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    Embora minha vontade fosse ir atrás de Alana imediatamente, o grupo de alunos ainda estava no gramado. Respirei fundo e deixei a inquietação de lado por um tempo. Ainda havia trabalho a ser feito ali.

    Passei as próximas horas focado, ajustando detalhes, respondendo perguntas, acompanhando as práticas. O ritmo foi constante, quase monótono, não fossem alguns momentos pontuais de progresso. Um deles foi Tom, um rapaz tímido de olhos fundos e jeito calado. Surpreendeu a todos, inclusive a si mesmo, ao conseguir modificar as runas à vontade, igualando-se a Gus, Milena e Elizabeth. Amanhã, sem dúvida, começaria seu treinamento para desenvolver um sol de mana.

    Quando o sol começou a mergulhar no horizonte e os alunos começaram a se dispersar, me despedi de cada um com uma palavra de incentivo. E então a vi.

    Cassiopeia.

    Estava de braços cruzados, me observando com aquele meio sorriso que sempre usava quando ia me dar uma bronca carinhosa. Ao lado dela, Pandora e Niana conversavam em voz baixa. Cass se destacava, como sempre. Era impossível ignorá-la.

    Me aproximei com um sorriso genuíno e a abracei apertado. O cheiro familiar de lavanda e cinza me trouxe uma enxurrada de lembranças.

    — Que surpresa boa! — exclamei, aliviado. — Achei que já tivesse voltado pra Vesúvia.

    — Eu e mamãe íamos… mas resolvemos ficar até o seu casamento. Ela quer ver com os próprios olhos se você vai mesmo subir no altar — disse com ironia e rindo. — Aliás, cadê Nix e Claire?

    — Estão cuidando das decisões. Cardápio, decoração, véu… essas coisas que eu não entendo e evito — respondi com uma careta.

    — E desde quando você virou professor, hein? — provocou, dando uma cutucada no meu ombro. — Tô vendo que você mudou mesmo, irmãozinho. Quase não te reconheci.

    — Pode dizer que eu morri e renasci — respondi, rindo de leve.

    — Não ria. É a mais pura verdade — disse ela, sem desviar o olhar. — E tem mais. Notei umas coisas bem diferentes por aqui. Primeiro a Claire, que deu um show no duelo. Ela estava forte, muito forte. E agora essas duas aqui — fez um gesto com o queixo em direção a Pandora e Niana. — Eu nem consigo mais sentir o nível de mana delas. O que você andou fazendo? Esqueceu que também tem irmã?

    Fiquei sem resposta por alguns segundos. Ela tinha razão. No calor das coisas, não pensei em incluí-la. Era imperdoável.

    — Aceita um pedido de desculpas?

    — Quero é ação, Lior. Quero brilhar como elas. Mas não vim só por isso. Fiquei sabendo da sua missão. Quero ir junto.

    — Vai ser perigoso… a mamãe concordou?

    Ela assentiu com a cabeça, séria.

    — Concordou. Disse que se fosse com você, estava em boas mãos. Só me pediu pra não morrer. E pra te dar um tapa se você tentasse me deixar pra trás.

    Sorri, aliviado e um pouco emocionado.

    — Amanhã cedo você vem pro gramado. Vai treinar junto com os mais avançados. Se alcançar o ritmo, você vem comigo.

    — Aceito o desafio — respondeu ela, confiante.

    Foi quando Pandora interveio.

    — Se ela estiver disposta, posso começar com ela agora. Não tenho nada pra fazer mesmo. E não se esqueça, fui eu quem guiou as meninas.

    Era uma excelente ideia. Melhor ainda vindo de Pandora.

    — Então que seja agora — falei, contente. — Fique pra jantar, Cass. Nix e Claire vão adorar te ver aqui.

    Ela abriu um sorriso largo, empolgada.

    — Vai ser ótimo. Estou morrendo de saudade delas.

    — Mas antes — acrescentei, olhando ao redor — preciso ter uma conversa séria com Alana. Sabem onde ela está?

    — Acho que na sala de música — respondeu Niana, casual.

    — Temos uma sala de música?

    Elas riram.

    — Deixa pra lá — murmurei. — Eu encontro. Obrigado.

    E saí pelos corredores à procura da minha “filha”. O peso da conversa que viria começava a assentar sobre meus ombros. Mas era necessário. Não podia mais ignorar o que estava acontecendo com Elizabeth. E Alana era a única chave que eu tinha.

    Caminhei pelos corredores silenciosos da mansão, guiado pelo som distante de uma melodia delicada. Não demorou para encontrar a tal sala de música, um cômodo escondido entre a biblioteca e o jardim interno, que até então eu ignorava existir.

    A porta estava entreaberta. Empurrei devagar.

    Alana estava sentada diante de um antigo piano de madeira escura, os dedos deslizando pelas teclas com leveza. Tocava uma peça melancólica, de estrutura simples, mas carregada de sentimento. A luz dourada do entardecer entrava pela janela, desenhando sombras suaves no chão de mármore.

    Esperei que ela terminasse antes de me pronunciar.

    — Não sabia que você tocava piano — murmurei, quando a última nota se dissolveu no ar.

    Ela não se virou. Apenas baixou as mãos e pousou os dedos no colo.

    — Aprendi sozinha. Tocar me acalma.

    — Que bom que encontrou algo que te traga paz — falei, entrando por completo. — Porque o que eu tenho algumas dúvidas sobre o que me disse sobre Elizabeth e Valis.

    Agora sim, ela se virou. Seu rosto não mostrava medo, mas uma curiosidade desconfiada. Como quem já pressente a tormenta antes que ela atinja o céu.

    — E o que foi que aconteceu?

    — Fizemos o exercício hoje. Quando cheguei ao centro da mana dela… havia miasma. Girando no sentido contrário. Uma esfera escura, concentrada. Ela não sabia. Pelo menos… não conscientemente.

    Alana baixou o olhar, os ombros enrijecidos.

    — E você está achando que eu menti para você. Para que tivesse mais simpatia por mim?

    — Sim.

    Ela respirou fundo. Levantou-se devagar e caminhou até o sofá, sentando-se com as pernas cruzadas sob si.

    — Quando conheci Elizabeth, eu sabia que ela era como eu. Sentia isso. E Annabela me disse que éramos irmãs. Não de sangue… mas de origem. Ela disse que Elizabeth era o aperfeiçoamento do que eu fui. Que o corpo dela foi feito para receber algo maior.

    — Esther.

    Alana assentiu, sem hesitar.

    — Não sei o quanto ela sabe sobre seu destino. Nem sei se Valis sabe. Não cabia a mim perguntar. Eu mesma tinha um papel designado… que só foi negado porque consegui fugir.

    — Mas pelo que percebi… Elizabeth não tem essa opção. Assim que falei que ela era um homúnculo, ela perdeu o controle. Foi como se outra pessoa assumisse — falei, a lembrança ainda vívida.

    Alana olhou para o chão, as mãos cruzadas no colo.

    — Não sei como eles foram feitos. Nem como foram condicionados. Só sei que eu… não conseguia desobedecer. Era como uma corrente invisível. Um dia, por acaso, tive uma chance. E fugi. Depois de muito tempo sendo caçada, algo em mim mudou. Deixei de sentir o peso dela sobre mim. Hoje, se encontrasse Annabela, acho que ela não teria mais poder nenhum sobre mim. Não sei se foi o tempo… ou a distância… ou a dor.

    — Você acha que sua fuga quebrou o condicionamento?

    — Não posso afirmar. Mas é um bom palpite.

    Ficamos em silêncio por um tempo. A luz da janela parecia mais fria agora, como se o entardecer também escutasse.

    — Você nunca contou a eles?

    — Nunca tive a oportunidade. Eles foram criados longe de mim. Como pessoas normais. Em famílias escolhidas a dedo.

    — E por que não me contou que eles não sabiam? — perguntei, me ajoelhando diante dela. — Eu ativei os protocolos de segurança da programação deles… sem saber. E falei com eles como se soubessem de tudo. Como se estivessem conscientes do que são. Fiz papel de bobo.

    Peguei suas mãos. Alana não chorava, mas seus olhos estavam escuros como poços fundos demais.

    — Não te culpo por isso — continuei. — Mas agora… ela sabe. Ou melhor, algo dentro dela sabe. Não sei se Annabela vai permitir que Elizabeth volte.

    Ela estremeceu. Um calafrio percorreu seu corpo.

    — Sinto tanto por eles… Se eu não tivesse escapado…

    — O que fazemos agora?

    Alana ergueu o olhar.

    — Será que ainda dá tempo de protegê-los?

    — Honestamente? — suspirei. — Não sei. Não sei se terei outra oportunidade de chegar perto. Talvez agora ela os leve de volta. Ou os feche em si mesmos.

    — Annabela…

    — Ela já deu xeque. Mas o jogo ainda não acabou. Ainda temos algumas peças no tabuleiro. E talvez… alguma sorte.

    Alana baixou a cabeça.

    — Se você puder… salve-os.

    Ela se levantou devagar e me abraçou. Não havia palavras. Só a força contida de um pedido de perdão e de uma promessa silenciosa de que, desta vez, estaríamos juntos nisso.

    Ficamos assim por longos segundos. O som do piano calado. O ar carregado daquilo que não podia ser dito em voz alta. Mas que estava ali, pairando, mudando as coisas de lugar.

    Por fim, nos afastamos.

    — Vamos jantar? — perguntei. — Cassiopeia está de visita. Acho que vai gostar de ver você.

    Alana esboçou um sorriso e assentiu. Me deu o braço e saímos da sala em silêncio. Havia ainda um caminho longo pela frente. Mas, naquele instante, caminhávamos no mesmo passo.

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