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    Deixei Gus e Milena com os demais. Ambos estavam preparados para conduzir os exercícios sozinhos por algum tempo. Eu, por outro lado, precisava de um tempo com Elizabeth. Não apenas por causa do que ela dissera, mas porque algo naquela sensação descrita ,“algo que gira na direção contrária”  mexia comigo. Não podia deixá-la retornar ao Palácio carregando isso.

    — Elizabeth, venha comigo — pedi, já caminhando em direção à parte mais arborizada do terreno, onde a sombra e o silêncio nos dariam a privacidade necessária.

    Ela não questionou. Me seguiu com passos firmes, como se não houvesse nada de anormal em si. E talvez fosse esse o ponto.

    Elizabeth era um homúnculo criado por Annabela, um feito que nem mesmo Mahteal, sabia reproduzir. Em suas memórias não havia nada que pudesse elucidar minhas dúvidas. Mas ao mesmo tempo, ela não era como Alana, que ainda revelava pequenas inconsistências, como a ausência de círculos ou a coexistência instável de mana e miasma. Elizabeth era… perfeita. Tão próxima do real que ninguém sequer desconfiava.

    Na prática, ela era superior. Teoricamente, também. Sua estrutura arcana imitava com precisão a de um corpo natural, com círculos cristalizados e uma resposta à mana que parecia orgânica. Mas ainda assim, havia algo errado. E agora eu talvez tivesse a chance de entender o quê.

    Paramos num pequeno deque de madeira sombreado por um salgueiro. O som do vento entre as folhas abafava a atividade do gramado.

    — Sente-se — pedi, indicando um banco acolchoado sob a árvore.

    Ela obedeceu, sem perder aquele olhar calmo e atento que me estudava tanto quanto eu a ela.

    — Quero que me conte mais. Exatamente o que sentiu quando tentou formar o sol.

    Ela ajeitou os cabelos atrás da orelha antes de falar. Era um gesto sutil, mas carregado de naturalidade.

    — No início, foi fácil visualizar a ruptura do último círculo. Eu entendi o conceito, o movimento, a centralização… Mas quando tentei fazer a mana girar, senti como se algo no centro… resistisse. Como se já houvesse algo ali. Girando. Só que na direção oposta.

    Assenti, me sentando à sua frente.

    — Você já sentiu isso antes? Em outro tipo de magia?

    Ela hesitou. Pensou. Depois balançou a cabeça.

    — Não dessa forma. Às vezes, ao canalizar magias de reforço, sinto uma espécie de leve… descompasso. Como se minha mana precisasse se alinhar com outra coisa antes de funcionar. Mas nunca tentei entender.

    Descompasso. Gira no sentido contrário. Um centro ocupado.

    Não era erro. Era ocupação. O núcleo dela não estava vazio.

    — Posso fazer um exame mais direto? — perguntei, suavemente. — Queria sentir a forma da sua mana com mais precisão. Talvez consiga entender o que está interferindo.

    Ela respirou fundo, um tanto apreensiva, mas assentiu.

    — Claro. Concordei com isso.

    Estendi a mão e toquei de leve seu peito, sobre a roupa, logo abaixo do esterno. Não com intenção, mas com respeito. Queria apenas acessar o ponto onde o sol de mana deveria nascer. Fechei os olhos e me concentrei.

    A mana de Elizabeth era limpa. Pura como a de um cristal recém-lapidado. Circulava com elegância, precisão, quase como uma dança perfeitamente coreografada. Mas ao chegar ao centro… ali estava.

    Um giro contrário. Uma esfera escura, pegajosa. Miasma.

    Denso, compactado, selado como um ovo podre sob uma camada de ouro. Como se alguém houvesse escondido algo ali dentro, esperando o momento certo para abrir. Mas Elizabeth… ela parecia alheia àquilo. Não havia resistência, nem tensão. O que quer que estivesse ali, não era dela. Não duvidava mais: ela não sabia exatamente qual era o seu destino.

    Abri os olhos. Ela me encarava. Séria, mas sem medo.

    — Tem alguma coisa em você — falei, direto. — Posso falar com honestidade?

    — Isso tem a ver com Annabela, não tem?

    — Tem — respondi, mantendo os olhos nos dela. — O que você sabe sobre seu nascimento? Qual foi a influência de Annabela na sua vida?

    Elizabeth se afastou um pouco, cruzou os braços. O movimento era defensivo, mas sua voz ainda era calma.

    — Ela sempre foi uma espécie de protetora. Desde cedo me dizia que eu era especial. Que havia um propósito. Me ensinou os primeiros rudimentos de magia, me orientou. Minha família sempre foi muito grata por ela me abrigar sob sua asa.

    Ativei discretamente um feitiço de detecção de mentiras. Não sabia se funcionaria, dado que o corpo dela era artificial. Mas nada indicava falsidade. Ela dizia a verdade. Ou, ao menos, a verdade que conhecia.

    — Preciso te contar algo. Pode ser difícil. Mas preciso que me ouça com calma.

    Elizabeth franziu o cenho. Não respondeu, mas me deu espaço para continuar.

    — Você é um homúnculo, Elizabeth. Uma criação mágica. Um construto com aparência e estrutura humanas. Annabela… ela te criou.

    Ela piscou. Uma, duas vezes. Depois riu, mas sem alegria.

    — Um homun… o quê?

    — Um homúnculo. Entidade artificial. Feita por alquimia e magia. Um corpo moldado. Um ser criado.

    — Você está brincando comigo?

    A expressão no rosto dela mudou. Os olhos se arregalaram, e a voz ganhou uma nota aguda de incredulidade.

    — Isso é algum tipo de piada? Eu sou… o quê? Uma invenção?

    — Alana me disse que você sabia. Que Valis também sabia.

    — Quem é Alana? O que você está dizendo? Você está… você está ficando louco!

    Ela deu um passo atrás. A confusão estampada no rosto. As mãos subiram até a cabeça, segurando os cabelos como se quisesse arrancar a ideia de dentro do crânio.

    — Elizabeth — chamei, levantando as mãos, tentando acalmá-la — eu só quero te ajudar.

    Mas ela já não me ouvia.

    Se abaixou, ainda com as mãos na cabeça, murmurando algo que eu não consegui entender.

    E então, como se uma chave tivesse sido girada, ela se levantou. O rosto estava calmo. Calmo demais. Um sorriso sem emoção. Os olhos… sem foco.

    — Obrigada, professor Lior. Mas eu preciso ir agora.

    A voz era dela. Mas não era ela.

    Elizabeth virou-se e começou a caminhar em direção à saída do campo, passos firmes, quase mecânicos.

    Alguns alunos, já alarmados com a movimentação, se aproximavam. Gus chegou primeiro.

    — Está tudo bem com ela? — perguntou, preocupado.

    — Só não estou me sentindo bem — respondeu Elizabeth, sem hesitar. — Vou para casa. Obrigada por perguntar.

    Não esperou resposta. Apenas seguiu andando, como se estivesse seguindo uma trilha já traçada.

    Gus fez menção de ir atrás, mas levantei a mão e o detive com um gesto calmo.

    — Melhor deixá-la ir. Precisa de descanso. Vamos retomar os exercícios.

    Ele assentiu, mas o olhar dizia que não estava convencido. Ainda assim, não discutiu.

    Fiquei ali, observando até que ela sumisse do campo de visão.

    O que havia dentro dela? Até onde ia o alcance de Annabela? E, acima de tudo… era possível que nem Elizabeth nem Valis soubessem que eram sacrifícios?

    O pensamento se fechou como um punho em meu estômago.

    Eu precisava falar com Alana. E fazer isso rápido.
     

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