada!” respondeu Kai, forçando um leve sorriso. “Ando com muita coisa na cabeça ultimamente.”

    Após alguns segundos em silêncio, o programador ajeitou os óculos com um gesto automático e comentou:

    “Então vá atender ao seu chamado antes que alguém registre uma reclamação!” suspirou, desviando o olhar, pois não havia engolido sua desculpa.

    “Se não estiver bem, posso ir no seu lugar.” Complementou logo em seguida.

    “Não precisa!” respondeu Kai, levantando-se lentamente. “Você está atolado até o pescoço com o desenvolvimento do novo software. Ultimamente, seus dias tem girado só em torno disso… Isso nem é vida, cara! Você devia relaxar mais ou vai acabar virando um velho rabugento como todos os outros” disse, balançando a cabeça com um leve sorriso ao imaginar a cena.

    Nunca o vi agir desse jeito… Alguma coisa deve ter acontecido, pensou Will, observando o amigo se afastar. Mas, por ora, decidiu deixar as dúvidas de lado e voltou ao trabalho.

    Dentro do elevador, o sorriso de Kai desapareceu assim que as portas se fecharam. Suas mãos se fecharam involuntariamente, como se a tensão tivesse raízes mais antigas que ele ousava admitir.

    Por que teve que voltar agora… depois de tanto tempo? pensou.

    Um calafrio percorreu sua espinha, fazendo o coração disparar. Naquela manhã, havia acordado com o mesmo sonho que o atormentava durante toda a infância:

    Ele se via preso dentro de algo, semelhante a uma bolha, envolto por um líquido espesso e avermelhado, tudo ao redor era embaçado e irreal.  Não importava em qual direção conseguia olhar, só era possível discernir outras bolhas vermelhas ao redor, mas nada fazia sentido. 

    Uma sensação sufocante tomava conta. Pois tentava se mover, e por mais que lutasse, sentia que seu corpo não estava sob o seu controle, imóvel sempre no mesmo lugar…

    Então, uma voz profunda ecoava em sua mente, chamando-o:

    “Acorde…”

    “Acorde…”

    Foi apenas com o som das portas se abrindo que a lembrança se rompeu. Seu rosto pálido e as mãos frias denunciavam a tensão. Fechou os olhos, respirou fundo e saiu do elevador.

    Mal deu o primeiro passo, avistou uma senhora esperando com impaciência. Sua perna batia contra o chão como uma britadeira.

    “Qual é o problema dessa vez, Sra. Clepsom?” perguntou Kai, se aproximando. Disfarçando os sentimentos anteriores.

    “Ainda bem que você chegou! Eu já não sabia mais o que fazer!” exclamou ela, visivelmente aliviada.

    Abaixando a cabeça, a mulher respondeu, constrangida:

    “Minha impressora… de novo. Não consigo fazê-la funcionar!” Era a terceira vez naquela semana.

    “O diretor está esperando meu relatório… Não posso me atrasar mais! Me ajuda por favor.” disse ela, entrelaçando os dedos sobre o papel, como se tentasse esconder o tremor das mãos.

    “Fique tranquila, Sra. Clepsom. Vou resolver isso rapidinho para senhora” Kai garantiu, indo até a mesa dela, já imaginando qual seria o problema.


    Trinta minutos depois, retornou ao seu escritório após concluir o atendimento. Ao passar pela mesa de Will, perguntou:

    “Ah, por falar nisso, não esqueceu da nossa saída de hoje, né?” 

    “Vai levar o Roy também?” retrucou o programador, sem tirar os olhos da tela.

    “Eu tenho que levá-lo.” Kai suspirou, com um peso implícito na voz. “Se eu não insistir, ele vai acabar criando raízes naquele quarto.”

    Will suspirou. “Tudo bem. Mas você sabe que ele não gosta de mim…” comentou, ainda digitando.

    “Bobagem… Eu já te falei, esse é o jeito dele com todos.” respondeu o técnico, ao sentar na cadeira.

    “Você sempre fala isso, mas eu sempre me sinto desconfortável com aquela atitude dele.” retrucou Will, lançando um olhar de canto e notando a expressão de Kai murchar com seu comentário.

    Vendo a conversa se esvair em queixas, Kai decidiu mudar de assunto:

    “Você realmente acredita nessa história do Enviado?” perguntou, desconfiado. “Segundo ele, estamos vivendo uma passagem temporária neste mundo e somente os que estiverem prontos vão despertar para o verdadeiro mundo.”

    Will parou de digitar, virou-se e respondeu com firmeza:

    “Eu acredito! E é uma profecia.” corrigiu o ponto de vista de seu amigo.

    “Qualquer um que conseguir alcançar o grau metal necessário de iluminação, serão escolhidos. Então levados para outro plano celeste. Lá, será o início da nossa verdadeira vida, assim como obteremos o dom prometido pelo Enviado. Minha família segue essa tradição há gerações. Minha mãe, meu avô… oramos para obter a iluminação necessária!”

    Kai ficou paralisado por um momento. Só depois de uma piscada, respondeu:

    “Será…? Tenho minhas dúvidas. Tudo de estranho que acontece neste lugar, geralmente, o governo está por trás ou se não pelo menos envolvido.”

    “Você não sabe do que está falando.” rebateu Will.

    O debate durou alguns minutos, com ambos firmes em suas convicções. Kai o olhou com uma mistura de preocupação pelo fanatismo do seu amigo. Nesse instante, um bipe insistente quebrou o clima. O terminal do técnico piscava em vermelho, sinalizando outro chamado. O silêncio voltou ao ambiente.


    Há mais de um século, uma entidade se revelou ao mundo. Se autoproclamou ser o Enviado do verdadeiro universo, com a missão de guiar as mentes perdidas. Apesar de afirmar não querer seguidores, logo surgiram crentes, discípulos e fanáticos. Mas ele se manteve neutro, nunca interferindo em nenhum assunto da sociedade humana.

    Governos e líderes tentaram suprimi-lo, mas ninguém conseguiu detê-lo.


    Sob o céu noturno, um homem empurrava uma cadeira de rodas pela calçada.

    “Tá vendo? Já é quase meia-noite!” resmungou o homem sentado. “Por que você continua me obrigando a sair? Sabe que eu odeio isso.”

    Kai não respondeu. Seus olhos estavam fixos no chão, com uma expressão vazia.

    Roy virou-se para ele e notou os olhos opacos, sem brilho. Depois, abaixou a cabeça.

    “Eu não pedi para você cuidar de mim! Me deixa em paz.”

    Sem perder o tom firme, Kai respondeu:

    “Prometi à vovó que cuidaria de você e é isso que vou fazer! Você gostando ou não.”

    O silêncio caiu sobre os dois. Apenas o vento acompanhava o som estridente das rodas na calçada. Depois de uma quadra, Kai quebrou o silêncio:

    “Descontar sua frustração nos outros não resolve nada. O dia que você aceitar sua condição vai ser o dia que vai conseguir viver de verdade.” disse, voltando seu olhar para as estrelas.

    Gotas caíam sobre a roupa de Roy à medida que chegavam ao portão de sua casa. Mas não havia chovido naquela noite.

    Adentrando o ambiente, Roy parou em frente à porta do quarto, imerso nos pensamentos da noite:

    Por que sempre termina desse jeito…?

    Por que sou assim…?

    Não… é culpa dele. Ele quer me enganar. Me humilhar… Mostrar que é melhor que eu em tudo! Principalmente na frente daquele amigo dele!

    Seus olhos paranoicos exalavam uma leve, mas visível, insanidade.

    No quarto ao lado, Kai desabou sobre a cama, um gemido abafado escapou de seus lábios.

    “O que está acontecendo comigo…?” murmurou, com a voz trêmula. “Esse cansaço… está piorando!”

    Tentou se apoiar, mas arregalou os olhos ao perceber o inexplicável:

    Não… não sinto mais meu corpo!

    O pânico o atingiu como um raio. Mas o espanto aumentou quando percebeu milhares de microesferas luminescentes irrompendo de seu corpo, flutuando ao seu redor como poeira estelar. Sem saber, ele estava sendo observado.

    Muito acima de sua casa, flutuando em meio ao céu escuro, um velho de longos cabelos brancos contemplava a cidade. Seu corpo esguio e ossudo irradiava uma força esmagadora. Seus olhos se mantinham completamente fechados a todo estante.

    Alheio a essa cena peculiar, Kai sentiu uma força avassaladora tentando sugar sua mente. Ainda tonto pela fadiga intensa, mal conseguia processar o que acontecia. Só podia ver seu quarto girando feito um redemoinho, fora de controle. A imagem rodava cada vez mais rápido, distanciando cada vez mais, até que uma escuridão total tomou conta, lançando sua mente no vazio absoluto.

    Não havia mais dor, nem medo, nem preocupação, nada. Apenas o conforto do silêncio.


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