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    Depois do jantar, animado, barulhento e repleto de risos espontâneos, subi com Nix para nosso quarto. Claire hesitou na porta, como se considerasse vir conosco. Nossos olhos se encontraram por um instante. Havia ternura ali, mas também uma indecisão que ela não conseguia esconder. Acabou sorrindo, murmurando boa noite, e seguiu para o próprio quarto.

    Antes de me deitar, ainda fui até Cassiopeia, que ria de algo que Pandora contava, e deixei o aviso:

    — Não esquece, hein? Amanhã de manhã no jardim. Eu e Pandora estaremos esperando.

    Ela assentiu com um sorriso travesso, e me deu um beijo rápido na bochecha.

    A noite foi tranquila. O tipo de tranquilidade que vem quando os planos seguem seu rumo e os monstros interiores dormem por algumas horas. Acordei renovado, ainda com Nix se espreguiçando preguiçosamente ao meu lado, os cabelos dela espalhados no travesseiro como uma pequena tempestade dourada.

    Desci para os treinos no jardim com certa expectativa. Parte de mim ainda esperava que Elizabeth aparecesse, mesmo sabendo que não viria. O que me surpreendeu foi outra presença.

    Cassiopeia surgiu no portão dos fundos acompanhada de duas figuras que conhecia bem demais: André, sempre com o mesmo andar despreocupado e sorriso de galã em fim de baile, e Alissande… mais risonha do que eu lembrava. Mais leve. Era estranho ver aquele brilho no rosto dela, tão acostumada a erguer muros e lançar farpas.

    Cass adiantou-se, um pouco tímida.

    — Eles estavam em casa quando cheguei do jantar ontem — disse. — E… bem, eu e Alissande… depois da luta contra os necros, as coisas mudaram. A gente se entendeu de outro jeito.

    Levantei as sobrancelhas, surpreso.

    — Entenderam como? Vocês duas sempre estavam prontas pra se engalfinhar por qualquer motivo.

    Cassiopeia deu de ombros com um sorriso cúmplice. Alissande revirou os olhos, mas não negou. Ao contrário, se aproximou e deu um leve toque no ombro da irmã, como quem diz “deixa ele falar”.

    Foi André quem tomou a frente, com a familiar mistura de charme e desfaçatez.

    — Espero que não se importe com nossa intromissão, Lior. Cassiopeia comentou sobre esse método novo de fortalecimento… e bem, nós também queremos crescer. Não é justo que só os estranhos se beneficiem, não acha?

    Fez um gesto largo, apontando para o gramado onde os alunos treinavam em pequenos grupos, atentos aos exercícios e às próprias descobertas. A mensagem era clara: “Se tem lugar pra eles, tem pra nós.”

    Não consegui conter um sorriso. Nunca foi meu desejo guardar nada só para mim. Esse era o modo antigo. O modo do Império. Conhecimento como arma e moeda, trancado atrás de paredes e privilégios. E onde isso nos trouxe? A beira do abismo.

    — Será um prazer — respondi. — Quanto mais preparados estivermos, melhor. Venham comigo.

    Pandora já estava à sombra de uma amoreira, braços cruzados, os olhos atentos ao grupo que se organizava. Assim que nos viu, sorriu, aquele sorriso que mistura orgulho com provocação.

    — Trouxe reforços? — perguntou, já analisando André e Alissande de cima a baixo. — Que bom. Estava começando a achar fácil demais.

    — Estão em boas mãos — falei, olhando para os três. — Ela é uma professora exigente, mas vai fazer vocês suarem até ficarem fortes. Se sobreviverem, claro.

    Cassiopeia soltou uma risada curta. André fingiu estremecer. Alissande apenas ergueu o queixo, desafiadora como sempre.

    As aulas se desenrolaram com naturalidade. Alguns dos alunos estavam começando a dominar as runas com fluidez, outros ainda lutavam para sair dos padrões antigos, mas a energia era boa. Pandora guiava os novos com firmeza e paciência, cobrando concentração, corrigindo postura e fazendo perguntas afiadas.

    Perto do meio-dia, Anna apareceu com seu habitual timing perfeito, empurrando um carrinho recheado de comidas frescas e bebidas refrescantes. Pães assados, frutas cortadas, queijos leves, jarras de suco com folhas de menta e uma travessa de pequenas tortas fumegantes.

    O intervalo tinha chegado, e com ele, aquela pausa tranquila em que corpos e mentes podem respirar.

    Sentei-me à sombra de uma árvore, observando meus alunos interagindo. Gus dividia um pão com Tom, Milena ria de algo que Alissande acabara de dizer. Pandora se afastou com Cassiopeia, as duas conversando em voz baixa. André, claro, já tentava impressionar um dos grupos com histórias exageradas de antigas batalhas.

    Era um cenário vivo. Calmo. Cheio de pequenas conquistas.

    André se aproximou com aquela confiança quase insolente que parecia brotar naturalmente dele, mas dessa vez havia algo mais sério por trás do brilho no olhar.

    — Eu e Alissande queremos ir com você — disse, sem rodeios. — Queremos estar nessa missão. Se Cassiopeia pode ir, também queremos.

    Cruzei os braços, encarando os dois. Alissande se manteve firme, os olhos claros fixos nos meus, sem desviar. Não era só bravata, ela também queria.

    — Ela só vai se for capaz. Vai precisar evoluir até a véspera. Não vou levar ninguém que me obrigue a cuidar como uma babá. O que nos espera lá não vai perdoar hesitações.

    — Entendemos isso — respondeu André, mais calmo agora. — Pode deixar, vamos estar prontos. — E acrescentou com um meio sorriso — Afinal, acho que senti algo diferente hoje… quase como se um núcleo começasse a se formar no meu oceano de mana.

    Não consegui segurar um sorriso enviesado. Só Niana, com sua natureza selvagem, havia demonstrado tamanha velocidade. André era talentoso, claro, mas também era um encantador de plateias. Não duvidava que tivesse sentido algo… mas dali até moldar um núcleo, ainda havia chão.

    Seguimos o almoço no jardim, os alunos sentados na grama, em pequenos grupos, comendo e rindo. Pandora e Cass trocavam impressões num canto, enquanto Nix, que havia se juntado a nós, terminava de mastigar uma das tortinhas de cogumelos com olhar satisfeito.

    Foi nesse instante que um dos criados surgiu com discrição, um envelope pequeno nas mãos. O selo era uma rosa carmesim.

    Rosa. Devia ter completado a missão que eu lhe dera há dias.

    Abri ali mesmo. As palavras, curtas e diretas, carregavam seu toque refinado.

    “Prezado Lorde Lior,
    Terminei de fazer a seleção preliminar. Gostaria de ter sua presença nesta noite para lhe apresentar os nomes escolhidos.
    Cordialmente, Rosa.”

    Sorri de canto, involuntário. A eficiência dela beirava o desconcertante.

    — Boas notícias? — perguntou Milena, do outro lado da toalha estendida sobre o gramado, os olhos atentos às minhas reações.

    — As melhores — respondi, dobrando o bilhete com cuidado.

    O intervalo terminou e voltamos às práticas. Minha mente, confesso, já começava a se projetar para o encontro com Rosa, curioso pelos nomes selecionados, pelas justificativas, por eventuais surpresas. Mas logo fui trazido de volta ao presente por algo muito mais imediato.

    Quase ao fim da sessão, Milena soltou um grunhido baixo, como se algo estivesse se rompendo dentro dela. Em segundos, senti a mana do ambiente reagir. Começou a correr na direção dela, como se fosse atraída, como se fosse chamada por um novo centro de gravidade.

    Do outro lado do gramado, Gus emitiu um som semelhante. Estava ajoelhado, as mãos no chão, o corpo tremendo levemente. Seu olhar estava fixo em nada, e ao redor dele a energia oscilava de forma visível.

    A transformação era nítida. O fluxo deles tinha mudado. A qualidade da mana que os envolvia não era mais a mesma. Ainda modesta, mas densa, pulsante, viva.

    — Eles conseguiram — murmurou Niana, com uma ponta de reverência.

    Milena abriu os olhos primeiro. Estavam úmidos. Não de dor, mas de alívio. De algo íntimo e intransferível. Ela se ergueu devagar, as mãos ainda trêmulas.

    — Eu senti… — murmurou. — como se tudo estivesse girando dentro de mim… e, de repente, tudo se encaixou.

    Do outro lado, Gus também se levantava, os olhos brilhando como quem vê um novo mundo.

    — Achei que não fosse possível — disse ele, ofegante. — Mas… eu consegui, não foi?

    — Conseguiu — respondi. — Ambos conseguiram.

    Os outros alunos começaram a se aproximar, atraídos pela mudança no ar, pelo súbito silêncio reverente que pairava sobre o jardim.

    Eles haviam feito aquilo que muitos consideravam impossível. Tinham transgredido os limites da forma cristalizada. Criado seus próprios sóis de mana, e haviam feito isso ao mesmo tempo. Como se estivessem competindo em segredo. Ou como se, de alguma forma, fossem espelhos um do outro.

    Aquele dia marcaria um divisor.

    Sorri, sentindo o peso suave da responsabilidade crescer mais uma vez sobre meus ombros.

    A nova geração estava nascendo. E ela era feita de fogo, vontade e mana pulsante.

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